(Com Hegel, a dialética deixa de ser um exercício de confronto de ideias para ser um espelho da própria realidade)
“A semente é, em si, a planta, mas ela deve morrer como semente e, portanto, sair fora de si, a fim de poder se tornar, desdobrando-se, a planta em si e para si”
Hegel
Olá!
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Prometi, cumpri. Em 2017, eu viajei pela região do Circuito
de Águas do Sul de Minas Gerais, e, por lá, passei por todos os parques de
águas disponíveis, onde me embebedei pelas mais variadas classes crenológicas,
absorvendo sais minerais e oligoelementos a beça, como ferro, magnésio e
enxofre. É uma aventura, porque nem todos são saborosos, como se pode supor.
Sabor de prego, banana verde e ovo podre são contrapontos anti-hedonistas às
propriedades medicinais, mas o espírito de curiosidade vale a aventura. De
todos os parques, entretanto, havia um que estava todo abandonado, clamando por
uma reforma urgente, e eu proclamei a intenção de aqui voltar para vê-lo
recuperado, se fosse o caso. Hoje, seis anos depois, o momento chegou e vim
apreciá-lo como se deve. É o distrito pertencente a Conceição
do Rio Verde, conhecido como Águas de Contendas.
Águas de Contendas, nome que dá a impressão de se tratar exclusivamente do parque, na verdade é a denominação do pequeno distrito que o rodeia, que possui uma pequena população e comércio igualmente humilde, centralizados na capela de Nossa Senhora da Saúde, nome sugestivo para uma região que proclama as virtudes de suas águas.
O parque de águas daqui é o menor de todas as cidades da região. Entretanto, neste momento em que está todo refeito, ganhou novamente toda a sua dignidade.
As águas aqui disponíveis são bastante semelhantes às de todo o circuito, e foram canalizadas para nichos cobertos. Uma fornece água ferruginosa, com óbvio sabor reforçado de ferro, e boa para supressão de males anêmicos.
Outra contém água magnesiana, de sabor levemente adstringente, a quem a sabedoria popular (além de sabichões pseudocientíficos) atribui terapêutica estomacal, sendo que o que há, de fato, é um razoável poder diurético, o que, por tabela, pode melhorar a pressão arterial.
A bica mais curiosa é a de água gasosa, com alto teor de vanádio, mineral que, segundo se diz, potencializa a ação da insulina, o que seria vantajoso para nós, da turma do sangue doce. É de longe a mais procurada, mas que ninguém se iluda: a quantidade de gás não chega nem perto da de um refrigerante, nem mesmo de águas gaseificadas artificialmente, e também não são duradouras. O melhor é curtir o momento e tomar lá mesmo.
Há ainda uma “bica pública” que é onde os moradores do distrito vão coletar seu líquido do quotidiano, e que está sempre enfileirada. Era principalmente a eles que as mangueiras do tempo de fechamento serviam.
Com o remoçamento do parque, deixamos de ter um terreno próximo do baldio para haver um espaço de convívio e visitação, com parquinho para as crianças…
… e mesas de jogos para os idosos, tudo muito simples e agradável para quem quer passar umas horas de paz.
A reforma trouxe ainda o benefício de se compreender melhor
aspectos geográficos e históricos que haviam ficado perdidos no estado em que
se encontravam as coisas. Para os primeiros, tornou-se possível reviver o
riacho que liga ao Rio Baependi…
… enquanto no outro temos a principal curiosidade do parque, uma pedra que virou monumento, pelo simples fato de que se conta que é nela que o imperador Pedro II se sentou para descansar na longa viagem que fez a região, que também trouxe reflexos na vizinha Caxambu, os quais citei por ocasião da viagem que fiz por lá (aqui).
Satisfeito em ver tinindo um espaço que há seis anos atrás
encontrava-se completamente abandonado, imitei o proeminente político e refiz
seus passos, enchendo minha garrafa d’água e se sentando na pedra (outra). Não
para descansar, mas para refletir.
A palavra “contenda” significa o desajuste por alguma
situação onde as partes não chegam a um acordo. Pode, sim, ter o significado
direto de luta física, mas é aquele tipo de palavra que tem o sabor de querela
que se dá nos cartórios e tribunais, mais feita na base dos argumentos do que
dos punhos, como se fosse um debate. Ou seja, uma luta ideal, e não material.
Contendas no campo das ideias são fenômenos absolutamente
comuns, que ocorreram reiteradas vezes no transcurso da história. Racionalismo
versus empirismo, determinismo versus livre arbítrio, idealismo versus
materialismo, dogmatismo versus ceticismo, são apenas alguns exemplos dos
intensos debates que volta e meia populam as mesas acadêmicas no decorrer da
história. Há uma tendência a um eterno antagonismo? De certa forma, sim, até
mesmo porque desde os primórdios da filosofia houve pensadores que
compreenderam que qualquer fato ou fenômeno no universo carrega consigo seu
próprio oposto, sua própria contradição. Nos mais antigos, o jogo de oposições
se dava no âmbito das qualidades: quente e frio, grande e pequeno, alto e
baixo. Mais tarde, isso foi para os argumentos e, por fim, às próprias
substâncias. Portanto, não temos só debates de ideias opostas, mas oposições
que residem dentro das próprias ideias.
