(Já pararam para pensar que tudo na nossa vida está carregado por relações de poder? Ele está presente até quando você fala bom dia para o porteiro, além de ser uma usina de falácias, como se verá).
Olá!
“Os incomodados que se mudem”, virou o mote mais utilizado
no prédio em que habito. Não é uma frase das mais comuns nos modernos
condomínios cheios de unidades, mas é que aqui as coisas não estão muito
alinhadas com o padrão. Já mencionei algumas desventuras deste honorário
edifício em outros textos (aqui
e aqui),
mas vou dar uma rápida repassada para vocês entenderem o contexto.
Normalmente, os condomínios têm vários donos dos diferentes
apartamentos, cujos relacionamentos são regidos por um documento chamado
Convenção do Condomínio. Ali, estão todas as regras que foram acordadas pela
assembleia dos condôminos, uma espécie de feira livre onde os moradores
destilam seus ódios e tentam acertar suas diferenças, além de, pasmem,
estabelecerem as diferentes regras sociais daquele pequeno universo, como os
horários de quietude, o uso das áreas comuns, os gastos com benfeitorias e até
os limites dos trajes das piscinas (quando houver). Além disso, discutem contas
e elegem síndicos, aqueles pequenos prefeitos que juram administrar
honestamente os fundos em troca de isenção no pagamento da taxa condominial,
aquela partilha estabelecida para enfrentar os gastos do pequeno universo.
Neste prédio donde digito estas mal traçadas linhas, não há
nada disso. É um local onde o proprietário é único, mais especificamente uma
ordem religiosa, e boa parte dos moradores pertencem a ela; metade, mais ou
menos. Com isso, não há assembleia condominial, não há síndico, não há
convenção, não há escolhas e votações, sendo todo o regramento baixado por
decreto do magnificente sodalício. Mas a taxa há, e como há, principalmente
levando-se em conta que tudo o que é de verba partilhada é usada para pagar um
porteiro/pedreiro/zelador que é mais utilizado no convento da ordem do que no
pobre edifício, além da manutenção do elevador e da água/luz comum. Só. E é
cara como em conjuntos de gente grande.
A pergunta que fica é como nós lidamos com as questões que
invariavelmente surgem do convívio, e esse é um enorme problema que não existe
em lugares mais, digamos, comuns. Mais ainda: tratando-se de um prédio
inteirinho de aluguel, é de se supor que haja tratativas diretas com o
senhorio, o que faz com que consigamos deduzir a personalidade desta figura e
nos previnamos de certas susceptibilidades. Só que a ordem é dirigida por uma
mesa de xis componentes, com um prior à frente, que é eleita para mandatos de
dois ou três anos. Isso causa um transtorno adicional: não se cria uniformidade
na administração dos bens da ordem, para o bem e para o mal. Isso significa
que, se por um lado há sempre a esperança de melhoras nos dias ruins, por outro
se dá o exato vice-versa. Vivemos momentos de versa.
Por que digo isso? Porque na atual gestão anda muito difícil
de se conseguir recorrer a quem quer que seja. Em outros tempos, bastava
conversar com o porteiro para ele se encarregar de levar as demandas, isso
quando ele mesmo não resolvia a querela. Ou então conseguíamos resolver as
coisas por telefone, ainda que fosse para sermos enrolados. Era até possível se
encaminhar ao gabinete do prior e conversar com ele em carne e osso, e, com
isso, chorar as pitangas com quem de direito. Mas agora a coisa está um bocado
diferente. O tal porteiro, em vista dos tempos difíceis, tira gentilmente (nem
sempre) o corpo fora, restando conseguir uma audiência com vossa eminência,
porque os assessores de seu gabinete pouco ou nada fazem, a não ser destilar
sua arrogância. E olha que eram pessoas que trabalharam em outras gestões e, se
não eram flores de candura, ao menos eram mais afáveis. Por mais justas que
sejam as demandas, e excluídos casos especialíssimos, a conduta tem sido sempre
parecida: uma escuta medianamente impaciente e a afirmação de que as regras
estão firmemente estabelecidas e que mudanças não serão aceitas. Em caso de
insatisfação, poderemos negociar as cláusulas do distrato. Isso apenas para um
caso de pedido de conserto de uma infernal manilha de esgoto, que faz recender
a merda o poço do elevador todo fim de tarde, quando, suponho, as atividades
gástricas vão chegando ao final de sua novela diária. E, como esse, há muitos
outros casos de respostas similares, que ocorreram em outras unidades,
preferencialmente de não-membros da tal confraria, já que os membros se borram
naturalmente, em qualquer ocasião. Não é a expressão da frase inicial desta
postagem?
Não é só, entretanto, em um âmbito tão reduzido que tal
fenômeno acontece, haja vista ao já cansativo ambiente de confronto que temos
vivido em nosso meio social, algo que é notado por absolutamente todo mundo em
Pindorama. Qualquer posição que você adote que redunde em apontar para causas
sociais, já faz surgir o grito: "vai pra Cuba*"!!!
