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segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Futebol e filosofia em campo: uma brincadeira montypythoniana

(Vamos brincar de futebol e filosofia. Não é inédito, mas é divertido)

“O futebol não é uma questão de vida ou morte. É muito mais importante que isso” 

Bill Shankly, treinador escocês 

Olá!

Dizia a esposa do velho Pacheco, o camisa 12, que ele via futebol em tudo. Velho quem? Pacheco, o fictício* torcedor símbolo da Seleção Brasileira na Copa de 1982, aquela que era para ser, mas não foi. Pacheco foi lançado pela Gilette™ como exemplo de peça publicitária de mão dupla, representando um inegável sucesso em seu mercado, e também como sinônimo de torcedor irracional, que torce pela sua seleção pelo único fato de ser sua seleção, que é vista como a melhor do mundo sob qualquer aspecto e circunstância e, nas derrotas, sendo uma inevitável vítima de conspirações. O lado divertido morreu com a desclassificação, restando a porção jocosa. O termo “pachequismo” vem disso, um ufanismo irracional que pensa ser tudo o que é nacional melhor. E isso nos cega diante de bons desempenhos, mas que não são os melhores do mundo. Não gostamos de ser vices.

Muitos de nós temos esses traços. Menos da paixão cega, e mais de sempre lançar comparativos da vida com o futebol, e, nesse aspecto, sou um especialista empedernido. Sim, gosto um bocado de futebol, e isso inclui o futebol de seleções, embora haja um crescente desinteresse e desgosto com a atual fase da Canarinha (e um ranço político também – leia aqui). Uma seleção é quase sempre uma seleção dos melhores, e, com o componente subjetivo que isso carrega, sempre temos concordâncias e discordâncias, de modo a sermos tão técnicos quanto os profissionais. Nem sempre é fácil definir o que é melhor ou pior. 

Também é tão comum usarmos termos do futebol na vida factual… Veja quantas metáforas vindas dos campos aplicamos nas situações do dia-a-dia. São jogos de conquistas (“a morena está dando condição”), traição (“levar bola nas costas”), liderança (“você é o capitão do time”), multidão (“mais gente que a torcida do Corinthians”), e assim por diante. E, assim, ver futebol em tudo é uma característica social, e não individual.

Por conta disso tudo, é normal que esse mesmo fenômeno ocorra no campo artístico, especialmente no humor, essa área que fica na divisa entre a teatralidade e as coisas que temos travas em dizer. E não é só em Terra Papagallia que há os apaixonados que traduzem risadas em futebol e vice-versa. No país onde o esporte tomou a forma atual também há muita graça com ele.

Monty Python é um grupo inglês de humor já bem antigo, caracterizado por seu anedotário ácido e piadas que trafegam entre o humor negro e o nonsense. Vocês já assistiram alguma coisa deles?

Eu devo confessar que tenho um pouco de dificuldade de compreender o modelo de comédia dos ingleses. Enquanto tem gente que rola de rir vendo as micagens do Mr. Bean, eu ergo o canto da boca, no máximo. Mas há coisas que são boas de verdade, como o filme “A Vida de Brian”, por exemplo. Talvez eu volte com mais rigor ao humor inglês em outro momento; agora, quero me referir a algo bem menor, uma esquete que ficou famosa nesses tempos de internet, chamada The Philosophers’ Football Match (“O Jogo de Futebol dos Filósofos"). Embora seja do começo da década de 70, a internet a fez ressurgir com bastante força, provavelmente por conta do assunto popular e de nossa estranha sanha por listas e disputas.

O desenrolar é muito simples: em uma competição de futebol filosófico, chegam à final as duas seleções mais fortes, os gregos e os alemães. Vestidos de túnicas os helênicos, e de casacas os teutônicos, desdobram-se em pensamentos em campo, sem nem dar bola para a bola, até que, em um laivo de genialidade, os gregos saem tabelando até chegarem à meta dos atônitos alemães, que reclamam da jogada com argumentos filosóficos, e não futebolísticos. Como se trata de obra do absurdo, sua interpretação é absolutamente livre, embora fosse possível discutir certos elementos à luz das posições dos jogadores e coisas semelhantes.

