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quarta-feira, 3 de novembro de 2021

O café filosófico do quotidiano - os números como realidade metafísica em Pitágoras

(Números. São entidades abstratas que sintetizam a realidade ao nosso redor. Mas teve gente que achou que eles eram muito mais do que isso).

Olá!

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De todos os métodos de extração de café que tenho em casa, o mais oneroso de todos mesmo foi uma máquina de café espresso. Nada daquelas que vemos nos bares, com recursos xis e ypsilon e que tira oito xícaras de uma vez, mas uma miniatura que tem todos os ademanes necessários: bico duplo, tampo aquecido, vaporizador, diversos níveis de saída, 20 bars de pressão. Não foi exatamente barata, mas nada que um crediário não resolvesse.

Tive um pouco de problema no começo. O depósito de água cheirava forte a plástico e traduzia esse desagrado para o café. Acionei a garantia e a assistência técnica me trocou o tanquinho, recomendando ainda que tivesse um pouco de paciência e deixasse-o aberto por alguns dias. Deu certo.

Lembro de quando eu era jovem, como tantas vezes já recordei aqui, e de como era raro lugares que serviam café espresso, um método tipicamente italiano. O mais frequente eram aquelas grandes cafeteiras que ocultavam um filtro de pano, comuns até hoje, e que são praticamente um distintivo do botecão onde nos conformamos antes de encarar o batente, ainda sonoloentos. Acontece que, de pouco em pouco, essas máquinas com aspecto modernoso foram se tornando cada vez mais comuns, especialmente nas casas especializadas.

O líquido que se extrai de uma dessas é denso, encorpado, para quem gosta de café forte. Para quem prefere cafés mais suaves, é possível pedir ao barista que dê uma "cariocada" na mistura, o que significa dobrar a dose com água quente e liquefazendo a solução. Perguntei a um carioca se fazia sentido o uso do gentílico, e ele disse que não tem nada a ver. Coisas que dançam entre a lenda e o preconceito.

O café espresso bem feito deixa uma boa camada de crema, a espuminha que é tão desejada pelos amantes de coffee art, aqueles desenhos feitos na espuma com leite e caramelo. O espresso é feito para se tomar em pequenas doses, dado seu sabor marcado e altas doses de cafeína, capazes de arribar os contribuintes mais sonolentos. Na Itália, é costume usar doses realmente pequenas, de 15 a 25 ml, a quem chamam de ristretto.


Nome do método: café espresso

Tipo de técnica: pressurização pneumática

Dificuldade: média

Espessura do pó: médio

Dinâmica: O pó é colocado em uma cápsula e deixado no cachimbo, que é encaixado na máquina e submetido a uma faixa de pressão e temperatura de modo a permitir sua rápida extração, que é feita por escoamento diretamente na xícara

Resíduos: pouco

Temperatura de saída: média/alta

Nível de ritual: médio

Eu sempre dou uma travada na hora de preparar meu espresso. Se vou fazer uma dose, há uma certa quantidade de pó e um aperto adequado do tamper no cachimbo. Se vou escoar duas, não se trata de simplesmente colocar o dobro, mas uma medida intermediária, para não produzir um petróleo pouco palatável, com um aperto um pouco mais leve. Além disso, há uma quantidade máxima que o cachimbo suporta, e há regulagens de tempo e de pressão, que não pode ser pouca para que o café não crie cremosidade, nem muita para que ele passe rápido demais, perdendo a oportunidade de extrair os óleos essenciais adequadamente. Mais ainda: há que se considerar se não será cometido o crime de se misturar leite, e com isso calcular as medidas para vaporização. E os cálculos vão se multiplicando na minha cabeça, produzindo uma matematização que me leva, por vezes, ao erro. Era sobre isso que eu pensava diante da minha xícara de café. Espresso.


