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domingo, 31 de julho de 2022

Sobre a navalha de Ockham, que não é uma mera implicância metodológica

(Vou detalhar um pouco mais a navalha de Ockham, que é muito comentada, mas pouco explicada) 

Olá!

Já tive a oportunidade de apresentar meu cachorro neste humilde espaço. Meu, não; de verdade, ele é da minha filha, mas é como se fosse, principalmente na hora dos perrengues. E ele tem passado por um dos brabos. Isso me colocou numa clínica veterinária nos últimos dias.

Enquanto eu estava lá sentado, contendo o ímpeto do adoentado, porém ainda energético vira-latas, escutei o bate-papo de uma das veterinárias com outro dos consulentes, versando sobre as vantagens da utilização do óleo de ozônio no tratamento de afecções cutâneas (justamente um dos malefícios do cliente que eu trouxe). Minha espinha arrepiou do "coquis" ao cerebelo, e provavelmente eu faria de conta que iria ao banheiro para fugir, mas a consulta já estava paga, e não havia muito mais a fazer.

O fato é que outra veterinária fez o atendimento. Observou as lesões, pediu exames e agendou retorno para apurar a moléstia do pobre cão, recomendando alguns medicamentos para o interregno entre ambas as visitas. Maliciosamente, introduzi o tema do óleo, afirmando ter ouvido dizer de seus efeitos miraculosos e se não era o caso de se fazer utilização. Ela me olhou com cara reprovativa e afirmou ser melhor um spray de Rifocina, o que a coloca, para meu gáudio e alívio, no campo dos médicos cooptados pela indústria farmacêutica que tanto conspira contra a saúde pública e a economia popular. Em outras palavras, uma daquelas pessoas que confia na ciência.

Lá vem você com a mesma polêmica de sempre, dirá um imaginário interlocutor. É verdade, já abordei muitas vezes este tema, e continuarei abordando. Não só porque a ciência brota da filosofia, o que torna a temática correlata, mas também, e principalmente, porque precisamos fazer aquilo que podemos para combater a ignorância, seja ela qual for. Que, como se pode observar do pequeno relato acima, não é privilégio de ninguém: nem do fazedor, nem do doutor.

Nós somos povoados de incertezas. A ciência e a filosofia não chegam à verdade, mas à probabilidade, à verossimilhança. A verdade, para ser bastante franco, não existe. É simples constatar a falta de firmeza que ela tem. Qualquer critério que adotemos trará problemas. Um argumento de autoridade, por exemplo, é completamente falho. Não há como assegurar que um mentiroso contumaz não diga algumas verdades, nem que a mais preciosa de todas as sapientes autoridades não escorregue algumas vezes com a realidade, pelos mais diferentes motivos. Os sentidos também se iludem, e os conhecimentos se atualizam. Portanto, o melhor que temos é a aproximação, e não o alcance da verdade incontestável.

A história da evolução científica é a história do aperfeiçoamento dos seus métodos. Como o nascedouro de qualquer ideia é uma concatenação lógica, já a partir daí é possível embutir limites no pensamento. É como quando queremos achar explicações para aquelas coisas comezinhas, bem do dia-a-dia. Você quer achar a coleira do seu cachorro, e ela não está no lugar habitual. Você vai primeiramente procurar em outros cantos da casa, e não em cima do telhado. Isso é normal, isso é lógico. E por quê? Porque há uma linha que te leva por um caminho simples, que deve ser a primeira solução para um problema. Esse é um atalho que facilita a sua vida, que te faz seguir pelas sendas mais óbvias. Você só vai procurar caminhos mais espinhosos depois de esgotar os mais simples. Além disso, achar a tal coleira embaixo do sofá não te trará novos questionamentos, mas achá-la dentro do forno vai levantar novas questões. Essa simplicidade na busca lança mão de uma técnica conhecida como navalha lógica.

Uma navalha lógica é um "dispositivo" metodológico que elimina certas qualidades de argumentos, de modo a delimitar adequadamente o tamanho de um campo de estudo ou de ferramentas a serem utilizadas em determinada área. A mais conhecida hoje em dia é o princípio da falseabilidade de Karl Popper, a quem descrevi neste texto. Esta premissa diz que uma afirmação científica é aquela que pode ser provada falsa, ou seja, pode ser colocada experimentalmente em uma situação em que é provada errada. O dragão na garagem de Sagan e o bule interplanetário de Russell são exemplos de afirmações que podem sofrer a ação da navalha da infalseabilidade. Afirmações que não podem ser falseadas não estão no escopo da Ciência.