Eu, em particular, não tenho nada contra nem a favor de
Cuba. Aliás, tenho sim. O rum nativo é ótimo, a banda do Buena Vista Social Club
é uma das melhores em ritmos caribenhos e seus charutos são famosos. Um amigo
me trouxe um há pouco tempo atrás, e estou esperando alguma oportunidade
especial para fumá-lo em paz.
Na verdade, não sou tão alheio à realidade cubana quanto quero fazer crer. Sei de toda a transformação social movida pela educação e saúde do regime de Fidel, que os esquerdistas empedernidos gostam de papagaiar, e também sei das liberdades restritas que os direitistas bovinos arrotam com gozo. Em sinopse, entendo que ditaduras não são boas e que pressões exteriores também não são. Desta forma, penso que o grande erro do regime cubano está em não apostar na democracia a partir de algum momento, o que poderia fazer com que o sistema maturasse para uma experiência única (ou que fosse abandonado). Por outro lado, não consigo entender porque até hoje os embargos econômicos não foram levantados, já que quem sofre é o povo e não os governantes. Mas a cada vez que se fala em pobreza: vá pra Cuba. A cada vez que se fala de desigualdade social: vá pra Cuba. A cada vez que se fala de direitos de minorias: vá pra Cuba. A cada vez que se fala em educação e saúde deficiente: vá pra Cuba… não, aí não se fala.
Sabe o que é isso? Uma falácia. De belo nome, diga-se de
passagem. É o ergo decedo, que, numa tradução livre, significa “então saia”,
também conhecida como falácia do crítico traiçoeiro. Trata-se de uma falácia de
dispersão e relevância que consiste em deslocar o foco de uma crítica realizada
no interior de um grupo para uma exclusão desse membro. Falando menos
complicadamente, o ergo decedo acontece quando alguém faz uma crítica no
interior de um grupo voltada contra esse mesmo grupo. No exemplo do meu prédio,
são os moradores; no de Cuba, são os brasileiros. Ao invés de se atacar o
argumento da crítica, o que se faz é "expulsar" o membro que faz a
crítica, daí seu curioso nome. É como se alguém não tivesse o direito de
criticar o grupo pelo simples fato de pertencer a ele. Eu torço pelo
Corinthians, então não posso falar mal do Corinthians. Eu sou filiado ao
partido X, então não posso denunciar linhas de pensamento incorretas. Eu gosto
do Pink Floyd, então jamais poderei dizer que tal música não me agrada. O
crítico é tido como um traidor do movimento, e, portanto, torna-se um
indesejável. O problema é que neste tipo de argumento falho deixa-se de
contrapor proposições que podem ser plenamente validas. Não há ergo decedo
quando o ataque é à crítica, e não ao crítico. Se o corpo diretivo disser que
não consertará o cheiro fétido porque o projeto precisa de aprovação da
prefeitura, pronto, está respondido. Notem como essa falácia é extremamente
comum, e que tem uma boa quota de ad
hominem junto dela.
Mas por que há quem queira dominar opiniões e estabelecer o
que é um valor para um determinado grupo ao qual se pertença? Quem estabelece o
que é justo e valioso para o pequeno edifício onde este escriba reside?
Quando falamos dessas coisas, pensamos no poder, e quando
falamos em poder pensamos imediatamente em monarcas e presidentes, ou seja, os
mandatários maiores. Mas temos essa impressão porque se trata da esfera mais
externa de uma longa cadeia de camadas de poder. Sob um país gerido por um rei,
há duques que comandam exércitos, marqueses que gerenciam fronteiras, condes
que comandam regiões e barões que espalham influência pelo seu nicho social.
Substitua por presidentes, generais, cônsules, governadores e prefeitos para
termos uma equivalência aproximada nas repúblicas. Ainda assim, estamos falando
de poderio formal, que não representa exatamente os átomos de poder. Estes
ocorrem aí mesmo, dentro de sua casa.
Quando somos crianças, justamente por sermos ainda incapazes
de administrar por si mesmos as nossas vidas, somos expostos a um sem número de
ambientes e situações onde cabe a nós baixar as orelhas e obedecer. Por uma
disposição não escrita, há uma hierarquia de poder onde você é o último a falar
e o primeiro a apanhar. Seu irmão mais velho é investido de um pouco mais de
privilégios, podendo ser nomeado seu tutor nas ausências dos pais. Em uma
sociedade tipicamente ocidental e cristã, há ainda um acordo tácito que
estabelece ser a última palavra pertencente ao pai. Toda a malha de poder de
uma família gira em torno da autoridade paterna, in genere.
Acontece que este exercício não é inequívoco. Em
determinadas circunstâncias, o menor dos meninos da casa também consegue
manifestar alguma forma de poder, seja na forma de birra, ou de inconfidências,
ou mesmo em uma sutil troca de favores. Desta forma, o poder não tem um dono,
mas sempre está inserido em uma relação. Por isso, o pai que é dono do tacão de
repente se vê nas mãos de um fedelho que testemunhou uma escapadela do genitor danadinho,
fazendo com que se inverta a lógica da obediência.