O nome disso é dialética, e embora ela exista pelo menos
desde a antiguidade clássica, foi com Hegel que ela deixou de ser uma
ferramenta filosófica para se tornar um espelho da estrutura real.
Eu já mencionei a dialética hegeliano aqui no blog, como
pode ser lido aqui
e aqui,
mas é um conceito tão central na filosofia moderna que eu senti a necessidade
de abordá-la de maneira mais profunda, o que farei agora.
Hegel era um idealista, como bem se sabe. Isso não
significa, como pensaria o senso comum, que ele tinha objetivos claros e
grandiosos na vida, mas sim que ele acreditava que o mundo existente depende da
projeção que uma mente faz sobre ele. Não existe uma relação de conhecimento
que exclua uma ideia que se faça presente, representada por um sujeito, um
eu-pensante. Ou seja, a natureza só pode ser representada como tal se há uma
consciência a observá-la. Por essa razão, Hegel privilegia sobremaneira os
mecanismos com os quais se dá a apreensão da realidade e como eles se
desenvolvem, não só no ato cognitivo, como também em seu próprio aspecto
histórico.
A principal visão com a qual Hegel constrói suas teses é
através da dialética. Tradicionalmente, a dialética se constitui pela oposição
de polos, como eu já disse, e isso se concretizava pelo debate de ideias, ainda
que feito por uma mesma pessoa, que botava ideias opostas para brigar, como fez
muito Zenon
de Eleia, por exemplo. Não se trata de uma concepção inédita, por
conseguinte. A novidade em Hegel é que essa estrutura passa a ser vista em
forma de tríades, ou seja, o movimento dialético se dá em três partes,
normalmente chamadas de tese, antítese e tese.
Não há nada de errado em se conceber a dialética hegeliana
desta forma, mas a questão é que essa apresentação é simples demais. Na
verdade, ela é intelectualmente muito mais profunda, e eu estou em um ponto
deste humilde espaço em que eu preciso aprofundar conceitos, como até já andei
fazendo (exemplos aqui
e aqui).
Vamos tentar melhorar.
Observe um objeto qualquer. Ele está lá, paradinho, sem que
nenhuma ação esteja sendo exercida sobre ele, a não ser a sua visão. Embora
possa parecer modorrento, esse ato não está isento de algum tipo de juízo. Ao
mirar sobre o objeto, você possui algum tipo de definição dele, e essa
definição não precisa estar manifesta na sua voz ou na sua escrita, mas apenas
no seu intelecto. Você sabe, por exemplo, características definitórias do
objeto, que, sendo uma bola, por exemplo, é redonda, repleta de ar, que rola ao
contato com o solo, que se aplica a alguns esportes e così via. Tem
também alguns juízos - ela é útil, agradável, bela e outras coisas mais. De
qualquer forma, tudo isso parte de um ato intelectivo, fruto de uma abstração:
a bola está diante de mim e eu reconheço a relação que eu tenho com ela, de
sujeito cognoscente e objeto conhecido.
Daí, o cenário se movimenta. Saindo de uma abstração
estática, onde tudo permanece igual a si mesmo, surge uma contraposição. O
juízo se movimenta para o seu contrário, iniciando o movimento dialético
propriamente dito. Não se trata de uma mera oposição, mas de uma mudança de
sinal que o objeto já carrega em si mesmo. A lógica se desloca para o seu
negativo, para o contrário do que se tinha posto na consciência. Esse é o
momento de propulsão do processo dialético, o momento negativo.
Ok. Pensar por oposição não é propriamente uma novidade, mas
Hegel introduz o efeito intelectual sintético em seu sistema. O confronto entre
o momento abstrato e o momento dialético “sai do outro lado” quando ambos
produzem a síntese. Da oposição entre os dois conceitos, surge um terceiro, que
sintetiza ambos, sem excluí-los, mas também sem repeti-los. Essa síntese, como
habitualmente chamamos este terceiro momento, é ela mesma triádica, porque ela
conserva a disposição inicial da abstração, nega essa mesma disposição e
eleva-a a um novo conceito. Esse triplo sentido é conhecido pelo termo alemão aufheben,
que pode significar tanto conservação, quanto negação, quanto elevação. É uma
nova proposição, que conserva seu antigo teor, que nega o que afirmava
anteriormente, e que traz novidade mantendo tanto o que estava na fase
abstrata, quanto na fase dialética. Tanta complexidade só pode ser esmiuçada
com exemplos, dados pelo próprio Hegel, e nós chegaremos neles.