De fato, nunca fui brilhante com números. Nunca tive dificuldades para aprender as operações básicas, embora eu tivesse alguns tropeços com divisões de mais de três números na chave. Bom, acho que todo mundo tinha. Mas desde que fui apresentado a limites, derivadas e integrais que a coisa migrou do embaraço para a ojeriza. Acontece que o mundo não se guia pelos meus conhecimentos e a evolução das ciências, de modo particularíssimo a Física, deve boa parte de sua robustez aos avanços matemáticos. Os números traduzem a realidade de forma quase mística, porque você olha para a imensidão do universo e o resume em uma folha de papel, com caracteres que, estando isolados, nada representam. Eles estão em toda parte e traduzem toda a natureza. Se não o fazem ainda, um dia o farão, é o que prometem cientistas e matemáticos. Isso quando já não representam coisas que nem sabemos ainda o que são, como as matrizes multidimensionais.

Tal propriedade dos números, de representar a realidade através de elementos absolutamente abstratos, faz com que qualquer fenômeno que ocorra neste pequeno arrabalde chamado de universo tenha sua participação, ainda que de maneira tácita. Em uma época em que os antigos filósofos ainda procuravam pela arché, essa característica levou a uma transformação no modo de pensar. Enquanto os pensadores da escola de Mileto e pósteros procuravam um elemento físico que constituísse o princípio de todas as coisas, surgia em Crotona uma corrente que via nos números e na matemática esse princípio fundamental. Eram Pitágoras e sua trupe.

Mas as coisas começaram de ordem inversa. Pitágoras primeiro iniciou seus estudos através da matemática, e por ele, chegou à conclusão metafísica, ao seu inusitado princípio basilar. O olhar foi lançado curiosamente sobre a música, e dela se teve a ideia de que a harmonia musical poderia ser reduzida a harmonia numérica. Pitágoras e seus asseclas davam tanta importância à música por conta de ser um elemento de catarse, muito semelhante à que era produzida pela tragédia grega: uma purificação em que um homem se coloca em estado de espírito absoluto, como se fosse possível se reencontrar com um plano divino. Isso dava à apreciação musical uma condição quase que sagrada aos pitagóricos.

De fato, há muita matematização na música. Olhe para a escala de um violão e perceba como os trastes não estão dispostos equidistantes, mas com espaços que progressivamente são menores, partindo da pestana na direção da ponte. Entretanto, se você dividir uma corda exatamente ao meio, perceberá que teremos a mesma nota, porém mais aguda. Além disso, os acordes são constituídos minimamente em tríades, que podem ser variados de acordo com a tônica escolhida, sempre mantendo a estrutura de possuir uma dominante e uma  subdominante. Faça isso com um piano, uma flauta, uma gaita, um bombardino ou teremin e você chegará a outras conclusões igualmente matemáticas. Pitágoras e sua magna comitante caterva, desse modo, notaram que a matemática por trás da música era semelhante a uma alma em relação ao corpo, sendo sua efetiva porção divina.

Isso significa que Pitágoras e seus Blue Caps viam a existência de um número físico, efetivamente existente? Bem, é meio complexo de dizer, porque temos contemporaneamente uma ideia de pura abstração com relação aos números. Eles representam sem existir, são puros entes abstratos. Entretanto, os pitagóricos enxergavam algo de físico na realidade numérica, exatamente como o substrato da arché. Todos os fenômenos se explicavam tão bem através da matemática que eles viam o número da mesma forma que, um dia mais tarde, Demócrito veria o átomo.

Ocorre que Pitágoras e compagnia bella observavam tanto a fundamentação da realidade pelos números que acabaram por vê-los até mesmo onde não existiam. Eles fundaram uma espécie de seita onde o culto era ao número, e, quando essas coisas de adoração acontecem, sabemos bem onde as coisas vão parar. Diziam, por exemplo, que a justiça era regida por números quadrados como o quatro (2²) ou o nove (3²), porque expressam a exponenciação da equidade. Bem… não é muito distante do conceito atual de numerologia.