Pois outro dia eu amanheci pensando nisso, e resolvi fazer minha própria escalação das duas equipes, imaginando como seria a composição das duas equipes de acordo com os feitos filosóficos de cada “jogador”. E assim ficou a coisa até hoje, quando faço o arremate final.


Minha ideia não é repisar a ideia montypythoniana de colocar os pensadores para pensar, mas de traduzir alguma característica de suas filosofias em dote futebolístico, e, com isso, imaginar como seria uma partida de fato. Na vida real, embora a Grécia tenha a respeitável (e completamente inesperada) conquista da Eurocopa 2004 em suas prateleiras, o fato é que eles estão no terceiro escalão do futebol mundial, enquanto os alemães se situam na crista da onda, com quatro mundiais, três euros e tantos outros troféus na sua polpuda coleção. Por esse motivo, não levaremos a brincadeira para esse flanco, já que, em termos quantitativos e qualitativos, no campo da filosofia a briga é muito mais equilibrada.

Primeiro vou pensar em uma formação. O mundo do futebol é esplendidamente cíclico, e nos meus tempos de garoto o mais comum era uma tática 4-3-3, com quatro defensores, três jogadores na linha média e três atacantes. De lá para cá, passou-se a fortalecer o meio de campo no 4-4-2, jogar com três zagueiros em um 3-5-2, algumas vezes com líbero, aumentar a quantidade de linhas com um 4-2-3-1, até voltar-se ao mesmo 4-3-3 em voga atualmente. Gira o mundo, grande mundo. Por isso, é com esse esquema tático que eu vou, um 4-3-3 clássico, com goleiro (1), dois laterais (2, o direito; 6 o esquerdo), um zagueiro-central (3) elegante que fica mais à direita e um quarto-zagueiro (4) parrudo, daqueles que mete medo só com a feiúra, guarnecendo o lado esquerdo da grande área. No meio, um médio-volante (5) de boa cobertura e bom passe, para dar sustentação a um meia-armador (8) que busca o jogo e um ponta-de-lança (10) que se posiciona encostado no ataque. Lá na frente, dois pontas (7, o direito e 11, o subversivo) procuram o centroavantão (9) que mistura força e habilidade. É assim que vamos a campo, dos dois lados para não complicar.

Começamos pensando nos times que foram eliminados nas semifinais. Como uma brincadeira, e sendo uma Copa do Mundo dos filósofos, imagino que a disputa pelo terceiro lugar tenha sido um belo Grã-Bretanha** X França, que, apesar do desencanto típico dessa partida entre derrotados, também tem potencial para um jogo e tanto. Penso nas seguintes escalações:

França: Bourdieu; Montesquieu, Merleau-Ponty, Guattari e Comte; Foucault, Sartre e Descartes; Montaigne, Voltaire e Bergson.

Reino Unido: Hume; Hobbes, Locke, Adam Smith e Russell; Oakeshott, Bentham e Francis Bacon; Ockham, Berkeley e Ryle.

Partindo para a final, e em respeito à idade mais avançada, vamos começar pelos gregos. O goleiro será Parmênides, uma pedra inamovível, que previu a eterna permanência de todas as coisas que existem no universo. Essa eterna essência, igual a si mesma em todo lugar e em todo tempo, dá a segurança necessária para que todo o time possa fazer seus avanços sem temer vacilos.

Nas duas laterais, como é bom haver variação de características, vamos colocar o abstrato Pitágoras e o materialista Demócrito. Pela direita, os avanços com precisão matemática e alternância entre jogadas bem calculadas e passes milimétricos, com projeção de pontos futuros executados com exatidão, como a soma do quadrado dos catetos que é igual ao quadrado da hipotenusa. Já na esquerda, um flanco em que se palmilha atomicamente cada espaço a ser ocupado, de modo a desconcertar o adversário (talvez por isso nosso lateral viva dando risada).

