(A ideologia vai muito além do que o entendimento raso que temos hoje em dia. Ela vem de tempos e era chamada de “ídolos” desde a Idade Moderna).
O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente
os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe – Francis Bacon
Olá!
E agora estou com labirintite. Descobri, evidentemente, da
pior forma: tendo uma crise. Pensando bem, poderia ter sido bem pior, tipo
dirigindo ou atravessando a Sé, mas foi sentado na cozinha, tomando um café.
Fiquei cismado de que ele fosse o culpado, mas tenho um pouco de dimensão das
coisas e sei que não é nada disso. É algum distúrbio no ouvido, causado
diretamente por um descompasso nos líquidos dos canais semicirculares, o órgão
do sentido de equilíbrio de nosso corpo. Pelo menos em tese é isso que tenho,
até a realização de exames mais conclusivos.
Eu já tinha ouvido muitos relatos sobre as síndromes
vestibulares, mas é só sentindo no couro que ganhamos representatividade.
Vertigem e perda de direção são mais fáceis de lidar na teoria do que na
prática, e ao levantar da banqueta dei um desvio na direção digno dos carros
com suspensão avariada, o que me obrigou a apoiar nas paredes até chegar ao
sofá, onde larguei o corpo até me sentir um pouco melhor. Só que junto com a
zonzeira vem uma ânsia de vômito daquelas, que só o meu ódio ao ato ajudou a
reter. É a mesma sensação de quem fica mareado após horas de balanço no barquinho
do mar, daquelas cenas típicas de comédia, mas que não são nada engraçadas para
o contribuinte que a suporta.
Enquanto a sala fica girando ao meu redor, fico tentando
buscar supostas origens na cabeça confusa. Lembro de quando era bem pequeno e via
meu pai limpando os ouvidos com um palito de dentes, o que fui repetir
escondido, e me custou uma corrida no médico e um buraco no tímpano. Lembro
também da música no talo partindo dos fones de ouvido e dos amplificadores
arregaçados ao máximo para conseguir aquele delicioso ruído de válvula
sobrecarregada, para desespero dos vizinhos e delírio dos otorrinos, sequiosos
por ouvidos estuporados. Bom, na verdade, é um deles que vai me ajudar agora,
então não sejamos injustos. Pode ser tudo isso ou nada disso, então vamos
examinar o que for necessário.
Impressiona um pouco como podemos ter desvios de percepção.
Claramente isso ocorre com mais profundidade na medida em que você está
acometido por uma doença ou turvado pelo consumo de certas substâncias, como remédios,
álcool ou drogas ilícitas. Sentimos os objetos maiores ou menores, as portas
mais próximas ou mais distantes, as paredes tortas. Mas olhando bem, mesmo
agora que já estou bem recuperado, noto que a parede realmente não é reta. Pego
um fio de prumo e vou tirar a prova dos nove, e, ainda que por poucos
milímetros, a parede realmente é torta. Outras paredes, de empreendimentos mais
sérios, provavelmente estarão mais bem aprumadas, mas nunca estarão cem por
cento ajustadas às métricas. Mas eu assumo que elas estão retas porque, no
final das contas, só uma distorção muito grande trará efeitos práticos na minha
vida, como uma parede de apartamento cedendo ao peso da laje.
Isso é um problema para quem deriva todo seu pensamento a
partir da experiência. Sempre teremos algum grau de distorção que, se no miúdo
não faz diferença, no todo é transmitido para a teoria geral. Francis Bacon era
desses, e reconhecia o quanto era problemático extrair dados da experiência, e
por isso fundou um método todo cheio de nuances. Ele surge no Renascimento e se
opõe a três inspirações epistemológicas. Primeiramente, coloca-se radicalmente
contra qualquer conhecimento de fundo metafísico, especialmente à escolástica
de São
Tomás de Aquino, que usava como critério de desempate em um confronto entre
Religião e Ciência a primazia da fé sobre a razão. Para Bacon, o valor dos
argumentos de autoridade só é válido no campo da fé. Depois, via com
desconfiança o racionalismo de René
Descartes, que dava mais valor ao raciocínio intrínseco do que aos dados
colhidos da realidade. Por fim, não aderia a Galileu Galilei e seu mundo visto
sob o prisma das formulações matemáticas, que buscava leis gerais e, delas,
fazer deduções sobre o funcionamento do mundo. Bacon, ao contrário de todos,
entendia que a ciência deveria ser empírica, baseada na experimentação e na observação
de casos particulares, que se acumulam e são registrados para formar conclusões
e reforçá-las. Quem procurar ler o livro que recomendei neste
link, verá que sua segunda parte é toda composta pela descrição exaustiva
de métodos de registro de coletas de informações. Aproveitem para notar o
quanto a indução está em utilização em todo o seu esplendor: a anotação de
inúmeras e inúmeras ocorrências dos mesmos fenômenos é a base de todo o
conhecimento, e, para isso, o registro ad
nauseam deve ser rigorosamente realizado.