A fase da tese, por se tratar de um juízo assentado,
representa a essência daquilo a que lançamos nosso juízo inicial. Por se tratar
de um estado inicial, é aquilo que conhecemos por Ser, residente no intelecto e
expresso pelo logos, o conhecimento que temos de tudo aquilo que está em nosso
universo circunstante. O movimento dialético nos leva à contradição do Ser, ao
Ser destruído, ao Ser inexistente, à antítese do Ser, ou seja, ao Nada. É a
presença da natureza que age sobre aquilo que reside no intelecto, representada
substancialmente pelo movimento. Se pensamos em um mundo que se move
constantemente, o que é que funde o Ser e o Nada? Onde o Ser já não mais é, mas
que pode voltar a Ser? É no futuro, no vir-a-ser. A síntese entre o Ser, que já
não é mais por seu confronto com o Nada, é o seu movimento através do tempo, o
Devir. O Ser mantém sua essência, mas já não é mais o mesmo: seu devir é
exatamente o que ele se torna após seu encontro com o Nada. O Ser que ressurge
é representado pelo Espírito, não como sinônimo de alma, mas de atividade
tipicamente humana, que é produzida a partir de um intelecto. Note que o início
do processo dialético temos um logos “em repouso”, e, após a oposição dialética
ele é movimentado e transformado. Esse é o sentido.
Confuso ainda? Vamos seguindo porque vai melhorar. O Ser, na
fase de tese, portanto, é o que chamamos de ser-em-si, que Kant chamaria de
coisa-em-si ou noumeno, o objeto em sua própria essência, conhecido por via da
abstração. As coisas que concorrem para modificá-la estão fora do próprio
objeto, contradizem o que ele é, e Hegel diz que a antítese é o fora-de-si. Por
fim, o devir, que é a síntese entre Ser e Nada, entre essência e oposição, é o
retorno-a-si. O Ser volta, no devir, a Ser, carregando o que ele era,
modificado pelo que ele não era e retornando ao Ser, pronto para iniciar
novamente o círculo dialético.
Vamos aos exemplos práticos. Imagine o trigo, o que é um
exercício de abstração. É possível pensar em uma série de características dele:
amarelado, em forma de espiga, delicado, produtivo em terras temperadas e assim
por diante. Quando nós pensarmos na farinha, não é mais essas características
do trigo que nós temos. Ele não é mais amarelado, mas branco; não está mais em
espigas, mas triturado; não tem mais delicadeza, porque está empacotado em
sacos grosseiros, e não se fala mais em produtividade, porque ele, assim moído,
não produz mais. Mas ele agora pode vir a ser pão. O pão é a síntese do trigo,
que não deixou de ser trigo porque entregou sua essência à sua negação, a
farinha, o trigo contraposto, e seu devir é o alimento, o pão sintético que lhe
devolve o ser.
Vamos sair para algo menos concreto. Imagine um regime de
tirania. Sua essência está em possuir os ditames de um indivíduo, que coloca
toda uma nação ao seu serviço de acordo com sua vontade. A instância dialética
da tirania é a liberdade, ou seja, a possibilidade de que todos exerçam livremente
as suas vontades. Mas ela também possui problemas: liberdade absoluta garante
que não se dará a cidadania plena, porque haverá invasão contínua entre os
direitos das diferentes pessoas. Daí, a síntese entre a tirania e a liberdade é
a legislação, que traz da tirania a obediência irrestrita, só que destinadas à
lei; e da liberdade, a possibilidade de escolhas, agora balizadas pela lei,
tirana no que diz respeito à sua obediência por toda a população, livre no que
diz respeito às escolhas dentro de seu escopo.
Outra. Uma pessoa inocente é aquela que não possui maldade
em seu coração, que não pratica atos desonrosos. O que é seu par antitético? O
vício, a prática de atitudes que causam prejuízo a si e a outrem, como tão bem
conhecemos. A síntese entre ambos é a virtude, a característica daquele que
conheceu o mal e resistiu a ele. O inocente que conheceu o mal não é mais
inocente, porque agora ele precisa exercer seu juízo e nisso consiste ser
virtuoso; do contrário, permaneceria inocente.
Vocês devem estar se perguntando: todos esses exemplos
parecem a nossa própria história e nossa própria natureza, sempre em constante
transformação. E é exatamente isso que Hegel pretende fazer nos entender. A
dialética filosófica nada mais é do que uma réplica estrutural da própria
realidade. O nosso mundo e nossa vida se movem dialeticamente, em um ir e vir
eterno, um fluxo que não se pode deter, de oposições e de devir, como já
ensinava Heráclito no seu panta
rhei.
Como foram as consequências do pensamento hegeliano? Tem
cara que ri de boca escancarada, ridicularizando as ideias ao máximo, como
Nietzsche, e tem cara que absorve essas ideias para construir toda uma
filosofia da história calcada nessa mesma lógica, como Marx. Vamos e venhamos,
não é coisa pequena.
E de lá da pedra que eu estava sentado fechei as contendas mentais
que eu tinha e fui encher mais uma garrafinha, agora para pegar a patroa e ir
embora, satisfeito em ver que, dialeticamente, o parque que se achava destruído
agora renasce. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Compêndio das principais obras de Hegel:
HEGEL, Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. São Paulo: Loyola, 1995.
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