A junção de características também existe no miolo de zaga. Embora atue como zagueiro, o classudo Anaximandro é extremamente plástico, adaptando sua atuação à moda do time rival, como se conseguisse traduzir a arché de seu futebol em múltiplos modos. Já o açougueiro Empédocles (diziam que ele gostava de fazer seus churrascos na boca de um vulcão) mistura todas as armas possíveis para espantar qualquer perigo para o mato, ou para a água, ou para o ar, ou até para o fogo.

O médio volante Heráclito tem consciência de que tudo muda, e nunca se joga duas vezes no mesmo campo. Altamente adaptável às necessidades de uma partida, pode tanto ser um encarniçado cabeça de área, quanto um estiloso condutor da pelota.

Tales é o nosso talentoso meia-armador, porque, afinal de contas, foi ele quem criou a porra toda. Seu futebol é fluido como a água que está em tudo, na grama do campo, no suor do time, dentro do apito do juiz (eca), e, desta maneira, está na forma e uniformidade de todo o time.

Na ponta de lança, o grande destaque do time, que não tem só nome de filósofo, mas de craque: Sócrates. É com ele que o time muda o rumo das partidas, deixando de questionar a essência do jogo para se questionar a essência do jogador, do ser humano que está por trás dele. Com ele, nosso joguinho é questionado em si mesmo, e isso faz com que se renove a cada pensamento-jogada.

Agora, o ataque. Pela ponta-direita, o conceitual Platão, uma espécie de técnico dentro de campo, que traz do mundo das ideias os mais perfeitos desenhos táticos, embora ache que eles sempre sejam apenas suas cópias imperfeitas. Do lado oposto, temos Aristóteles transformando potência em ato, o que significa que ele segue em muito a causa final do jogo. Por fim, o centroavante é aquele que melhor condensa a virada ética helenística, Epicuro, um cara de quem podemos dizer que tem prazer em jogar bola.

O técnico do time será Melisso de Samos. Mas não é um nome muito menor para um time repleto de estrelas? Três pontos: Melisso é discreto, mas é importantíssimo, porque sintetizou a característica de todos. Segundo, é organizador e isso é imprescindível em um mar de vaidades. E terceiro, ele mesmo não é mais uma última bolacha do pacote.

Time bom, hein?

Vamos fazer o mesmo exercício com o escrete alemão.

Começamos pelo goleiro Heidegger. Sabendo que a bola que vê é um ente, procura evitar que o deslumbramento do gol faça-lhe ver que seu Ser é estar no fundo das redes. Melhor o nada.

Na lateral direita, o futebol moleque de Bruno Bauer. Não se benze, nem ergue as mãos aos céus quando chega aos raros gols, mas costuma ser muito incisivo em suas penetrações, a ponto de receber críticas de seu colega Marx. Bem-feito, já que adora criticar seu companheiro Hegel.

Na esquerda, vamos convocar Fichte. Ele não vê o jogo como a manifestação de um fenômeno, mas como uma realidade que parte da própria consciência, o que dá a ele uma inventividade maior que a de seus colegas (converter isso em lances nem sempre dá certo).

O zagueiro central será Frege, para que o time entenda do que está falando e não tenha dúvidas em sua comunicação, dizendo todos uma só língua e sob uma só lógica. Seu companheiro será Feuerbach, cético por natureza, que entende que aquilo que os colegas falam sobre o técnico do time, diz mais sobre eles mesmos.

O volante Leibniz é um artista da bola, que defende e ataca com a mesma desenvoltura, atuando em mais de uma posição. É movido por sua apetição, que jamais lhe deixa em repouso. Para ele, o futebol é uma coisa só e várias ao mesmo tempo, porque sua ideia é única, mas se concretiza das mais diversas maneiras.

