(Com certeza você já ouviu falar sobre os quatro elementos. Mesmo que dois deles sejam uma coisa só, o fato é que o imaginário sobre estes não é novidade, e boa filosofia já foi construída sobre essa ideia)
Olá!
Eu tinha uma chefe que gostava de incensos. Até aí, nada de
mais. Eu mesmo gosto de incensos, principalmente aqueles que tem cheiro de…
incenso! Acontece que, como sabemos, a utilização dessas pequenas varetas tem
todo um aspecto místico, e a superiora intuiu, ou previu, ou (mais
provavelmente) ouviu de alguém que deveria manter um desses artefatos aceso por
cem por cento do tempo do expediente. E lá vem sândalo, mirra, almíscar,
jasmim, patchouli, citronela, cravo, pinho, alfazema, âmbar, mel silvestre e
qualquer outra maconha que você puder imaginar. Como eu disse, não tenho
problemas com incensos, mas ter nove horas seguidas de fumacinha nas narinas
chega a fazer mal, não só em um mero enjoo, mas a causar sintomas
respiratórios, como tosse e pigarro. A chefa era visitada frequentemente por um
rapaz que lhe trazia novidades que chegavam "diretamente" da Índia e
cercanias. A coisa pretejou de vez quando ele trouxe um produto que prometia
quarenta e cinco minutos de queima sem tirar de dentro, o que me revirou o
estômago só de ouvir falar. Eu precisava fazer alguma coisa, porém sem riscos
para a vida funcional.
Isso já faz muito tempo. Nessa época, minha ainda não
defunta mãe era metida lá com suas brujerías, cercada de cristais,
mandalas e - vejam só - incensos. À minha descrição, ela disse que esse uso não
somente é errado, como também é egoísta e perigoso. Errado porque a quantidade
de incenso não influencia na limpeza do ambiente (em termos metafísicos, porque
em termos atmosféricos o ar fica é bem sujo). Egoísta porque qualquer ação
esotérica precisa levar em conta as pessoas que te rodeiam, e perigoso porque
muito incenso não limpa somente energias ruins, mas toda e qualquer energia,
gerando o efeito oposto ao que se desejaria. Ela perguntou se eu não me sentia
mais enfraquecido, no que eu respondo que não, me sentia mais irritado, isso
sim. Ela deixou para lá a parte consultiva diante de dromedário tão
recalcitrante e passou à proposta de resolução.
"A questão não é de confrontar a chefe, mas de educá-la",
disse a sortilégica genitora. "Vamos preparar um presente para ela, tão
bonito que vai seduzi-la e ensiná-la a lidar com os elementos. Vai fazer bem
para ela e para todo mundo ao redor".
Meu pai era daqueles peões típicos, que diziam que chefes
nasceram para ser odiados. Eu nunca cheguei a tanto, mas aprendi parte da lição,
e me incomodava esse negócio de bajular
os superiores, especialmente dando presentinhos. Mas fui convencido porque
a causa era nobre e o conjunto era realmente bonito: um bowl de vidro
assemelhado a um aquário, com o fundo recoberto de pedras. Essa tigela era para
ser preenchida com a água mais pura possível, e ainda havia o acompanhamento de
uma pequena vela flutuante em uma barquinha, um vidrinho de essência suave e uma
caixinha de incensos. Mas a principal arma era um pequeno livretinho, feito de
papel sulfite e impresso em jato de tinta. Era a descrição do uso de toda a
parafernália.
A ideia era mais ou menos a seguinte: o conjunto tinha em si
os quatro elementos do cosmos: terra, água, fogo e ar. A terra era representada
pelas pedras, a água pela água (puxa!), o fogo pela velinha e o ar pelo
incenso. Em cada dia da semana, um dos elementos deveria ser ativado. Para ativar
o elemento terra, retirava-se uma pedra e pingava-se uma gota de essência sobre
ela. Para ativar a água, uma gota de essência também. No caso do fogo,
encaixava-se a velinha no barquinho flutuante e deixava-se acesa, até acabar.
Para o ar, queimava-se o incenso. Na sexta-feira, todos os elementos eram
ativados juntos, todos eles APENAS UMA VEZ por dia. Ou seja, acabou a vela,
acabou o ritual, idem para o incenso. Aproveitei um dos raros momentos em que
não tinha ninguém na sala e entreguei a feitiçaria toda, explicando que todas
as instruções estavam no folheto.
A consequência é que a chefa gostou tanto que resolveu levar
tudo para casa, ao invés de deixar no trabalho, evidenciando a miséria do meu
fracasso. Mas, seja porque estendeu as instruções do conjunto à sua prática diária,
seja porque leu meu apelo nas entrelinhas, fato é que a coisa acabou por
funcionar, já que ela paulatinamente foi reduzindo a quantidade de palitos
queimados, a ponto de não causar mais transtornos (e aborrecer seu traf…
mascate de produtos hindus).
