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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 8º lugar: Itanhandu e o mundo real como base da História

(Como são explicadas as mudanças do mundo? É preciso olhar para fora ou está tudo aqui dentro mesmo?)

“Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina sua consciência”

Marx

Olá!

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Quando vim para as Terras Altas da Mantiqueira pela primeira vez, meu fluxo incluiu alguns vai-e-vem. De Passa-Quatro para Itamonte, de Itamonte para Passa-Quatro, e depois de novo e de novo. Não vou ficar explicando essas idas e vindas, sendo suficiente saber que, entre ambas, tinha uma cidade com uma bela fábrica na beira da estrada, e que eu pensava em entrar, sem nunca o fazer. Com o espírito de resgate deste novo périplo, chegou a hora. Vamos conhecer Itanhandu.

O curioso nome da cidade significa “ema de pedra” em tupi-guarani, embora haja outras interpretações possíveis no site da prefeitura (aqui). De toda forma, está correlacionado à bacia hidrográfica à qual a cidade pertence, em especial ao quase onipresente Rio Verde. Esse fato não passou desapercebido na praça central da cidade, onde vemos a ema que abre este texto.

Itanhandu está naquele pedaço mineiro que foi parte do teatro de combates da Revolução Constitucionalista. Para um paulista como eu, é um tanto estranho perceber como há vanglória em um evento de desunião de um país, mas, vá lá que seja, faz parte da história e precisamos compreendê-lo bem.

A igreja matriz é dedicada, mais uma vez, a Nossa Senhora da Conceição. Essa santa é popular no Brasil por derivação direta da devoção dos portugueses, mas, de lá, a questão parece um tanto difusa, não se apegando a um evento tão direto quanto a contada aparição da Santa na Cova de Iria, em Fátima.

Dentro da igreja, relembramos de dois santos praticamente endêmicos desta redondeza: a Nhá Chica (leiam este texto para saber mais)...

… e o Padre Vítor, famoso por ser o primeiro escravo a ganhar os galardões da beatitude.

Estamos em uma cidade que fazia parte do traçado da antiga rede mineira de ferrovias, que causa saudades em tanta gente (leia mais aqui), e a cidade ainda mantém em boas condições a sua estação. O que está em más condições é a qualidade da minha foto.

Na ponte que cruza o Rio Verde, há um pequeno memorial. Este rio, que repeti tantas vezes nessa jornada, tem em Itanhandu as suas nascentes, e a parte rural tem boas trilhas e cachoeiras, especialmente a do Vô Delfim, a mais popular delas.

Mas e a tal fábrica? É uma empresa de laticínios, que produz tudo o que o leite pode dar, em um esquema muito diferente daqueles que são desenvolvidos pelos pequenos produtores.

Enquanto nos pequenos sítios a produção se fecha em um ou dois produtos, no máximo, aqui o que impera é a variedade, sendo que toda a região vende esses produtos, menos românticos, mas mais em conta.

Nos hotéis, por exemplo, é uma presença quase obrigatória a sua manteiguinha, vendida em pequenos tabletes, para uma refeição única. Até mesmo uma cachacinha se acha por lá.

São todos produtos bons, e, embora seja uma indústria, dá aquele arzinho de campo que seduz a gente. Só que, em uma terra conhecida pelos artigos artesanais, feitos por produtores que receberam seus conhecimentos dos pais e que não sabem se os passarão para os filhos, é um pouco estranha a presença de uma fábrica desse tamanho, uma coisa quase contraditória. Mas é desse material que a realidade é feita, de idas e vindas em que não notamos o que está no meio do caminho, e nem o que está por trás das coisas. Talvez devêssemos dar mais atenção a esses detalhes, porque eles dizem muito e explicam tudo.

Se vocês prestarem bem atenção, para além da poesia das coisas que eu falei, há uma proposta para lançar o olhar para a realidade que vai além do mero senso comum, ainda que de forma muito rudimentar. É um método, uma maneira predefinida para se atingir um objetivo. Quando combinamos esse olhar com a análise social, não há como não pensar na metodologia de Karl Marx. Ora, ora, não saia do texto agora, nem sinta raiva, porque eu não sou marxista e não há como excluir sua importância para a filosofia. Mas todas as vezes que eu vou falar deste pensador preciso fazer um rápido disclaimer, para não atiçar a raiva de cabeças mais suscetíveis. Apenas tente compreender de maneira neutra como funciona sua proposta, e, depois, concorde ou discorde. Vamos tentar?

Quando um aluno de universidade ou pós-graduação está para concluir seu curso, ele precisa passar pelo crivo do horrífico TCC, com seu terrível orientador e sua amedrontadora banca. Normalmente, é preciso declarar a metodologia aplicada nos trabalhos, o que é típico para quase todos os cursos: pesquisa de campo, revisão bibliográfica, experimento laboratorial e assim por diante. Nos trabalhos de filosofia, é necessária uma declaração adicional, que é a abordagem de pesquisa filosófica. São várias, sendo que as mais comuns são a fenomenologia, a hermenêutica, o positivismo e as dialéticas, sendo que aqui o caminho se bifurca: há a via hegeliana ou a abordagem marxista, o materialismo histórico-dialético. É sobre esse último que eu vou me debruçar.