O meia-armador Schopenhauer não costuma ser otimista nos seus jogos. Acha que a vontade de vencer é uma moção infinita que acaba quando outra começa. “De que vale eu vencer um campeonato se já quero ganhar o seguinte?”, costuma dizer a seus companheiros. Entretanto, é hábil nos seus discursos, mesmo quando reconhece que não tem razão. Por isso, é eficiente quando o objetivo é desequilibrar seus adversários mais difíceis. Os gregos que se cuidem.

Com a 10, não poderíamos ter outro senão ele, Immanuel Kant. Jogador muito crítico, entende que não há como ser dono da verdade, porque tudo o que acontece em campo são fenômenos, ou seja, uma representação do futebol em si mesmo. Costuma ser muito contundente com suas jogadas sintéticas a priori, que são, no seu ponto de vista, a única maneira de praticar futebol novo.

Na linha de frente, muitos craques com características diferentes. O ponteiro direito Nietzsche cai pelo lado de campo como se encarasse o abismo. Explosivo e intuitivo, dizem se tratar de dinamite pura, embora atribua seu caráter à sua imensa vontade de potência. Seus gols costumam ser comemorados com imenso deboche, mas nunca com indicadores para os céus.

Na ponta esquerda, a piada mais pronta deste texto: Karl Marx. Dizem que a expectativa sobre seu futebol é sempre alta, mas a realidade mostra um fominha que quer sempre ter a tarja de capitão. De toda forma, é adepto do futebol coletivo e da pouca posse de bola, e muitos se baseiam no seu jeito de jogar. Talvez não seja tão bom quanto ele pensa ser, nem tão ruim quanto dizem que é. Também não é comum vê-lo comemorar com reverências a um deus. Time de pouca fé.

E o centroavante não poderia ser outro que não fosse Hegel. Com amplo repertório de jogadas, admirado por muitos, criticado por outros tantos, sabe que há um espírito que faz com que o ritmo de jogo mude, e por isso não gosta de ir para o banco de reservas. E há uma certa inimizade com os pontas, que não acham que ele joga essa bola toda.

O técnico dessa talentosa equipe será Gadamer, que entende tanto a linguagem do boleiro, quanto a das táticas e técnicas, já que sabe fazer a hermenêutica de todas essas linguagens. Em time tão briguento, é bom ter alguém que assente a poeira.

Os times em campo e certamente veríamos os gregos com táticas claras e jogadas objetivas, enquanto os alemães marcariam golaços, mas com jogadas muito complexas. Embora com francas oposições, o time grego me pareceria mais coeso, com progressões mais bem definidas, embora os alemães possuam futebol mais sofisticado, até o ponto de tropeçarem uns nas pernas dos outros. Por isso, o placar talvez seja uma nova vitória grega, mesmo de placar apertado, porque ainda dá para sentir um cheirinho do milenar futebol helênico no requintado escrete germânico, e contrário não vale, pelo princípio da causalidade (que é aristotélico). Mas não dá para apostar dinheiro nisso, até que uma bet da vida inclua também este certame… Que medo!

Terminamos esse pequeno exerciciozinho mental concluindo que é só uma distração para aqueles que gostam de estudar e se pôr a pensar em filosofia, e também para reconhecer o quanto eu já escrevi neste espaço, já que todos os filósofos citados tem algum link para algum texto que eu já tenho escrito. Tô ficando velho… Bons ventos a todos!!!

Recomendação de vídeo:

É a tal esquete, que pode ser encontrada em trinta segundos com qualquer pesquisinha Google. Vou deixar um deles aqui embaixo.

Partida de Futebol dos Filósofos (The Philosophers' Football Match) - Monty Python - Legendado

*Fictítcio pero no mucho, já que ele foi baseado no publicitário Natan Pocanowski, um doente torcedor da seleção que forneceu as características gerais do personagem (fonte: https://terceirotempo.uol.com.br/que-fim-levou/pacheco-3180)

** Ora (direis), mas no futebol os ilhéus do norte não disputam em unidade, e sim nas suas quatro nações. Meu enfadonho interlocutor, sempre por aqui. Faça de conta que a Copa é pelas Olimpíadas.

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