Olá!
A maneira mais tradicional de se extrair um bom café é o uso
de coadores de pano. É quase que uma instituição do patrimônio histórico: o
aroma do café que escoa lentamente pela “calcinha da véia”, tomando todo o
ambiente. Geralmente, é o tipo de coisa que acende nossas memórias afetivas,
seja porque lembramos de nossas progenitoras que ainda residiam nos sítios,
dando um ar rural ao ato, seja porque era o primeiro cheiro que sentíamos
quando acordávamos, uma quase-tradução
de vida que se renova a cada dia.
Entretanto, embora seja prazenteira essa invasão de
sensações, é preciso reduzi-la à nossa realidade circunstancial. Para o meu
cafezinho matinal diário, não necessito daqueles aparatos que produzem litros,
mas apenas duas xícaras. Ao invés de um fragmento de saco de farinha e um
suporte, utilizo uma mariquinha e um mancebo, suficientes para conseguir um bom
líquido.
Nome do utensílio: mariquinha
Tipo de técnica: café coado (percolação)
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: Fino a médio
Dinâmica: um coador de tecido com trama moderada sustentado por um
suporte fixo retém as partículas de café enquanto a água faz a extração do
café, desembocando em um recipiente por ação da gravidade.
Resíduos: dependendo da trama do tecido. Costumam ser bem poucos.
Temperatura de saída: Baixa
Nível de ritual: médio a alto
Embora seja um processo simples, a mariquinha não dispensa
que se tomem alguns cuidados. O primeiro é que seu processo de higienização
precisa levar em consideração um paradoxo: é preciso remover muito bem os
resíduos de borra dos cafés anteriores, mas o uso descuidado de sabões e detergentes
costumam adulterar o sabor do café de maneira decisiva. Portanto, não cabe ser
desidioso num momento desses. Uma boa técnica consiste em remover a borra tão
logo ela se possa desprender sozinha do tecido. Logo em seguida, é bom enxaguar
vigorosamente o saquinho de modo a remover o máximo possível de pó. Por fim,
pode-se ferventá-lo por algum tempo. Esse processo diminui a vida útil do
aparato? Sim, e é assim mesmo que deve ser. Um tecido saturado de borra começa
a estragar o sabor do seu café, e chega um momento em que tudo o que há a fazer
é descartá-lo. Faz parte.
Mas no dia-a-dia, após a higienização, é preciso moer os
grãos de modo a deixá-lo com uma espessura que fique não fique fino como uma
farinha, nem espesso como uma semolina (sempre lembrando que o critério é do
freguês – este é o modo como eu faço o preparo). Já com a água aquecida,
escalda-se a mariquinha já no próprio mancebo, para remover qualquer resíduo
adicional e umedecê-la. Despeja-se bem no fundo uma quantidade de pó na
proporção 10:1, ou seja, para um café de 100 ml, usa-se 10 g de pó. Eu prefiro
controlar a intensidade do café na moagem, e não na proporção. Um pó mais
grosso deixa a água passar mais rapidamente, o que gera um líquido menos
intenso, e vice-versa. Colocado o pó, despeja-se bem lentamente e em movimentos
circulares (usando de preferência um bule pescoço-de-ganso) uma quantidade de
água suficiente para apenas molhar todo o café, em uma operação chamada de
pré-infusão, que serve para uniformizar o pó em uma massa única. Após uns
trinta segundos, pode-se derramar a água toda, novamente em movimentos lentos e
circulares, até verter completamente em sua xícara. Açúcar, adoçante ou nada é
seu critério exclusivo. Santé!
Como já sinalizei no primeiro
texto com este leitmotiv, transformar todo esse ritual em uma práxis está
vinculado a um ato muito simples: o de encontrar prazer em coisas simples. E
não se pode realizar todo esse preparo para não se prestar atenção justo no
momento catártico da ingestão. É uma coisa para se fazer aos pequenos goles,
percebendo notas e acidez, espalhando todo o líquido pela boca para absorver a
conjunção de paladar e olfato. E o café conversa contigo, ele te dá a conhecer
sua existência com suas características próprias.