Há questões: tudo bem que Hume é posterior a Bacon, mas a
constatação do problema
da indução não quer dizer que magicamente ela passou a ter limitações
somente a partir de sua problematização. Isso significa que, grosso modo, uma indução sugere uma aproximação com a realidade,
mas não assina o certificado. Tudo por uma constatação simples: só podemos
afirmar que todo pênalti mal marcado é perdido até acontecer de um pênalti mal
marcado resultar em gol. Ou que todos os cisnes serão brancos até que se ache
um cisne preto. Uma conclusão extraída de uma indução nunca é definitiva, e
essa constatação é tão importante que a localização de um fenômeno que a desminta
virou a principal premissa do método
científico atualmente: a falseabilidade.
Acontece que Bacon percebia que não eram somente as
encrencas inerentes à indução que eram obstáculos à produção do conhecimento.
Segundo ele, os seres humanos em geral possuíam predisposições psicológicas que
acabavam por causar distorções na realidade que iam para além dos desvios dos
sentidos. É como se o conhecimento precisasse driblar barreiras intelectuais
para se fixar o menos distorcido possível. É o que ficou conhecido como teoria dos ídolos.
Quando Bacon chama de ídolos os desvios psicológicos humanos
na pesquisa do conhecimento, está se referindo aos conteúdos prévios da mente
como verdades absolutas das quais não estamos dispostos a abrir mão, e que nos
fazem ver as coisas como elas não são na realidade. São ídolos porque são caros
a nós, que defendemos nossas crenças da mesma forma que defendemos nossas
cidadelas.
São quatro os gêneros de ídolos contidos na teoria
baconiana, e nós vamos tratar de cada um deles individualmente: ídolos da
tribo, da caverna, do fórum e do teatro.
Ídolos da tribo
Quando nós falamos de percepções pelos sentidos, temos em
mente as vias de acesso do mundo exterior para o nosso intelecto. Dos cinco
sentidos, temos como o mais apurado a visão, seguidos pela audição. Achamos
muito bonita nossa capacidade de enxergar, mas às vezes esquecemos do quanto
temos limitações nessa faculdade. Quando alguém quer dizer que uma pessoa tem boa
capacidade visual, diz que tem visão de águia, ou olhos de lince. Nunca dizemos
que alguém tem visão de homem, ou olhos de gente. Isso porque, embora tenhamos
uma acuidade visual melhor do que a da maioria dos mamíferos, há inúmeras
outras limitações (inclusive na forma de doenças) que tornam nosso aparato
muito inferiorizado em relação a outras espécies. Falcões enxergam a mais de 3
km de distância, polvos possuem dezesseis cones de cores (temos humildes três),
camaleões possuem visão bilateral independente, aranhas contêm milhares de
ocelos em seus olhos múltiplos. Temos nossos dois olhinhos frontais, bons para
vigiar leões nos horizontes das savanas, que são suficientes para nossa
sobrevivência, mas que produzem muitas distorções. Isso se espraia para os
outros sentidos e é inerente à espécie humana.
Bacon chama de ídolos da tribo a predisposição da própria
espécie em confiar demasiadamente nos próprios sentidos. Ganha esse nome porque
a humanidade como um todo pode ser considerada uma tribo, com suas
características peculiares no grande bioma denominado biosfera. E tribo é uma
designação primária que damos para agrupamentos com alguma distinção, como a
origem e a genealogia comum. Dessa forma, temos a tendência de achar que todo o
universo segue a mesma lógica de nossa espécie. Por exemplo: damos imenso valor
à nossa liberdade, e sempre que vemos algum bicho aprisionado tendemos a
achá-los tristes, não é mesmo? Só que ser livre é importante para nós. Para o
bicho, a segurança de estar em uma casa, mesmo que seja um humilde apartamento,
pode trazer muito mais conforto do que a pretensa liberdade, muito mais
perigosa. Outro exemplo: quando está sol, dizemos que o tempo está bom. Bom
para quem? Para nós, que podemos pegar as mochilas e passear, dar um pulo no
estádio sem se encharcar, dar um rolê de carro sem riscos de alagamentos e etc.
Mas o tempo seco e quente não é bom em si mesmo: ele é neutro, é o que é. Ele é
bom para mim, e, com isso, eu
antropomorfizo uma qualidade que o clima, na verdade, não tem.
Ídolos da caverna
Embora nós tenhamos reservadas em nós muito das coisas
gerais da humanidade enquanto tribo, também é verdade que nós continuamos sendo
indivíduos, aos quais se atrelam histórias e experiências próprias, diferentes
de qualquer outro ser humano. Nós somos bombardeados diariamente por
informações que vêm de nossa família, da religião que praticamos, dos locais de
trabalho e da escola, de pessoas de nosso convívio social que, no final das
contas, formam aquilo que chamamos de senso comum. São conjuntos de crenças
acríticas que, no final das contas, formam no nosso íntimo não o conhecimento,
mas a opinião.