Essa questão dos quatro elementos não é nada nova nem única.
Está na estruturação dos signos do zodíaco, na medicina antroposófica, nas
artes e mesmo o conceito de quintessência depende deles. Também a Filosofia se
serve do tema para dar polimento às suas ideias. Vamos dar uma olhada.
Uma das principais correntes da filosofia antiga era a dos
eleatas, Parmênides à frente. Tinham esse nome por conta de sua concentração na
escola de Eleia, onde discutiam a imobilidade do Ser. Eles diziam que o Ser era
permanentemente o mesmo, sem tirar nem por. Diziam isso em contraste com o
devir de Heráclito, que via como principal característica da realidade o eterno
movimento, um fluxo contínuo onde cada coisa do universo rumava para o seu
próprio oposto.
Embora o pensamento eleático fosse muito bem desenvolvido, o
fato é que dele resultava uma aporia: se o Ser é sempre apenas um, como poderia
ser explicado o fato de que todos os objetos do cosmos surgem e desaparecem,
nascem e morrem? Outra coisa: se o Ser é um só para sempre, imutável, não sujeito
a transformações, igual a si mesmo, que não pode não-ser, como podem ser a
mesma coisa o frio e o quente, o claro e o escuro, o novo e o velho? Para onde
vão as coisas que fenecem? De onde vem as coisas que aparecem? É absolutamente
impossível que vão e venham do vazio, que é o não-ser por excelência, e,
portanto, de onde vem e para onde vão?
Embora respostas monistas anteriores, como a água
de Tales e o ar de Anaxímenes, e até mesmo o sofisticado apeiron de Anaximandro
pudessem dar uma justificativa ao dilema, o fato é que pareciam insuficientes,
porque os elementos únicos que eram dados como arché não poderiam ser contrários
a si mesmos. Como dizer, por exemplo, que o ar não é ar? Se o ar é pedra, então
rumou para seu contrário, como diria Heráclito, e não Parmênides.
A resposta de Empédocles, da cidade de Agrigento (hoje
situada na Sicília, mas então pertencente à Magna Grécia), é a primeira que
leva em consideração a dificuldade eleática. De fato, Empédocles concordava com
tudo o que Parmênides e sua claque diziam a respeito do Ser: ele é e não pode
não ser. A resposta dada tem um belo nome em grego: rizomata, ou raiz,
na última flor do Lácio. Segundo ele, o nascer e o desaparecer seriam o
resultado do agregar e do desagregar das raízes em determinadas proporções.
Essa substância que surge seria a reunião de raízes que estariam disponíveis no
universo, enquanto o desaparecimento dessa mesma substância seria o retorno
desses elementos aos seus estágios originários.
Teríamos então uma explicação para um mundo em aparente devir, consistente
nas inúmeras formas de combinação das raízes, mas que é sempre o mesmo porque,
uma vez isoladas, estas seriam eternamente iguais a si mesmas, imutáveis e
perenes. Portanto, o Ser residiria na rizomata, e não em cada uma das coisas
individualmente que vemos ao nosso redor.
Tá, mas quais seriam essas tais de raízes? Seriam exatamente
os quatro elementos tão conhecidos no esoterismo e na poesia: terra, fogo, ar e
água, que parecem, no campo da intuição, ter um grupo de propriedades distintas
que caracterizariam fortemente cada um deles. Esses componentes consistem na
grande novidade de Empédocles: suas qualidades são inalteráveis e cada uma das
raízes, individualmente, não são objeto de transformação.
Nota-se aqui uma transformação na concepção de arché
que originalmente procurava por um elemento distinto que compusesse o substrato
da natureza. Os monistas eram assim chamados porque criam em uma única
substância originária, que não precisava de nenhum processo em especial para
sua agregação. Só que esse é um processo de transformação, inadmissível para as
teses parmenidesianas. Quando Empédocles propõe a rizomata, faz nascer o pluralismo
e possibilita que as próprias transformações sejam ilusórias, já que as raízes
isoladas não mudam, apenas as proporções que as mesmas geram. Dessa forma,
substâncias quentes sempre conterão o elemento fogo em maior quantidade, as frias
terão a água, e daí para frente. Além disso, o estado do objeto também
evidencia a proporção: sólidos contém primazia da terra, líquidos da água,
gasosos do ar e plasmáticos do fogo. Hoje nós sabemos que o plasma como estado
da matéria nada mais é que parte do estado gasoso, mas precisamos tomar cuidado
para não sermos anacrônicos.