Normalmente, os manuais de filosofia costumam destrinchar esse termo para fazer a explicação, mas há um probleminha. A sequência que o nome da metodologia tem fica um pouco invertida, no meu humilde entender. Seria melhor se falássemos em uma dialética material-histórica. Isso porque o fluxo dialético é o seu grande fundamento.

Quando nós observamos qualquer fenômeno em nossa vida, temos a tendência em recortar átomos de tempo, como se aquilo que temos diante dos nossos olhos fosse um retrato que se bastasse em si mesmo. Como exemplo, vou falar de algo que vi agora pouco, ao cair da noite. Da janela do meu quarto, olho para a esquerda e vejo uns cinco ou seis meninos correndo atrás de uma bola. Há a mãe de um deles em vigilância, enquanto dedilha seu celular perto da porta do bar da esquina. Ah, conheço-a; é a manicure do meu prédio sem metafísica*. Os meninos são seus filhos, além do menino da peruana que vende quinquilharias no Brás e os do cachorro louco do segundo andar. Fico observando os passes ainda meio destrambelhados e os gritos intensos, que se multiplicam ao vazar o goleiro (que usa chinelos à guisa de luvas) e atingir em cheio as barulhentas portas de ferro das lojas de essências, causando estrépito e alvoroço, incluindo do cachorro de um deles.

Olhando assim, parece que temos nada mais, nada menos, que nosso prosaico quotidiano, sem grandes novidades no front. Mas um olhar um pouco mais acurado vai fazer com que levantemos inúmeras questões. Por que aqueles meninos estão brincando na rua, e não em uma quadra, ou clube? Por que é necessário ter uma mãe vigiando a brincadeira dos meninos? Até mesmo pode-se perguntar por que o menino no gol está com os chinelos nas mãos, ao invés de luvas. Todos esses questionamentos desnudam as relações de causalidade que levaram àquele momento que observo, tornando claro que houve um sem-número de componentes que a fizeram ficar como é. Não há nada na realidade que não entre em uma relação de anterioridade:  as coisas são como são porque uma série de fatores antes desembocaram nelas. Em suma: a realidade é processo, e o momento nada mais é do que um estrato desse processo.

Mas agora olhemos com mais cuidado para a tola cena em si. Esse cantinho do centro de São Paulo foi apelidado carinhosamente de Faixa de Gaza. Esse nome se dá pelo “pega prá capar” que acontece entre “noias” e polícia, ou, às vezes entre eles mesmos em sua eterna briga pelas pedras. De que processo esse estágio atual faz parte? Da degradação do centro de São Paulo, que, embora completamente estruturado, não atrai habitantes definitivos; dos erros das políticas públicas, que não soube dar destinação a grandes áreas que perderam seu uso, com o mais clássico de todos sendo a antiga Rodoviária da Luz; do aumento do tráfico e da adição de novas drogas, bem mais viciantes e problemáticas, como o crack e o recente k9; da indefinição de políticas de habitação popular; do desinteresse pela parte dos proprietários de imóveis em dar manutenção adequada aos seus bens, e, como esses, muitos outros fatores. Cada um deles, uma vez isolados, também estão inseridos em uma rede de causas e consequências que tem seus próprios fluxos, e a análise tende ao infinito, como se pode perceber.

Por outro lado, a cena em si demonstra uma tranquilidade prosaica, uma certa estabilidade. Mas ela carrega em si mesma todas as condições para ocorrer desequilíbrios. A mãe se obriga a estar lá pela insegurança da Faixa de Gaza, que a usam pela ausência de espaços públicos mais adequados, ou pela impossibilidade de pagar por uma quadra fechada. Mesmo o menino com mãos de chinelo demonstra a falta de condições materiais de ter uma luva, e não apenas o sonho inocente de ser um goleiro de renome. Toda disposição situacional é prenhe de contradições, e aqui vamos encontrar as instâncias dialéticas.

