Marcadores

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A Teoria dos Ídolos de Francis Bacon e o quanto é importante perceber as influências de nossas ideologias no pensamento científico

(A ideologia vai muito além do que o entendimento raso que temos hoje em dia. Ela vem de tempos e era chamada de “ídolos” desde a Idade Moderna).


O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe – Francis Bacon

Olá!

E agora estou com labirintite. Descobri, evidentemente, da pior forma: tendo uma crise. Pensando bem, poderia ter sido bem pior, tipo dirigindo ou atravessando a Sé, mas foi sentado na cozinha, tomando um café. Fiquei cismado de que ele fosse o culpado, mas tenho um pouco de dimensão das coisas e sei que não é nada disso. É algum distúrbio no ouvido, causado diretamente por um descompasso nos líquidos dos canais semicirculares, o órgão do sentido de equilíbrio de nosso corpo. Pelo menos em tese é isso que tenho, até a realização de exames mais conclusivos.

Eu já tinha ouvido muitos relatos sobre as síndromes vestibulares, mas é só sentindo no couro que ganhamos representatividade. Vertigem e perda de direção são mais fáceis de lidar na teoria do que na prática, e ao levantar da banqueta dei um desvio na direção digno dos carros com suspensão avariada, o que me obrigou a apoiar nas paredes até chegar ao sofá, onde larguei o corpo até me sentir um pouco melhor. Só que junto com a zonzeira vem uma ânsia de vômito daquelas, que só o meu ódio ao ato ajudou a reter. É a mesma sensação de quem fica mareado após horas de balanço no barquinho do mar, daquelas cenas típicas de comédia, mas que não são nada engraçadas para o contribuinte que a suporta.

Enquanto a sala fica girando ao meu redor, fico tentando buscar supostas origens na cabeça confusa. Lembro de quando era bem pequeno e via meu pai limpando os ouvidos com um palito de dentes, o que fui repetir escondido, e me custou uma corrida no médico e um buraco no tímpano. Lembro também da música no talo partindo dos fones de ouvido e dos amplificadores arregaçados ao máximo para conseguir aquele delicioso ruído de válvula sobrecarregada, para desespero dos vizinhos e delírio dos otorrinos, sequiosos por ouvidos estuporados. Bom, na verdade, é um deles que vai me ajudar agora, então não sejamos injustos. Pode ser tudo isso ou nada disso, então vamos examinar o que for necessário.

Impressiona um pouco como podemos ter desvios de percepção. Claramente isso ocorre com mais profundidade na medida em que você está acometido por uma doença ou turvado pelo consumo de certas substâncias, como remédios, álcool ou drogas ilícitas. Sentimos os objetos maiores ou menores, as portas mais próximas ou mais distantes, as paredes tortas. Mas olhando bem, mesmo agora que já estou bem recuperado, noto que a parede realmente não é reta. Pego um fio de prumo e vou tirar a prova dos nove, e, ainda que por poucos milímetros, a parede realmente é torta. Outras paredes, de empreendimentos mais sérios, provavelmente estarão mais bem aprumadas, mas nunca estarão cem por cento ajustadas às métricas. Mas eu assumo que elas estão retas porque, no final das contas, só uma distorção muito grande trará efeitos práticos na minha vida, como uma parede de apartamento cedendo ao peso da laje.