Eu não sou um connoisseur,
apenas apreciador, mas dá para sentir algo de metafísico no rito. O café é uma
coisa que parece ter uma alma, que forma uma conexão com o teu espírito, meu
leitor. Alma… que coisa mais esotérica. Pelo que tenho crido nos últimos
tempos, não me parece fazer muito sentido que as coisas tenham alma. Mas há
casos em que parece existir uma conexão que vai além do físico, que nos pega
tão fortemente pelos sentidos que parece excitar um sexto deles (leia mais aqui).
Mas a história do dualismo corpo-alma é tão antiga que ficou meio que enraizada
na nossa cultura e, mais ainda, em nosso subconsciente. Isso faria todo sentido
do mundo nos tempos da Filosofia
Medieval, quando a questão da natureza de Deus estava em voga, mas que não
deixou de ser real mesmo após o teocentrismo. Aliás, logo após ele tivemos Descartes,
e com ele veio uma separação entre mente e corpo que se tornou clássica.
Essa divisão foi chamada por Descartes de res cogitans e res extensa, ou seja, coisa pensante e coisa extensa, no sentido de
ocupar um espaço no mundo material. A primeira corresponderia a todo o
pensamento da pessoa, sua subjetividade, seu modo particular de perceber o
mundo, enquanto o outro seria uma espécie de limitador, porque necessariamente
ocupa um lugar no mundo e onde a cogitans ficaria contida, obtendo informações
do mundo exterior.
Descartes dá primazia absoluta à res cogitans, ou seja, à
mente. Segundo ele, a certeza pela própria existência se dá unicamente por essa
via, já que é esta que duvida, que raciocina, que pensa, mesmo que seja para se
enganar. Ainda que fôssemos cérebros
na cuba, nossa existência estaria assegurada na clave da ilusão. É irreal,
mas é existente.
Nesse dualismo cartesiano, o corpo representaria tudo o que
há de físico e mecânico em um ser humano, perecível, efêmero, tal qual acontece
com qualquer outro animal. O que seria o grande elemento de diferenciação seria
a existência da mente, que não se confunde com o cérebro, este também parte da
res extensa. A mente não se traduz meramente em neurônios, ela é outra coisa, permanente,
inesgotável, que transcende toda corporeidade. Sim, é a mesmíssima
identificação com a alma, algo que tem uma substância divina.
A prova de existência através do pensamento é muito elegante
de fato, e parece praticamente irrefutável, mas que não está a salvo de
contestações. Incomoda-me um pouco essa ideia. Por que eu obrigatoriamente
preciso tirar de meu próprio corpo aquilo que é percebido por ele? Da mesma
forma que a fumaça que evola do café não é sua alma, mas uma de suas
características físicas, a nossa percepção de mundo, apesar de ter toda a pinta
de estar fora, vem de nossas predisposições neuronais. E por isso fui procurar
alguns contestadores do dualismo. E encontrei Gilbert Ryle.
Ryle foi um filósofo inglês que se debruçou muito fortemente
sobre a questão da linguagem,
mas que acabou derivando para problemáticas sobre a mente. Ele notou que, mesmo
quando a mente não fosse colocada como um sinônimo de alma, a grande maioria
das escolas de pensamentos mantinha o mesmo aparte mente-corpo sistematizado
desde o século XVII pelos racionalistas, Descartes à frente. Por essa razão,
ele chama o dualismo de doutrina oficial,
no meio termo entre a jocosidade e o protesto, pelo exato motivo de ter se
fincado no substrato das teorias da mente até o século XX. Mas apesar de seu
alcance, o raciocínio está errado.
Ryle usa o exemplo da universidade, de quem faço uma
tradução livre. Imagine que você recebe um amigo do interior, e quer mostrar a
ele a universidade onde você exerce suas atividades. Você apresenta a ele toda
a estrutura principal: os prédios, as salas de aula, os auditórios, os
laboratórios, as bibliotecas, os acervos e coleções. Você mostra também os
departamentos todos, as salas de mestres, a reitoria, a tesouraria, o diretório
acadêmico, e até mesmo os componentes acessórios, como as quadras, os ginásios,
o refeitório e a república. Mostra inclusive as pessoas: docentes, pessoal
administrativo, alunos, porteiros, pesquisadores, visitantes, palestrantes,
colaboradores e tudo o mais. Mostra as publicações, os periódicos, os eventos,
a programação cultural e tudo o mais que a universidade produz. Mostra as
láureas, os prêmios, as benemerências, os alunos ilustres e os projetos lá
desenvolvidos que foram desembocar na sociedade, seja na forma de tecnologia,
de projetos sociais, de novas escolas de pensamento. Você mostra tudo o que
tanto te orgulha, e o seu amigo finaliza a visita te perguntando: nós vimos
tudo isso, mas onde está a universidade? Onde ela se encontra em si mesma?