A própria lenda sobre a morte de Empédocles tem um certo
sabor da teoria por ele estabelecida. Dizia-se que nosso filósofo, muito ativo
politicamente e com ares místicos de milagreiro, à medida que envelhecia,
sentia cada vez menos vigor, como se dele se desprendessem aos poucos os
elementos que lhe seriam constitutivos. Certa feita, em um dos cultos do qual
era sacerdote, resolveu subir ao alto do Etna, um dos vulcões mais famosos da
história e ainda hoje ativo, para acelerar seu processo de retorno ao Ser, ou
seja, às quatro raízes, atirando-se na cratera do acidente geográfico. Não se faz
a mínima ideia de que isso seja verdade, mas carrega um narrar simbólico muito
expressivo, porque lá temos um dos exemplos mais visíveis do que seriam os
quatro elementos em franca atividade ao mesmo tempo: a terra derretida na forma
de lava, o fogo expresso pelo calor, a água que surge através das fumarolas e o
ar que evola como fumaça.
Entretanto, há ainda uma dificuldade que precisava ser
superada pela dinâmica pluralista de Empédocles. Quando falamos nos monistas,
podemos contar com o benefício da unicidade de sua substância – água mais água
continua sendo água. Mas uma rizomata tem natureza diferente de outra, e é
preciso que se responda a uma pergunta: qual é a “cola” que mantêm os elementos
unidos?
Dei uma rápida espanadinha no assunto aqui,
mas vamos detalhar. Em primeiro lugar, é preciso entender que Empédocles via
física e misticismo como aspectos de uma mesma unidade. As suas raízes não são
elementos passivos, que se deixam levar pelo tempo, mas são substâncias
divinas. Sendo assim, e de acordo com a concepção órfica, o universo é um todo
onde a menor de suas partes tem influência sobre o restante do cosmos. Para explicar
a questão do agregar e desagregar, Empédocles lança mão de um conceito de
forças cósmicas, que receberão os nomes de philía e neikos,
respectivamente “amor” e “ódio” em grego, sendo que também os termos “amizade”
e “contenda” são utilizados. É possível que nosso herói tenha observado que o
relacionamento pessoal agia de forma semelhante à crença de que tudo se atrai
ou repele, e pegou emprestado esses nomes para designar essas formas de energia
divinizadas.
Ocorre que as dosagens de philía e neikos variavam de acordo
com o momento temporal em que se vivia. Ao se ter um instante de preponderância
da philía, víamos o surgimento de um determinado elemento e, pelo contrário,
seu desaparecimento se dava pela ação do neikos. Só que essa atividade nunca se
dava em momentos extremos. Quando a prevalência da philía chegava ao seu auge,
todos os elementos se reuniam em tal unidade que formavam uma única massa
absolutamente compacta, semelhante a uma esfera, onde qualquer ponto é
equidistante do centro. Pelo contrário, quando a predominância se dava no campo
do neikos, a desagregação era total, de modo a nada existir a não ser as raízes
totalmente separadas. Todo o cosmos existente está entre estes dois extremos,
já que da compactação absoluta da philía nada escapa, assim como da separação
absoluta do neikos nada se constitui. E, percebe-se, toda a realidade se dá em
ciclos, que variam de acordo com a geração e a corrupção.
Essa conformidade de fenômenos ainda vai dar um aspecto
cognitivo aos pensares de Empédocles. Ele imagina uma lei de semelhança (que
nada tem a ver com o ideário da homeopatia) onde as porções de cada elemento
existentes em nossos corpos conseguem reconhecer o elemento correspondente nos
objetos, ou seja, com o tanto de terra que temos em nós, reconhecemos o que há
de terra no objeto que observamos. Isso se dá na forma de eflúvios: os sentidos
reconhecem essa espécie de emanação impalpável que é desprendida de cada corpo
e faz uma conexão através do mesmo elemento contido no próprio organismo.
Assim, quando olhamos para uma vareta de incenso, são os receptores do elemento
ar que percebem os aromas, os de fogo que sentem a ponta quente e assim por
diante.
Empédocles, dessa forma, cria uma filosofia de fundo
materialista, mesmo que com um misticismo subjacente, e vai dar a primeira base
para que Lêucipo
e Demócrito cheguem ao atomismo, já completamente esvaziado de elementos
divinos e bem mais próximo do que nossa moderna Ciência conseguiu concluir.
E era isso. Quando houver alguma discussão que envolva o
papo dos quatro elementos, saibam que não é de hoje que ele nasceu, e que há
maneiras bastante sérias de pensar sobre o assunto, mesmo que estejam superadas
hoje em dia. E fica a dica do truque do papelzinho dobrado para quando vocês
correrem o risco de intoxicação por excesso de esoterismo. Bons ventos a todos!
Recomendações:
De Empédocles, somente temos fragmentos de seus poemas De
Natura e Carme Lustral. Dessa forma, mais uma vez apelei para a famosa coleção
Os Pensadores:
SOUZA, José Cavalcante (org.). Os Pré-socráticos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
E vou recomendar aqui uma coisa insólita – um incenso!
Trata-se do Olibanum Eritreia, que é vendido em grãos pela empresa brasileira
Milagros. Sim, é uma reminiscência dos meus tempos de Catolicismo, mas é um
aroma bastante suave e agradável, que, queimado em pequenas quantidades sobre
um braseiro, perfuma o ambiente com um certo exotismo.
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