Estando as coisas neste ponto, temos Pitágoras et al elaborando aplicações reais e verdadeiramente geniais, como o célebre teorema, onde se conclui que, em um triângulo retângulo, a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa, o que revolucionou as regras trigonométricas até hoje. Mas ao lado disso temos complexas elucubrações que, no final das contas, não levaram a nada que não fossem corroborações metafisicas do aspecto místico dos numerais. O principal exemplo vem da relação entre contingência e infinitude. Uma vez que toda a realidade deriva dos números, eles precisam expressar tanto os elementos finitos quanto os infinitos. Para isso, os números contêm em si mesmos um fator indeterminado e outro determinante. Nos números pares, por exemplo, temos elementos que podem ser colocados lado a lado, como se fossem fileiras. Se colocarmos um vetor entre essas duas fileiras, veremos que ele poderá seguir ao infinito, sem nenhum tipo de obstrução, o que os torna do tipo indeterminado e, por este motivo, menos perfeitos. 

Por outro lado, os números ímpares, colocados da mesma forma, farão perceber que haverá um elemento que sobra. Este elemento, colocado no desvão das fileiras, é um limitador para o mesmo vetor que corria solto no exemplo anterior. Colocar um delimitante faz, no entender de Pitágoras e confraria, um número se torna mais perfeito, porque ganha determinação, uma característica que lhe assegura maior precisão. Vamos ver um desenho que demonstra isso, comparando os números 10 e 11:

Notem como no número 11 há uma unidade que delimita o fluxo do vetor, dando o aperfeiçoamento apontado logo acima. No número 10, os vários casais são meio que uma “encheção de linguiça”, e por isso os números pares não são “tão bons assim”*. Assim como este, há inúmeros outros estudos pitagóricos que vão no mesmo sentido. Tudo isso pode soar esquisito, mas essa é a primeira vez nos registros da humanidade que tivemos uma visão estruturada da realidade, que nem tinha o componente mágico das mitologias, nem a mera busca de um meio físico comum dos primeiros filósofos. Os sistemas matemáticos demonstraram-se capazes de estabelecer ordem nas coisas, assim como dar ferramentas indubitáveis para o raciocínio. Já ouvimos dizer que os números não mentem (o que os contadores contestam), justamente porque conseguimos com eles uma precisão impossível com a linguagem.

Duas curiosidades só para fechar. Fiquei com uma gracinha de Pitágoras e seus isso, Pitágoras e seus aquilo porque nunca é possível falar de Pitágoras isoladamente. É sabido que ele formou uma escola semelhante a um culto, e que ele nunca escreveu nada. Sendo assim, Pitágoras era cercado de epígonos, aqueles discípulos que escrevem em nome do mestre, mas que tornam absolutamente impossível de discernir o que é legítimo e o que é apócrifo.

Outra coisa é que o misticismo pitagórico não se limitou unicamente à questão dos números. Assim como várias religiões de matriz oriental, e influenciado pelos mistérios órficos, Pitágoras cria na metempsicose, que nada mais é do que a migração das almas entre diferentes corpos. Isso envolvia não somente as reencarnações em outros seres humanos, mas também nos corpos de animais, que eram visto como seres inferiores, e cuja passagem fazia parte do processo de purificação da alma. Isso fazia com que os pitagóricos adotassem uma rígida disciplina moral. Viver em comunhão com as divindades era um sinônimo de encontrar uma vida regrada e em enxergar as realidades da natureza, voltando aí a lançar mão das ciências e da matemática.

Pois é... Vejam como a busca da precisão não exclui a possibilidade de uma transcendência. Às vezes é exatamente isso o que acontece enquanto divago diante de uma xícara de bom café. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como eu disse, Pitágoras não deixou nada escrito, e de seus seguidores só existem fragmentos incertos. O jeito é recorrer aos manuais, e indico a livro abaixo:

NICOLA, Ubaldo. Antologia Ilustrada de Filosofia. Das Origens à Idade Moderna. São Paulo: Globo, 2005  

* É bem verdade que o 10 não é o melhor exemplo que eu poderia usar. Ele é tido como um dos números onde os pitagóricos mais enxergavam relações um chamado “número triangular”, constituído da soma das dez primeiras unidades (1+2+3+4) e que pode ser disposto igualmente por todos os três lados de um triangulo perfeitamente equilátero.

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