Mas a mais célebre de todas as navalhas lógicas é conhecida como Navalha de Ockham. Já dei uma palhinha sobre ela neste texto, mas é preciso falar mais sobre ela, porque a maneira como surgiu é muito mais sofisticada do seu enunciado pode fazer supor, porque ela faz parte de um corpus que foge de uma mera disposição em praticar ciência de uma determinada maneira.

A primeira questão diz respeito a um cenário improvável. Guilherme de Ockham, o pensador que pôs na pedra o princípio da navalha, é um frade franciscano vivendo em plena Idade Média, quando a autoridade da igreja estava ainda na crista da onda histórica, com consequências nada agradáveis aos seus opositores. A parte mais conhecida da navalha fala no princípio da parcimônia, do qual falaremos melhor mais tarde, mas desde já podemos pensar: como um religioso pode desencaixar Deus de suas relações racionais com tanto conforto e cara-de-pau?

A resposta vem na forma de oposição ao pensamento de celebridades como Santo Anselmo e São Tomás de Aquino, cujo cerne filosófico está na conciliação entre fé e razão. Para o frei Guilherme, esse é um erro crasso. A grande chave do pensamento dos filósofos medievais era criar uma hierarquia entre fé e razão, com primazia da primeira. Guilherme de Ockham coloca na mesa a seguinte premissa fundamental: Deus é onipotente. Pergunte a qualquer religioso minimamente instruído e ele concordará indisputavelmente com essa assertiva. Se Deus é onipotente, ele pode tudo, não é mesmo? Ele pode inclusive subverter a lógica que reside por trás da razão, e qualquer uso que queiramos fazer dela tem que levar isso em consideração. Por esse motivo, não há como estabelecer uma hierarquia entre fé e razão: elas são irreconciliáveis para um deus que pode tudo.

Esse é o primeiro passo da aventura intelectual de Guilherme. Mas a coisa vai além. Costumeiramente, ouvimos falar de sua navalha como um princípio metodológico, mas ele é muito mais profundo que isso, porque vai até a raiz metafísica das aplicações lógicas. Vamos ver isso no detalhe.

Uma das maiores discussões da Idade Média diz respeito à questão dos universais. Em brevíssimo resumo, um universal em filosofia é uma característica comum dos diferentes entes de uma mesma espécie, que lhe dá uma essência. Por exemplo, vemos diferentes jogadores de futebol espalhados pelo mundo, cada um com sua peculiaridade: uns são mais baixos, outros são mais fortes, alguns mais habilidosos, tem quem seja mais importante taticamente e por aí vai. Olhados um por um, são todos diferentes entre si, mas eles têm um ponto em comum - são todos jogadores de futebol. Essa coisa que os unifica é o chamado universal, um conjunto de características que lhes é comum. Em qualquer lugar do mundo, reconhecemos um jogador de futebol porque ele carrega essa essência. A pergunta medieval era se existia algum lugar onde essa essência perfeita existia de fato, não nos indivíduos jogadores de futebol, mas em um local onde ela existisse em si mesma. Essa é a posição realista, que parece estranha, mas que era defendida por gente do tamanho de Platão e Santo Agostinho. Por outro lado, havia pensadores que viam o termo "jogador de futebol" (nem existia futebol na época) como uma mera designação para aqueles que praticavam o esporte vindo da Bretanha. A essência do jogador de futebol residia em cada um dos indivíduos que encarnava esse papel, e não em um mundo modelar que nosso universo sensível reproduzia. O que existe não é O jogador de futebol, mas ESSE jogador de futebol, o indivíduo, sendo que o termo era um mero designativo, um nome. Por isso, essa posição era conhecida como nominalista.