O seu amigo procura na universidade algo que não está nela,
uma espécie de espírito da universidade, e que é seu componente mais primordial.
Mas acontece que a universidade não subsiste sem todos esses componentes que
você mostrou a ele. É mais ou menos o mesmo problema que acontece com a
diferenciação entre cogitans e extensão em Descartes. O corpo é composto por
vários órgãos, cada um com sua função específica, sendo que um deles é o
cérebro, cuja função é, fundamentalmente, o pensamento, completando com
excelência uma unidade operacional semelhante a um aparelho que se põe a
funcionar em perfeita harmonia. Imaginar haver algo fora dele que lhe controla
é como se houvesse um fantasma habitando essa máquina.
Gilbert Ryle vê que o fantasma na máquina nada mais é do que
um problema de linguagem, chamado por ele de erro categorial. E o que é isso?
Já falei aqui
e aqui
sobre eles no Pequeno
Guia das Grandes Falácias, mas é preciso ser mais específico aqui. A
linguagem somente é precisa quando chamamos o pão de pão e a pedra de pedra.
Segundo Ryle, Descartes parte da errônea premissa de que é pode-se tomar como
possível uma relação entre alguma coisa material e outra imaterial, confundindo o pão
com a pedra. Essa é uma das peripécias possíveis da linguagem. Nós podemos
nomear certas propriedades ou sentimentos como se fossem objetos, como a
inteligência, ou o amor. São substantivos que não representam nada de tangível,
nada de materializável. Até aqui, nada de errado. Mas a mente não pode ser
excluída do contexto material do corpo, simplesmente porque ela é parte
integrante do mesmo. Ela não funciona igual aos demais substantivos abstratos, que,
por mais que possamos traduzir em símbolos (coruja para inteligência, coração
para amor) como os dois que eu citei neste parágrafo. Isso porque se de fato
fosse possível que a alma interagisse com um corpo, em algum momento ela teria
que virar uma chavinha material, e, dessa forma, ela não estaria alijada desta
mesma categoria, tal qual o próprio corpo, ora essa. A alma seria uma função
nervosa como é a mente, e uma função nervosa é a função de um corpo, imanente,
tangível, concretizável. Dessa forma, o erro de Descartes não estaria no
desenvolvimento de sua tese, mas no seu próprio nascedouro.
Entretanto, se o sujeito cognitivo imaterial, sintetizado na
mente ou na alma de acordo com a clientela, não é real, qual será nossa
alternativa? Ryle entende que não se pode pensar nenhuma forma de compreender o
sujeito fora de seu próprio organismo. A resposta estava na interação com o
ambiente e o modo com o qual reagimos a ele, ao que ele deu o nome de disposição. Vamos tentar entender um
pouco esse mecanismo.
Vamos pensar na gama de sentidos que temos ao nosso dispor.
Posso amar, sofrer, entediar, enlevar, sentir sede ou fome. Da mesma forma, meu
vizinho de apartamento também pode possuir todos esses sintomas e sentimentos.
Há duas coisas aqui que temos que concordar: a fome que eu sinto não é a mesma
que meu vizinho sente, e, entretanto, ambas possuem o mesmo valor proposicional
– “p tem fome”, sendo que p posso ser eu ou pode ser o vizinho. Até aí
tudo bem?
