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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 6º lugar: Águas de Contendas e a dialética que estrutura a realidade

(Com Hegel, a dialética deixa de ser um exercício de confronto de ideias para ser um espelho da própria realidade)

“A semente é, em si, a planta, mas ela deve morrer como semente e, portanto, sair fora de si, a fim de poder se tornar, desdobrando-se, a planta em si e para si”

Hegel

Olá!

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Prometi, cumpri. Em 2017, eu viajei pela região do Circuito de Águas do Sul de Minas Gerais, e, por lá, passei por todos os parques de águas disponíveis, onde me embebedei pelas mais variadas classes crenológicas, absorvendo sais minerais e oligoelementos a beça, como ferro, magnésio e enxofre. É uma aventura, porque nem todos são saborosos, como se pode supor. Sabor de prego, banana verde e ovo podre são contrapontos anti-hedonistas às propriedades medicinais, mas o espírito de curiosidade vale a aventura. De todos os parques, entretanto, havia um que estava todo abandonado, clamando por uma reforma urgente, e eu proclamei a intenção de aqui voltar para vê-lo recuperado, se fosse o caso. Hoje, seis anos depois, o momento chegou e vim apreciá-lo como se deve. É o distrito pertencente a Conceição do Rio Verde, conhecido como Águas de Contendas.

Águas de Contendas, nome que dá a impressão de se tratar exclusivamente do parque, na verdade é a denominação do pequeno distrito que o rodeia, que possui uma pequena população e comércio igualmente humilde, centralizados na capela de Nossa Senhora da Saúde, nome sugestivo para uma região que proclama as virtudes de suas águas.

O parque de águas daqui é o menor de todas as cidades da região. Entretanto, neste momento em que está todo refeito, ganhou novamente toda a sua dignidade.

As águas aqui disponíveis são bastante semelhantes às de todo o circuito, e foram canalizadas para nichos cobertos. Uma fornece água ferruginosa, com óbvio sabor reforçado de ferro, e boa para supressão de males anêmicos.

Outra contém água magnesiana, de sabor levemente adstringente, a quem a sabedoria popular (além de sabichões pseudocientíficos) atribui terapêutica estomacal, sendo que o que há, de fato, é um razoável poder diurético, o que, por tabela, pode melhorar a pressão arterial.

A bica mais curiosa é a de água gasosa, com alto teor de vanádio, mineral que, segundo se diz, potencializa a ação da insulina, o que seria vantajoso para nós, da turma do sangue doce. É de longe a mais procurada, mas que ninguém se iluda: a quantidade de gás não chega nem perto da de um refrigerante, nem mesmo de águas gaseificadas artificialmente, e também não são duradouras. O melhor é curtir o momento e tomar lá mesmo.

Há ainda uma “bica pública” que é onde os moradores do distrito vão coletar seu líquido do quotidiano, e que está sempre enfileirada. Era principalmente a eles que as mangueiras do tempo de fechamento serviam.

Com o remoçamento do parque, deixamos de ter um terreno próximo do baldio para haver um espaço de convívio e visitação, com parquinho para as crianças…

… e mesas de jogos para os idosos, tudo muito simples e agradável para quem quer passar umas horas de paz.

A reforma trouxe ainda o benefício de se compreender melhor aspectos geográficos e históricos que haviam ficado perdidos no estado em que se encontravam as coisas. Para os primeiros, tornou-se possível reviver o riacho que liga ao Rio Baependi…

… enquanto no outro temos a principal curiosidade do parque, uma pedra que virou monumento, pelo simples fato de que se conta que é nela que o imperador Pedro II se sentou para descansar na longa viagem que fez a região, que também trouxe reflexos na vizinha Caxambu, os quais citei por ocasião da viagem que fiz por lá (aqui).

Satisfeito em ver tinindo um espaço que há seis anos atrás encontrava-se completamente abandonado, imitei o proeminente político e refiz seus passos, enchendo minha garrafa d’água e se sentando na pedra (outra). Não para descansar, mas para refletir.

A palavra “contenda” significa o desajuste por alguma situação onde as partes não chegam a um acordo. Pode, sim, ter o significado direto de luta física, mas é aquele tipo de palavra que tem o sabor de querela que se dá nos cartórios e tribunais, mais feita na base dos argumentos do que dos punhos, como se fosse um debate. Ou seja, uma luta ideal, e não material.

Contendas no campo das ideias são fenômenos absolutamente comuns, que ocorreram reiteradas vezes no transcurso da história. Racionalismo versus empirismo, determinismo versus livre arbítrio, idealismo versus materialismo, dogmatismo versus ceticismo, são apenas alguns exemplos dos intensos debates que volta e meia populam as mesas acadêmicas no decorrer da história. Há uma tendência a um eterno antagonismo? De certa forma, sim, até mesmo porque desde os primórdios da filosofia houve pensadores que compreenderam que qualquer fato ou fenômeno no universo carrega consigo seu próprio oposto, sua própria contradição. Nos mais antigos, o jogo de oposições se dava no âmbito das qualidades: quente e frio, grande e pequeno, alto e baixo. Mais tarde, isso foi para os argumentos e, por fim, às próprias substâncias. Portanto, não temos só debates de ideias opostas, mas oposições que residem dentro das próprias ideias.