A aplicação de Ockham começa na discussão da metafísica aristotélica, que, como sabemos, desemboca nas ideias de São Tomás e rega a doutrina cristã de então, especialmente na visão de como Deus interage com os fenômenos universais. Frei Guilherme é um nominalista, que reconhece como raciocínio válido aquele que parte da observação de cada um dos fenômenos naturais. É através do indivíduo que se parte para a generalização, e não o contrário, como amariam dizer os realistas. Então essa coisa de essência que reside em um mundo à parte é, no mínimo, inatingível pelo intelecto. Antecipando o pragmatismo moderno, se é assim, nada tem a nos dizer.

Essa proposição vai bater diretamente na teoria das causas de Aristóteles. Para o estagirita mais famoso do universo, toda a realidade se articula através de um sistema de causas, que vão determinar forma, matéria, origem e finalidade de cada coisa. Eu já escrevi sobre isso no blog, por isso não vou repetir, mas Guilherme de Ockham põe em evidência duas predisposições metafísicas que, segundo ele, são meros penduricalhos na investigação científica. A causa eficiente é uma ilusão. Prefigurando o problema da indução de David Hume, ele nos ensina que a necessidade de causa e consequência é enganosa, ou, no mínimo, não importa. Nós temos por habitualidade que um fenômeno segue outro, que lhe dá origem, mas nem sempre essa assertiva é razoável. Não há nenhuma implicação lógica em dizer que o Sol não nascerá no dia seguinte. Temos essa convicção por todos os dias amanhecermos com os raios de luz nos olhos, mas não há impedimento para que um dia isso não aconteça, seja qual motivo for.

O mesmo pode ser aplicado à causa final. Um princípio científico, no entender de frei Guilherme, não deve propor uma finalidade para os fenômenos. Se ela existir, vai para além da ciência. Um raio não cai do céu para partir a cabeça de um incauto. Um raio cai porque houve um evento meteorológico que o produziu. Se rachou o contribuinte no meio, azar. É cruel, mas a finalidade é uma explicação a mais que precisa ser dada que praticamente inviabiliza uma teoria.

Notem como várias arestas vão sendo aparadas para quem se propõe a investigar um fenômeno qualquer. A proposta é, grosso modo, diminuir a quantidade de penduricalhos necessários para formar hipóteses e dar um critério de escolha de pesquisas. Não é bem a questão de ser simples, mas de reunir menos entidades. Quando colocamos aquelas famosas formulações lógicas, que começam com p e vão caminhando para o final do alfabeto, o ideal é que tenha menos letras possíveis.

A navalha de Ockham atua no princípio da economia da razão. Como se fosse a água colocada no filtro do café, a realidade procurará o caminho mais intuitivo, o mais fácil possível de se fazer em seu caminho rumo à xícara. Ela não fugirá dos efeitos da gravidade, e só desviará da linha reta onde estiver obstaculizada. A razão é a capacidade mental de refletir a natureza da realidade, e ela é "construída" de modo a seguir exatamente essa tendência.

Outro postulado que a navalha atende é o princípio da parcimônia. Sua explicação, por si só, já remete à própria operação lógica: cada entidade colocada em uma relação é um fator a mais a ser provado e considerado, ou seja, é uma chance a mais de erro. Quanto menos entidades existirem numa relação, menores serão as chances de que uma delas desmonte a tese central. Percebem como a tese do freizinho não é uma mera imposição metodológica, como se fosse a arbitragem das fontes da ABNT? Portanto, o princípio básico é a simplicidade, representada pela maior limitação possível aos componentes que atuam em uma teoria. Se várias hipóteses explicam igualmente bem um mesmo fenômeno, devemos escolher aquela que possui o menor número de premissas. 

Um exemplo bastante simples diz respeito ao modo com o qual animais terrestres chegam a ilhas isoladas nos oceanos. Pássaros chegam voando, é óbvio, mas há roedores e lagartos que não poderiam chegar da mesma forma, causando aquela estranheza que nós vamos aproveitar agora. Quais são as hipóteses cabíveis no caso? Vamos colocar três. Uma diria que Deus criou essas espécies diretamente no lugar em que elas se encontram. A segunda imagina que estão lá dispersos por ação da panspermia cósmica, e a última pensa que para lá migraram através das balsas de vegetação.