Neste ponto, as teorias de Marx e Engels mostram sua dependência com relação à dialética hegeliana. Já nela, detecta-se a realidade que carrega suas próprias contradições, e como é o trânsito entre elas que movimenta o mundo. Como sabemos, os marxistas têm fortes críticas ao capitalismo, e, de fato, podemos detectar algumas de suas ambiguidades com facilidade. Um dos seus pilares, por exemplo, é a livre concorrência, que determina que as empresas e pessoas poderão utilizar livremente os recursos que desejarem para exercerem suas atividades e conseguirem comerciar, desde que respeitados os limites da lei. Esses limites são óbvios: não se deve escravizar trabalhadores, não se deve explorar atividades ilícitas, e assim sucessivamente. Entretanto, a livre concorrência tem uma doença interna: um dos players pode crescer a tal ponto de se tornar monopolista no mercado. Não há nenhum crime sendo cometido, a não ser o próprio exercício da livre concorrência. Por exemplo, se um empresário tem fôlego financeiro para baixar seus preços a ponto de extinguir a concorrência, não estará descumprindo regras do próprio sistema. Idem quando as empresas de determinado setor se associam para impedir que os preços de seus produtos não baixem além de um certo limite. Para impedir que esses fenômenos ocorram, criam-se leis antidumping, antitruste e assim por diante. Esses nomes em inglês denunciam que não se trata de eventos do nosso capitalismo tupiniquim, mas do centro nervoso do capitalismo mundial, Estados Unidos à frente. Leis são antítese da liberdade econômica, mas que precisam existir para garanti-la. Percebem a contradição?

Isso não é uma exclusividade do capitalismo, mas de todo e qualquer sistema que se observe, porque a estrutura dialética está na medula da realidade. A questão que divide Marx e Engels de Hegel está no fato de que, para este último, a mola propulsora da realidade é o Espírito, uma espécie de fusão entre razão e natureza, que tem um certo caráter metafísico, já que sua definição, como se pode ver, não exclui alguma forma de idealização. No marxismo, esse impulso é outro, baseado no real concreto. Não se trata da exclusão pura e simples de instâncias metafísicas, mas da conscientização de que, independentemente delas, as coisas se desenrolam no mundo palpável, imanente, concreto, material. É na materialidade que se escreve a história e se dão os conflitos dialéticos. Sendo assim, o motor da história somente poderia se dar no plano do material, e Marx e Engels entendem que é o desequilíbrio entre as classes sociais este impulsionador. Patrícios e plebeus, suseranos e vassalos, brâmanes e sudras, esparciatas e hilotas, burgueses e proletários sempre vivem em um estado de tensão, porque há uma permanente diferença entre as condições materiais de cada uma dessas classes: quem tem privilégios, quer mantê-los; quem não os têm, quer obtê-los. Como em todas as sociedades há esse desnível e esse confronto, tudo o que acontece na esfera social se deve, de uma forma ou de outra, a esse fermento.

Perceberam como não há nada de metafísico, espiritual ou idealizado na proposta marxista? Como a análise deve se dar no plano material, com a realidade concreta exposta aos olhos? Eis porque a dialética de Marx e Engels é chamada de materialista, independentemente da existência ou não de qualquer instância transcendental.

Estando as coisas nesse ponto, vamos perceber uma guinada de volta ao pensamento hegeliano. Embora Hegel baseie sua ideia de progresso no idealismo e nas representações, o fato é que ele não exclui a historicidade dos fatos. Mais ainda: ele disserta firmemente sobre o modo como a própria razão é histórica, ou seja, sensível à transformação da realidade e ela mesma sujeita a mudanças no tempo. Entretanto, no campo do marxismo teremos um reposicionamento da consciência, que corresponde a momentos históricos determinados, ou seja, adaptados ao seu próprio tempo. A consciência é entrelaçada com a própria história: a maneira como ela enxerga o mundo está condicionada ao modo como foi historicamente inscrita nas mentes. Metafísica, religião e ética possuem seus valores em razão da variação dos conflitos sociais, se tivermos em vista que a característica fundante das sociedades é a necessidade da interação com a natureza através do trabalho.

É óbvio que, como qualquer outra metodologia, também aqui temos calcanhares de Aquiles. No caso, o materialismo torna boba qualquer pesquisa metafísica, objeto que efetivamente faz parte da filosofia. Talvez a práxis que fundeia o marxismo faça com que não haja muito sentido, mas objetos intangíveis não podem ser proibidos de ser pesquisados. Outra questão é que colocar a régua da luta de classes como único motor da história por vezes faz um efeito de turbilhão, ao invés de espiral dialética, partindo da premissa de todos os aspectos que podem afetar qualquer situação social do mundo, que, pelo princípio de causa e consequência podem chegar ab ovo. Por fim, o materialismo histórico-dialético exige muita habilidade para não se cair em situações forçadas, em antíteses que não existem e em sínteses absurdas. Um marxista empedernido que quer usar a metodologia sem bagagem suficiente pode produzir textos risíveis, totalmente desvinculados da realidade que persegue. E não é isso que se espera de uma boa análise.

Pois bem. Dialeticamente, abasteci minha mochila térmica de objetos materialmente industrializados enquanto vivo propagando as benesses da manufatura artesanal, e venho aqui para contar historicamente meus volteios para vocês. Bons ventos a todos, porque amanhã é dia de ir embora.

Recomendação de leitura:

Marx e Engels tratam de sua metodologia em várias obras. Vou recomendar justamente aquela de onde extraí a epígrafe.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008 

* Entendedores entenderão

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