Com relação a mim, sinto aquele incômodo aperto no estômago
e já sei que estou com fome. Trata-se de uma experiência direta, obtida de
maneira imediata pelo meu próprio organismo. Não há pessoa no mundo que possa
falar melhor sobre minha fome do que eu mesmo. Já com relação ao vizinho, não
tenho qualquer acesso direto, restando apenas o seu comportamento para que eu
possa fazer qualquer dedução, lembrando que seus depoimentos também têm conteúdos
comportamentais. Ocorre que somente através de alguma coleção de observações
empíricas se pode constituir um arcabouço para essa dedução. “A fome faz com
que meu vizinho fique mal-humorado”, “a fome faz com que meu vizinho
empalideça”, “a fome faz com que meu vizinho fique com o olhar perdido” são proposições
que vão se ajuntando para que eu deduza seu comportamento. Portanto, através de
uma base empírica, consigo estabelecer uma relação entre a experiência interior
do meu vizinho e seu comportamento.
Percebem que, levando tudo isso em conta, nós só conseguimos
assegurar a existência de nossa própria mente? Percebem que não conseguimos
assegurar a mente de nosso vizinho, a não ser que consideremos válida sua
detecção por meio de inferências? E que, por fim, sendo a mente o principal
critério de existência, não podemos assegurar logicamente a existência do cara
que mora atrás da porta da frente, que eu vejo entrar e sair todo santo dia,
que faz barulho e reclama da fome, da sede, do barulho?
Mas o estudo do comportamento é justamente a chave para a
descoberta do fenômeno do raciocínio, o que aproxima Ryle dos psicólogos behavioristas.
Segundo podemos pensar, a atividade mental tem como principal característica a
tomada de decisões inteligentes. No entanto, mesmo que discordemos radicalmente
da doutrina oficial, continuamos tendo as intenções internalizadas disponíveis
para aferição apenas por nós mesmos. O que nos permite verificar a inteligência
alheia é sua ação pública, ou seja, aquela que está exposta para observação do
mundo. Este comportamento mensurável, entretanto, não é unívoco. Ele varia essencialmente
pela prática e pela interação com o ambiente. Um dos exemplos de Ryle diz
respeito à fala. Uma criança não aprende a falar porque primeiro pensou, para
depois articular a voz. Ela simplesmente o faz, e molda seu aprendizado de
acordo com o que seu ambiente lhe devolve de informações: se um vagido qualquer
não obtém reação de ninguém, ela registra essa experiência e tende a descartá-la,
sendo que o exato contrário ocorre quando obtém resposta. Pensar e agir,
portanto, estariam em contiguidade.
Mas isso não seria a tradução de meros hábitos, e ao fim e
ao cabo, as reações de diferentes pessoas se assemelhariam muito, sendo que não
é isso o que observamos na prática? Ryle pensa que existe uma orientação
disposicional que é diferente em cada indivíduo, que é o que exatamente leva à
variação. Colocados diante de um novo desafio, cada um de nós pende para uma
certa solução em razão de nossa disposição, o que leva a resultados
absolutamente diferentes entre si. Temos os exemplos do vidro e do açúcar: o
vidro tem uma disposição em ser frágil, e o açúcar em ser solúvel. Isso
significa que o vidro se partirá como em um passe de mágica? Ou que o açúcar se
dissolverá independentemente de seu contato com um líquido? Não, para os dois. A
disposição dá um indicativo de tendência – o vidro se quebrará ao levar uma
pedrada e o açúcar se dissolverá ao ser posto no café. Fora disso, não se pode
assegurar a fatalidade de cada um deles, como se fosse um destino predeterminado.
Com isso, podemos concluir que a inteligência não se faz sem
a interação com o ambiente que nos rodeia. Pensar e agir são duas faces da
mesma moeda – através da ação, que é a externalização de um pensamento, expressamos
uma disposição contida em nós, em um meio que nos permite realizá-la. Em outras
palavras, é a construção de um conhecimento que parte da prática de um ser
pensante. Sem a necessidade de uma mente externa, de um fantasma, de uma alma.
Isso tudo segundo Gilbert Ryle.
Ótimo momento para um café. Bons ventos a todos.
Recomendação de leitura:
Em italiano mesmo, porque não achei na última flor do Lácio.
Vamos lá... Nada que um dicionário on line não possa ajudar.
RYLE, Gilbert. Il
Concetto di Mente. Bari: Laterza, 2007.
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