Idem se você, ainda criança, pensar-se na escola. Também
aqui temos uma hierarquia bem definida: o diretor é a autoridade maior, seguido
dos chefes de períodos e dos professores. Nesta escala, os últimos estão na
base, mas na sala, um cosmos menor, estão no topo - eles ditam as regras aos
alunos, dizendo a eles o que vão aprender, como devem se comportar, qual
horário cumprir e assim sucessivamente. Do ponto de vista do professor, todos
eles deveriam estar em uma mesma escala. Entretanto, pelos mais diferentes
motivos, o professor tem mais deferência com alguns, e mais rigor com outros. É
que, de uma forma ou de outra, os alunos também entram na luta pelo poder
exercendo, como podem, sua influência sobre o mestre. É o caso dos bons alunos
que servem de monitores na sua ausência, que dão o seu bom desempenho como
moeda de troca para obter suas vantagens. E mesmo dentro da esfera mais básica,
na relação entre alunos, também as relações de poder se desenvolvem sem uma
hierarquia clara, citando como exemplo o
que escrevi neste texto. Ou seja, bons alunos conseguem proteção dos maus
alunos, que, por sua vez, ganham tarefas prontas dos bons. O movimento é full duplex, como dizemos em
informática.
Até mesmo na mesa de um barzinho se pode constatar uma
relação de poder no varejo. A decisão sobre o que será bebido, o local do
encontro, a própria ideia do happy hour
sempre partirá de alguém que quer ter apoio em sua decisão. Também será de
alguém a proposta de que se rache o todo, no que pode haver a contraproposta de
que cada um terá sua própria comanda. Ou seja, o poder não só se exerce nos
microcosmos, mas também se estabelece a resistência a ele, mesmo que na forma
de uma opinião contrária que busca angariar apoio.
Quem me dera tudo isso tivesse saído de minha cabeça, mas aqueles
que estão mais antenados já sabem que se trata de itens da teoria de Michel
Foucault, um dos mais brilhantes filósofos contemporâneos, fresco em nossa
memória. É o que ele chamou de microfísica
do poder. Em síntese apertadíssima, ele dizia que o poder acontece nas
menores relações humanas, e não apenas nos níveis mais altos das hierarquias.
Pelo contrário até. O poder é algo que se exerce em rede, não sendo um objeto
que se pode possuir ou localizar.
Da forma que demonstrei acima, podemos perceber o quanto as
relações de poder estão diluídas. Para Foucault, é a microfísica do poder, esse
exercício miúdo das relações mais quotidianas, que explica o poder maior,
aquele em quem logo pensamos quando usamos o termo. O poder está desde a casa,
a escola, a quadra, o clube, com sua variação constante de polo, porque nada
mais é do que uma estratégia. Ele não é um lugar, uma pessoa ou um papel
social. Antes disso, é uma emanação que vem de todas as partes. Em alguns
momentos, o poder é exercido como coerção, seja pela força, seja pelo
convencimento, ou como atitude racional, onde as partes concordam que a relação
deve ser da maneira que está delineada porque é vantajosa para ambas, mas de
qualquer forma ele sempre está envolvido onde as pessoas precisam negociar suas
posições, anseios, preferências. Percebam, em adição, que sempre haverá uma
intenção no exercício do poder. Ninguém o pratica sem querer, como se fosse um
mero instinto, assim como a obediência que, seja resignada ou conformada,
também é consciente.
No final das contas, Foucault quer dizer que o poder é
inerente às relações humanas, e, sendo a sociedade formada por camadas
sobrepostas, como se fosse uma cebola, é preciso pensar que o cerne está lá no
meião, e não na fina casquinha que fica por cima de tudo. Isso porque o poder
não tem um dono, mas uma pessoa que o exerce, e outras sobre quem o poder é
exercido. A esses, se não há o exercício, resta a resistência, que, ao fim e a
cabo, é também um modo de colocar o poder em prática.
E a situação do meu prédio nada mais é do que uma aplicação
das teorias de Foucault. Tomar um ergo decedo na cabeça nada mais é do que um
dos métodos pelos quais uma parte quer obter a obediência da outra. Poderia ser
uma maneira mais civilizada, cuja resistência não fosse o abandono de um
pagante em dia do lugar, que procuro fazer cada vez mais. Contra o poder,
usamos o poder. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Foucault é um dos énfants térribles da Filosofia do século
XX. Costuma ter uma linguagem meio difícil, mas não chega a ser
incompreensível. Recomendo o livro abaixo acerca do tema.
FOUCAULT, Michel. Microfísica
do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2012.
* Existe a variante Venezuela, mais recente.
Pessoas, por último, um recado: não baixem a guarda. No
último mês, são três membros da família que morreram por conta da covid, sempre
com o mesmo script: toma a primeira dose e esquece que ela não é poção mágica.
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