Isso é um problema para quem deriva todo seu pensamento a partir da experiência. Sempre teremos algum grau de distorção que, se no miúdo não faz diferença, no todo é transmitido para a teoria geral. Francis Bacon era desses, e reconhecia o quanto era problemático extrair dados da experiência, e por isso fundou um método todo cheio de nuances. Ele surge no Renascimento e se opõe a três inspirações epistemológicas. Primeiramente, coloca-se radicalmente contra qualquer conhecimento de fundo metafísico, especialmente à escolástica de São Tomás de Aquino, que usava como critério de desempate em um confronto entre Religião e Ciência a primazia da fé sobre a razão. Para Bacon, o valor dos argumentos de autoridade só é válido no campo da fé. Depois, via com desconfiança o racionalismo de René Descartes, que dava mais valor ao raciocínio intrínseco do que aos dados colhidos da realidade. Por fim, não aderia a Galileu Galilei e seu mundo visto sob o prisma das formulações matemáticas, que buscava leis gerais e, delas, fazer deduções sobre o funcionamento do mundo. Bacon, ao contrário de todos, entendia que a ciência deveria ser empírica, baseada na experimentação e na observação de casos particulares, que se acumulam e são registrados para formar conclusões e reforçá-las. Quem procurar ler o livro que recomendei neste link, verá que sua segunda parte é toda composta pela descrição exaustiva de métodos de registro de coletas de informações. Aproveitem para notar o quanto a indução está em utilização em todo o seu esplendor: a anotação de inúmeras e inúmeras ocorrências dos mesmos fenômenos é a base de todo o conhecimento, e, para isso, o registro ad nauseam deve ser rigorosamente realizado.

Há questões: tudo bem que Hume é posterior a Bacon, mas a constatação do problema da indução não quer dizer que magicamente ela passou a ter limitações somente a partir de sua problematização. Isso significa que, grosso modo, uma indução sugere uma aproximação com a realidade, mas não assina o certificado. Tudo por uma constatação simples: só podemos afirmar que todo pênalti mal marcado é perdido até acontecer de um pênalti mal marcado resultar em gol. Ou que todos os cisnes serão brancos até que se ache um cisne preto. Uma conclusão extraída de uma indução nunca é definitiva, e essa constatação é tão importante que a localização de um fenômeno que a desminta virou a principal premissa do método científico atualmente: a falseabilidade.

Acontece que Bacon percebia que não eram somente as encrencas inerentes à indução que eram obstáculos à produção do conhecimento. Segundo ele, os seres humanos em geral possuíam predisposições psicológicas que acabavam por causar distorções na realidade que iam para além dos desvios dos sentidos. É como se o conhecimento precisasse driblar barreiras intelectuais para se fixar o menos distorcido possível. É o que ficou conhecido como teoria dos ídolos.


Bom... o que é um ídolo e porque Bacon usou esse termo para fundamentar sua tese? A palavra vem do grego eidolon, que significa “simulacro”. Digamos que você goste muito de um time, ou de um jogador específico, ou de um artista, coisa que o valha. Você procurará andar próximo deles, mas nem sempre isso será possível, porque o time joga na casa do adversário, o jogador vai junto, o músico sai em turnê e assim vai. Mais ainda: por mais que se queria fazer a tietagem, não há logística possível de você estar perto cem por cento do tempo do seu time favorito. O que você faz então? Compra uma camiseta, coloca um quadro na parede, um fundo de tela no celular, entoa hinos e canções. Você faz questão de espalhar sua preferência para todo mundo através de um objeto que substitua a presença física do objeto da adoração. A camiseta não é o time, o retrato não é o jogador, a canção não é o cantor, mas são simulacros que se colocam nos seus lugares, e é exatamente isso que chamamos de eidolon. Quando chamamos o objeto representado de ídolo, como “o meu ídolo é Fulano”, nada mais estamos fazendo do que criar uma metonímia. O ídolo mesmo é a representação, e não o representado. Mas nós nos dispomos a proteger o ídolo da mesma forma que faríamos com o time em si, com o jogador em si, com o artista em si. Ofender o ídolo é ofender o representado e, como aquilo em que acreditamos diz boa parte do que nós mesmos somos, é ofender a nós mesmos.

Quando Bacon chama de ídolos os desvios psicológicos humanos na pesquisa do conhecimento, está se referindo aos conteúdos prévios da mente como verdades absolutas das quais não estamos dispostos a abrir mão, e que nos fazem ver as coisas como elas não são na realidade. São ídolos porque são caros a nós, que defendemos nossas crenças da mesma forma que defendemos nossas cidadelas.

São quatro os gêneros de ídolos contidos na teoria baconiana, e nós vamos tratar de cada um deles individualmente: ídolos da tribo, da caverna, do fórum e do teatro.