O nome disso é dialética, e embora ela exista pelo menos desde a antiguidade clássica, foi com Hegel que ela deixou de ser uma ferramenta filosófica para se tornar um espelho da estrutura real.

Eu já mencionei a dialética hegeliano aqui no blog, como pode ser lido aqui e aqui, mas é um conceito tão central na filosofia moderna que eu senti a necessidade de abordá-la de maneira mais profunda, o que farei agora.

Hegel era um idealista, como bem se sabe. Isso não significa, como pensaria o senso comum, que ele tinha objetivos claros e grandiosos na vida, mas sim que ele acreditava que o mundo existente depende da projeção que uma mente faz sobre ele. Não existe uma relação de conhecimento que exclua uma ideia que se faça presente, representada por um sujeito, um eu-pensante. Ou seja, a natureza só pode ser representada como tal se há uma consciência a observá-la. Por essa razão, Hegel privilegia sobremaneira os mecanismos com os quais se dá a apreensão da realidade e como eles se desenvolvem, não só no ato cognitivo, como também em seu próprio aspecto histórico.

A principal visão com a qual Hegel constrói suas teses é através da dialética. Tradicionalmente, a dialética se constitui pela oposição de polos, como eu já disse, e isso se concretizava pelo debate de ideias, ainda que feito por uma mesma pessoa, que botava ideias opostas para brigar, como fez muito Zenon de Eleia, por exemplo. Não se trata de uma concepção inédita, por conseguinte. A novidade em Hegel é que essa estrutura passa a ser vista em forma de tríades, ou seja, o movimento dialético se dá em três partes, normalmente chamadas de tese, antítese e tese.

Não há nada de errado em se conceber a dialética hegeliana desta forma, mas a questão é que essa apresentação é simples demais. Na verdade, ela é intelectualmente muito mais profunda, e eu estou em um ponto deste humilde espaço em que eu preciso aprofundar conceitos, como até já andei fazendo (exemplos aqui e aqui). Vamos tentar melhorar.

Observe um objeto qualquer. Ele está lá, paradinho, sem que nenhuma ação esteja sendo exercida sobre ele, a não ser a sua visão. Embora possa parecer modorrento, esse ato não está isento de algum tipo de juízo. Ao mirar sobre o objeto, você possui algum tipo de definição dele, e essa definição não precisa estar manifesta na sua voz ou na sua escrita, mas apenas no seu intelecto. Você sabe, por exemplo, características definitórias do objeto, que, sendo uma bola, por exemplo, é redonda, repleta de ar, que rola ao contato com o solo, que se aplica a alguns esportes e così via. Tem também alguns juízos - ela é útil, agradável, bela e outras coisas mais. De qualquer forma, tudo isso parte de um ato intelectivo, fruto de uma abstração: a bola está diante de mim e eu reconheço a relação que eu tenho com ela, de sujeito cognoscente e objeto conhecido.

Daí, o cenário se movimenta. Saindo de uma abstração estática, onde tudo permanece igual a si mesmo, surge uma contraposição. O juízo se movimenta para o seu contrário, iniciando o movimento dialético propriamente dito. Não se trata de uma mera oposição, mas de uma mudança de sinal que o objeto já carrega em si mesmo. A lógica se desloca para o seu negativo, para o contrário do que se tinha posto na consciência. Esse é o momento de propulsão do processo dialético, o momento negativo.

Ok. Pensar por oposição não é propriamente uma novidade, mas Hegel introduz o efeito intelectual sintético em seu sistema. O confronto entre o momento abstrato e o momento dialético “sai do outro lado” quando ambos produzem a síntese. Da oposição entre os dois conceitos, surge um terceiro, que sintetiza ambos, sem excluí-los, mas também sem repeti-los. Essa síntese, como habitualmente chamamos este terceiro momento, é ela mesma triádica, porque ela conserva a disposição inicial da abstração, nega essa mesma disposição e eleva-a a um novo conceito. Esse triplo sentido é conhecido pelo termo alemão aufheben, que pode significar tanto conservação, quanto negação, quanto elevação. É uma nova proposição, que conserva seu antigo teor, que nega o que afirmava anteriormente, e que traz novidade mantendo tanto o que estava na fase abstrata, quanto na fase dialética. Tanta complexidade só pode ser esmiuçada com exemplos, dados pelo próprio Hegel, e nós chegaremos neles.