Essa é a caverna de Bacon – o mundo interior que se esconde
da luz da natureza em si mesma. O resultado é que cada um de nós enxerga em
perspectiva própria, sempre “puxando a sardinha” cognitiva para os fatos que
nos favorecem. Imagine que você coloque uma camisa do Corinthians à frente de
um palmeirense, vice-versa valendo também. Pode colocar o dado que você quiser,
o outro time será sempre melhor. Se quisermos melhorar o exemplo, pense na
visão que um judeu terá sobre estudos do Holocausto. Ele precisará isolar muito
mais sentimentos do que qualquer outra etnia, porque há afetos sendo disparados
a todo instante, porque se trata de um fato histórico onde seus ascendentes
foram atingidos, em maior ou menor proporção.
Ídolos do fórum
Os ídolos do fórum, também chamados de ídolos do mercado em
algumas traduções, dizem respeito aos problemas da linguagem. Todos nós sabemos
da dificuldade que temos de traduzir em palavras exatas, ou melhor dizendo, de
transformar o mundo que nos cerca em linguagem, embora não nos reste fazer
outra coisa, porque esta mexe inclusive com nossa forma de pensar. Tente pensar
sem palavras, por exemplo. Não dá, né? Existem formas não verbais de expressão,
mas elas sempre vão desembocar nas tais palavras e, se não temos como
certificar cem por cento de sua precisão, temos um problema imenso nas mãos: a
barreira linguística.
Prestem atenção no problema das polissemias: uma palavra
pode assumir inúmeros significados, bem como podemos ter inúmeros sinônimos
para o mesmo objeto. No primeiro caso, pensemos na palavra “peça”. Pode
significar um ato teatral, um componente de uma máquina, uma parte de uma
coleção, um armamento, a divisão de uma casa, uma enganação, uma pessoa com
atitudes curiosas, um documento processual, uma pedra do jogo de tabuleiro, um
elemento de campanha publicitária, um pedaço de tecido, a primeira pessoa do
presente do subjuntivo do verbo pedir e mais algumas coisas. No segundo,
podemos pensar em um cigarro de maconha, que recebe inúmeros nomes: ganja,
baseado, marijuana, diamba, erva, bagulho, verdinha, beck, canabis, bangue,
cigarrinho de artista, pantera, da lata, marola, charuleta et al.
Toda essa confusão na linguagem permite que se faça uso
indevido ou malicioso dela, inconscientemente ou não. Tanto no fórum, onde
promotores e advogados desencadeiam seus combates jurídicos através da palavra,
quanto no mercado, com a concorrência entre os feirantes e no embate de
descontos e pechinchas entre mercadores e compradores, a linguagem é usada para
dissuadir e convencer, não importando, na prática, onde reside a verdade sobre
causas e valores, e por isso o fórum/mercado é metáfora para o espaço de
disputa da linguagem.
Ídolos do teatro
O que costumamos assistir no teatro? Um grupo de atores
sobre um palco desempenhando algum papel previamente escrito. E o que vemos é a
realidade? Não! Vemos uma história sendo contada sem nenhuma necessidade de ter
reflexo no mundo real, ainda que ela possa transpor para o concreto uma ideia.
Por via das convicções, trazemos todo o pano de fundo que reveste nossos
pensamentos: sistemas filosóficos, disposições religiosas, tradições, princípios
científicos. Entretanto, essas convicções podem constituir fábulas que resistem
à absorção de conhecimento que divirja de seus ditames.
Bacon diz que estes ídolos são incutidos nas mentes dos
seres humanos, já que, ao contrário dos demais, não são inerência pura da
espécie, da individualidade e da linguagem. Sendo assim, eles representam
aquilo que hoje em dia conhecemos por ideologia. Ele apontava seus canhões
retóricos contra os três grupos de ideias que mencionei mais acima, mas era
contra o seu contemporâneo Racionalismo, que apresentava uma nova forma de
encarar a Epistemologia, e que havia convencido muita gente com relação à
primazia do intelecto sobre a experiência, que tinha seu alvo mais aguçado.
A teoria dos ídolos de Bacon, mesmo com toda idade que já
tem, é um índice interessante para que ainda hoje se tome cuidado com a questão
da preexistência de convicções. A Fenomenologia,
por exemplo, tem como método que o pesquisador se dispa de todas as suas capas
de cultura, que acabam por nublar sua consciência ao estudar um determinado
objeto, e isso é exatamente o que queria Bacon quando nos advertia de nossos
ídolos. Especialmente para reconhecer nossos próprios preconceitos.
Bons ventos a todos!
Recomendações:
Preciso indicar novamente o magnum opus de Bacon, não tem
como fugir:
BACON, Francis. Novum
organum: Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza.
São Paulo: Nova Cultural, 1999.
Queria indicar também um canal que me ajudou na confecção
deste texto, do casal Vitor e Evelyn Lima, chamado Isso Não É Filosofia. É
muito bom e claro:
https://www.youtube.com/c/Iston%C3%A3o%C3%A9Filosofia/featured
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