Ídolos da tribo

Quando nós falamos de percepções pelos sentidos, temos em mente as vias de acesso do mundo exterior para o nosso intelecto. Dos cinco sentidos, temos como o mais apurado a visão, seguidos pela audição. Achamos muito bonita nossa capacidade de enxergar, mas às vezes esquecemos do quanto temos limitações nessa faculdade. Quando alguém quer dizer que uma pessoa tem boa capacidade visual, diz que tem visão de águia, ou olhos de lince. Nunca dizemos que alguém tem visão de homem, ou olhos de gente. Isso porque, embora tenhamos uma acuidade visual melhor do que a da maioria dos mamíferos, há inúmeras outras limitações (inclusive na forma de doenças) que tornam nosso aparato muito inferiorizado em relação a outras espécies. Falcões enxergam a mais de 3 km de distância, polvos possuem dezesseis cones de cores (temos humildes três), camaleões possuem visão bilateral independente, aranhas contêm milhares de ocelos em seus olhos múltiplos. Temos nossos dois olhinhos frontais, bons para vigiar leões nos horizontes das savanas, que são suficientes para nossa sobrevivência, mas que produzem muitas distorções. Isso se espraia para os outros sentidos e é inerente à espécie humana.

Bacon chama de ídolos da tribo a predisposição da própria espécie em confiar demasiadamente nos próprios sentidos. Ganha esse nome porque a humanidade como um todo pode ser considerada uma tribo, com suas características peculiares no grande bioma denominado biosfera. E tribo é uma designação primária que damos para agrupamentos com alguma distinção, como a origem e a genealogia comum. Dessa forma, temos a tendência de achar que todo o universo segue a mesma lógica de nossa espécie. Por exemplo: damos imenso valor à nossa liberdade, e sempre que vemos algum bicho aprisionado tendemos a achá-los tristes, não é mesmo? Só que ser livre é importante para nós. Para o bicho, a segurança de estar em uma casa, mesmo que seja um humilde apartamento, pode trazer muito mais conforto do que a pretensa liberdade, muito mais perigosa. Outro exemplo: quando está sol, dizemos que o tempo está bom. Bom para quem? Para nós, que podemos pegar as mochilas e passear, dar um pulo no estádio sem se encharcar, dar um rolê de carro sem riscos de alagamentos e etc. Mas o tempo seco e quente não é bom em si mesmo: ele é neutro, é o que é. Ele é bom para mim, e, com isso, eu antropomorfizo uma qualidade que o clima, na verdade, não tem.

Ídolos da caverna

Embora nós tenhamos reservadas em nós muito das coisas gerais da humanidade enquanto tribo, também é verdade que nós continuamos sendo indivíduos, aos quais se atrelam histórias e experiências próprias, diferentes de qualquer outro ser humano. Nós somos bombardeados diariamente por informações que vêm de nossa família, da religião que praticamos, dos locais de trabalho e da escola, de pessoas de nosso convívio social que, no final das contas, formam aquilo que chamamos de senso comum. São conjuntos de crenças acríticas que, no final das contas, formam no nosso íntimo não o conhecimento, mas a opinião.

Essa é a caverna de Bacon – o mundo interior que se esconde da luz da natureza em si mesma. O resultado é que cada um de nós enxerga em perspectiva própria, sempre “puxando a sardinha” cognitiva para os fatos que nos favorecem. Imagine que você coloque uma camisa do Corinthians à frente de um palmeirense, vice-versa valendo também. Pode colocar o dado que você quiser, o outro time será sempre melhor. Se quisermos melhorar o exemplo, pense na visão que um judeu terá sobre estudos do Holocausto. Ele precisará isolar muito mais sentimentos do que qualquer outra etnia, porque há afetos sendo disparados a todo instante, porque se trata de um fato histórico onde seus ascendentes foram atingidos, em maior ou menor proporção.