A fase da tese, por se tratar de um juízo assentado, representa a essência daquilo a que lançamos nosso juízo inicial. Por se tratar de um estado inicial, é aquilo que conhecemos por Ser, residente no intelecto e expresso pelo logos, o conhecimento que temos de tudo aquilo que está em nosso universo circunstante. O movimento dialético nos leva à contradição do Ser, ao Ser destruído, ao Ser inexistente, à antítese do Ser, ou seja, ao Nada. É a presença da natureza que age sobre aquilo que reside no intelecto, representada substancialmente pelo movimento. Se pensamos em um mundo que se move constantemente, o que é que funde o Ser e o Nada? Onde o Ser já não mais é, mas que pode voltar a Ser? É no futuro, no vir-a-ser. A síntese entre o Ser, que já não é mais por seu confronto com o Nada, é o seu movimento através do tempo, o Devir. O Ser mantém sua essência, mas já não é mais o mesmo: seu devir é exatamente o que ele se torna após seu encontro com o Nada. O Ser que ressurge é representado pelo Espírito, não como sinônimo de alma, mas de atividade tipicamente humana, que é produzida a partir de um intelecto. Note que o início do processo dialético temos um logos “em repouso”, e, após a oposição dialética ele é movimentado e transformado. Esse é o sentido.

Confuso ainda? Vamos seguindo porque vai melhorar. O Ser, na fase de tese, portanto, é o que chamamos de ser-em-si, que Kant chamaria de coisa-em-si ou noumeno, o objeto em sua própria essência, conhecido por via da abstração. As coisas que concorrem para modificá-la estão fora do próprio objeto, contradizem o que ele é, e Hegel diz que a antítese é o fora-de-si. Por fim, o devir, que é a síntese entre Ser e Nada, entre essência e oposição, é o retorno-a-si. O Ser volta, no devir, a Ser, carregando o que ele era, modificado pelo que ele não era e retornando ao Ser, pronto para iniciar novamente o círculo dialético.

Vamos aos exemplos práticos. Imagine o trigo, o que é um exercício de abstração. É possível pensar em uma série de características dele: amarelado, em forma de espiga, delicado, produtivo em terras temperadas e assim por diante. Quando nós pensarmos na farinha, não é mais essas características do trigo que nós temos. Ele não é mais amarelado, mas branco; não está mais em espigas, mas triturado; não tem mais delicadeza, porque está empacotado em sacos grosseiros, e não se fala mais em produtividade, porque ele, assim moído, não produz mais. Mas ele agora pode vir a ser pão. O pão é a síntese do trigo, que não deixou de ser trigo porque entregou sua essência à sua negação, a farinha, o trigo contraposto, e seu devir é o alimento, o pão sintético que lhe devolve o ser. 

Vamos sair para algo menos concreto. Imagine um regime de tirania. Sua essência está em possuir os ditames de um indivíduo, que coloca toda uma nação ao seu serviço de acordo com sua vontade. A instância dialética da tirania é a liberdade, ou seja, a possibilidade de que todos exerçam livremente as suas vontades. Mas ela também possui problemas: liberdade absoluta garante que não se dará a cidadania plena, porque haverá invasão contínua entre os direitos das diferentes pessoas. Daí, a síntese entre a tirania e a liberdade é a legislação, que traz da tirania a obediência irrestrita, só que destinadas à lei; e da liberdade, a possibilidade de escolhas, agora balizadas pela lei, tirana no que diz respeito à sua obediência por toda a população, livre no que diz respeito às escolhas dentro de seu escopo.

Outra. Uma pessoa inocente é aquela que não possui maldade em seu coração, que não pratica atos desonrosos. O que é seu par antitético? O vício, a prática de atitudes que causam prejuízo a si e a outrem, como tão bem conhecemos. A síntese entre ambos é a virtude, a característica daquele que conheceu o mal e resistiu a ele. O inocente que conheceu o mal não é mais inocente, porque agora ele precisa exercer seu juízo e nisso consiste ser virtuoso; do contrário, permaneceria inocente.

Vocês devem estar se perguntando: todos esses exemplos parecem a nossa própria história e nossa própria natureza, sempre em constante transformação. E é exatamente isso que Hegel pretende fazer nos entender. A dialética filosófica nada mais é do que uma réplica estrutural da própria realidade. O nosso mundo e nossa vida se movem dialeticamente, em um ir e vir eterno, um fluxo que não se pode deter, de oposições e de devir, como já ensinava Heráclito no seu panta rhei.

Como foram as consequências do pensamento hegeliano? Tem cara que ri de boca escancarada, ridicularizando as ideias ao máximo, como Nietzsche, e tem cara que absorve essas ideias para construir toda uma filosofia da história calcada nessa mesma lógica, como Marx. Vamos e venhamos, não é coisa pequena.

E de lá da pedra que eu estava sentado fechei as contendas mentais que eu tinha e fui encher mais uma garrafinha, agora para pegar a patroa e ir embora, satisfeito em ver que, dialeticamente, o parque que se achava destruído agora renasce. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Compêndio das principais obras de Hegel:

HEGEL, Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. São Paulo: Loyola, 1995.

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