Na primeira, temos uma resposta com aparência de simplicidade: vontade divina. Mas daí surge uma série de implicâncias. A primeira é saber qual dos mais de três mil deuses do panteão de mais de três mil religiões existentes neste mundão de meu deus. Daí, vamos para as motivações: porque habitar a ilha com espécies semelhantes às existentes em outras partes do mundo? 

Na hipótese panspérmica, temos explicado porque a ilha está populada: minúsculas vidas latentes chegaram à Terra através de meteoros, meteoritos e outros objetos espaciais que entraram na atmosfera. Mas isso só explica o modo como chegaram lá. Não diz de que parte do universo surgiu a forma de vida original, nem como resistiu à viagem espacial necessária e o mais básico de tudo: de onde vieram?

Já a balsa de vegetação precisa de um amontoado de restos de plantas, capaz de se desprender do canto onde repousa e com resistência suficiente para carregar insetos, lagartixas ou até pequenos mamíferos por um mar que esteja relativamente manso, porém com correnteza bastante para transportar seus involuntários marinheiros para longas distâncias.

Qual das três explicações envolvem menos entidades? Qual responde melhor à observação e à reprodução? A teoria da balsa, de repente, parece a mais idiota. Mas ora vejam: ela é testemunhável. Embora não nos dirijamos até a praia com o intuito de ficar vendo bichinhos desesperados ao perceberem se afastar da costa, o fato é que estão lá, sem motivos, nem objetivos. São visíveis e experienciáveis, sem a necessidade de terceiros ad hoc, como a divindade e o extraterrestre, que são introduzidos na tese para trazer explicações desnecessárias, cujo propósito foge daquele fenômeno: provar a influência de deus nos fundamentos das espécies ou teorizar a existência de vida extraterrestre. A navalha, neste caso, apontaria que é preciso primeiro provar que a hipótese das balsas é errada, para depois partir para outra. 

Há um cuidado a se tomar, no entanto. Sempre que não compreendemos adequadamente uma situação que se coloca à nossa frente, tendemos a simplificar o que vai por trás. Um grande exemplo do perigo do reducionismo está no mundo da informática. Todas as vezes que vamos validar um sistema, invariavelmente vem a demanda do botãozinho. Ah, coloca um botãozinho pra fazer isso, um botãozinho pra fazer aquilo. Quando você apresenta o orçamento, o cliente se revolta: mas é só um botãozinho, que preço é esse? Que prazo é esse? Não se percebe as ações que o clique no botãozinho disparará. No extremo, pode até ser um foguete rumo à Lua, porque tudo fica sintetizado naquilo que é aparente. Então a navalha de Ockham não pode ser utilizada como uma armadilha do reducionismo. O que ela preconiza não é a simplicidade indiscutível. Muitas hipóteses simples são insuficientes. Pegue a descrição da cascata de coagulação sanguínea e perceba o quanto ela é complicada. É uma longa cadeia de fatores que são disparados um após o outro, sendo que um somente acontece após outro acontecer - uma enzima estimula uma proteína que se encontra inativa e que transforma certas substâncias em outras, por três vias possíveis. Há inúmeras explicações mais simples, mas que se provaram incorretas. Portanto, decorem, crianças. A simplicidade que a navalha de Ockham preconiza não é absoluta, mas um guia de conduta na pesquisa. 

Eis então, meus escassos leitores, como o desenvolvimento do pensamento filosófico é cheio de nuances. A navalha de Ockham normalmente se apresenta nos compêndios como um postulado metodológico para a pesquisa filosófico-cientifica, mas seu nascedouro não é uma mera convenção, e sim um desenvolvimento que parte da metafísica mais consagrada de sua época. É assim que a filosofia deve ser: uma ferramenta da ousadia. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tem muita coisa em português, mas este livro é suficiente.

OCKHAM, Guilherme de. Lógica dos termos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

Um comentário:

  1. A primeira vez que ouvi falar na Navalha de Ockham foi quando assisti a "O nome da rosa", bom filme do Jean-Jacques Annaud (só fui ler o livro original do Umberto Eco pela primeira vez anos depois; acho até que vou relê-lo agora). O personagem interpretado pelo Sean Connery, como se sabe, foi uma homenagem do Eco a Guilherme de Ockham (e ao Sherlock Holmes).

    Vou ler seu texto sobre o principio da falseabilidade do Popper. Um abraço.

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