Ídolos do fórum

Os ídolos do fórum, também chamados de ídolos do mercado em algumas traduções, dizem respeito aos problemas da linguagem. Todos nós sabemos da dificuldade que temos de traduzir em palavras exatas, ou melhor dizendo, de transformar o mundo que nos cerca em linguagem, embora não nos reste fazer outra coisa, porque esta mexe inclusive com nossa forma de pensar. Tente pensar sem palavras, por exemplo. Não dá, né? Existem formas não verbais de expressão, mas elas sempre vão desembocar nas tais palavras e, se não temos como certificar cem por cento de sua precisão, temos um problema imenso nas mãos: a barreira linguística.

Prestem atenção no problema das polissemias: uma palavra pode assumir inúmeros significados, bem como podemos ter inúmeros sinônimos para o mesmo objeto. No primeiro caso, pensemos na palavra “peça”. Pode significar um ato teatral, um componente de uma máquina, uma parte de uma coleção, um armamento, a divisão de uma casa, uma enganação, uma pessoa com atitudes curiosas, um documento processual, uma pedra do jogo de tabuleiro, um elemento de campanha publicitária, um pedaço de tecido, a primeira pessoa do presente do subjuntivo do verbo pedir e mais algumas coisas. No segundo, podemos pensar em um cigarro de maconha, que recebe inúmeros nomes: ganja, baseado, marijuana, diamba, erva, bagulho, verdinha, beck, canabis, bangue, cigarrinho de artista, pantera, da lata, marola, charuleta et al.

Toda essa confusão na linguagem permite que se faça uso indevido ou malicioso dela, inconscientemente ou não. Tanto no fórum, onde promotores e advogados desencadeiam seus combates jurídicos através da palavra, quanto no mercado, com a concorrência entre os feirantes e no embate de descontos e pechinchas entre mercadores e compradores, a linguagem é usada para dissuadir e convencer, não importando, na prática, onde reside a verdade sobre causas e valores, e por isso o fórum/mercado é metáfora para o espaço de disputa da linguagem.

Ídolos do teatro

O que costumamos assistir no teatro? Um grupo de atores sobre um palco desempenhando algum papel previamente escrito. E o que vemos é a realidade? Não! Vemos uma história sendo contada sem nenhuma necessidade de ter reflexo no mundo real, ainda que ela possa transpor para o concreto uma ideia. Por via das convicções, trazemos todo o pano de fundo que reveste nossos pensamentos: sistemas filosóficos, disposições religiosas, tradições, princípios científicos. Entretanto, essas convicções podem constituir fábulas que resistem à absorção de conhecimento que divirja de seus ditames.

Bacon diz que estes ídolos são incutidos nas mentes dos seres humanos, já que, ao contrário dos demais, não são inerência pura da espécie, da individualidade e da linguagem. Sendo assim, eles representam aquilo que hoje em dia conhecemos por ideologia. Ele apontava seus canhões retóricos contra os três grupos de ideias que mencionei mais acima, mas era contra o seu contemporâneo Racionalismo, que apresentava uma nova forma de encarar a Epistemologia, e que havia convencido muita gente com relação à primazia do intelecto sobre a experiência, que tinha seu alvo mais aguçado.

A teoria dos ídolos de Bacon, mesmo com toda idade que já tem, é um índice interessante para que ainda hoje se tome cuidado com a questão da preexistência de convicções. A Fenomenologia, por exemplo, tem como método que o pesquisador se dispa de todas as suas capas de cultura, que acabam por nublar sua consciência ao estudar um determinado objeto, e isso é exatamente o que queria Bacon quando nos advertia de nossos ídolos. Especialmente para reconhecer nossos próprios preconceitos.

Bons ventos a todos!

Recomendações:

Preciso indicar novamente o magnum opus de Bacon, não tem como fugir:

BACON, Francis. Novum organum: Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999.


Queria indicar também um canal que me ajudou na confecção deste texto, do casal Vitor e Evelyn Lima, chamado Isso Não É Filosofia. É muito bom e claro:

https://www.youtube.com/c/Iston%C3%A3o%C3%A9Filosofia/featured

Nenhum comentário:

Postar um comentário