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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 7º lugar: Alagoa, com queijos e azeites que intuímos como obras de arte

(A intuição é aquele palpite furado ou nossa apreensão direta do mundo?)

“Em síntese, há que se distinguir dois elementos no movimento, o espaço percorrido e o ato pelo qual o percorremos, as posições sucessivas e a síntese dessas posições. O primeiro desses elementos é uma quantidade homogênea; o segundo só tem realidade na nossa consciência”.

Bergson


Olá!

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Eu tinha um carro humildezinho quando vim para estes lados pela primeira vez, o já declamado Bedelho. É uma região predominantemente rural e, portanto, plena de picadas e estradinhas de terra. Alguns dos lugares só são acessíveis por elas e, para os baixos veículos convencionais, é um pouco perturbador encarar trajetos meio longos em caminhos de chão. Por isso, embora estivesse bem perto quando estive em Itamonte, não me animei a enfrentar os quase quarenta quilômetros fora do asfalto. Mas, alvíssaras, temos hoje o carro mais alto e a capa de petróleo quase cru recobrindo o chão vermelho, e, nesta viagem de resgate, Alagoa não podia deixar de estar no roteiro. Vamos a ela.

Pequena como a maioria das cidades da região, Alagoa tem um notável relevo acidentado, com pouca área plana e culturas características de altitude.

A área urbana é bem pequenina, e com escadarias para ligar as ruas de desnível. Lembra-me um pouco o Jardim Guairacá, o bairro onde morava no porão da casa do sogro quando casei, que é cheio dessas escadinhas.

A população é igualmente pequena, menos de 3000 pessoas, mas há alguma amostra de habitações bastante antigas, remanescentes das comitivas de tropeiros que passavam pela região.

A igreja matriz, dedicada a Nossa Senhora do Rosário, estava inacessível, razão pela qual não fiz uma reportagem minimamente decente, e tirei uma foto bem patife, para manter um registro que fosse.

Alagoa tem esse nome porque, à semelhança de Lagoinha, existia uma lagoa que foi drenada pelos fazendeiros que foram chegando à região. A natureza é generosa, com várias corredeiras no Rio Aiuruoca e no Ribeirão Vermelho, além de cachoeiras e picos, como o Pico do Garrafão ou de Santo Agostinho, da Serra dos Martins ou dos Nogueiras.

Para além dos recursos naturais, eu fui para lá com dois objetivos de cunho gastronômico. Primeiro, fui atrás de azeite, porque lá há um lagar que cresceu muito nos últimos anos. O pessoal permite que a Fazenda Cauré seja visitada, pela guia de um exímio conhecedor do negócio, o Sr. Antônio Carlos, aka Tonhão.

Lá, é possível observar os diversos olivais que produzem diferentes espécies, como as gregas koroneiki e as espanholas arbosana e arbequina.

A paisagem é de tirar o fôlego.

Em outro ponto, fica o lagar que produz o azeite oriundo destes olivais, o premiado Prado e Vázquez.

Além de comercializar o produto, o lagar permite que sejam conhecidas todas as etapas da fabricação e seu respectivo maquinário.

Novamente nas ruas da cidade, fomos dar uma olhada na outra especialidade da cidade de Alagoa, os queijos.

São várias lojas na cidade, já que sua fama tem se redobrado em tempos mais recentes, por terem chegado a um queijo de denominação própria bastante próximo do parmesão, mantendo um quê dos queijos minas típicos.

A variedade apresentada se dá menos no queijo em si e mais nos tempos de cura e adição de elementos distintos, como as castanhas e café, além do fracionamento das peças, porque são produtos bem caros.

Não obstante, são bastante saborosos de fato, merecendo um esforcinho financeiro para conhecê-los. Os prêmios que as lojas ostentam em paredes e estantes provam que a experiência é compensatória.

Azeites e queijos fazem parte não só do patrimônio gastronômico mineiro, mas do aporte intelectivo humano. Suas receitas estão armazenadas em manuais que permitem sua perfeita reprodução, e, dadas tais e tais condições, a mágica acontece e temos produtos que nos alimentam e comprazem. Isso é fruto de nossa característica inteligência, não há dúvida, mas sempre pensei que resta algo a mais, que não é somente fruto de um mecanicismo mental.

É aquela velha história. Faça-se o mais descritivo de todos os manuais, com todos os detalhes possíveis e imagináveis, anexe-se a ele fotos e endereços com vídeos, tabelas e estatísticas. Isso tudo não é garantia nenhuma de que este escriba, inexperiente nas artes alimentícias, tenha sucesso na empreitada. É claro que, se estivéssemos falando de um aviamento de remédio, a história seria outra, já que a indústria farmacêutica trabalha com insumos rigorosamente padronizados. Mesmo eu, que trabalhei em uma mequetrefíssima botica com mania de grandeza, atesto sua honestidade e zelo no cuidado com a saúde humana. Mas queijo não é remédio, azeite não é fármaco. Enquanto as aspirinas da vida necessitam de rigor científico para sua segurança na cura, os alimentos têm como primazia o prazer propiciado pela combinação sensória. Ora (direis), alimentos servem para alimentar, e também precisam passam por filtros de segurança tais e quais os de medicamentos. Sim, meu caro interlocutor imaginário, mas, quando você pensa em uma cápsula, pensa no seu poder curativo. Agora, quando pensa em comida, não pensa em matar a fome pura e simplesmente, mas em curtir o que come.

É nesse ponto em que vemos a porção mais artística, mais estética da comida. A questão aqui não é de reprodutibilidade, mas de criação. Não há ciência no mundo que consiga fazer com que duas avós façam o mesmo macarrão dominical, porque cada uma delas faz consistir o alimento em um ato criativo. Ainda bem.

Eu já mencionei Henri Bergson neste espaço (aqui e aqui), e o fiz sobre seus pensamentos sobre o tempo, mas sua filosofia psicológica não se limita a isso. Ele fazia grandes críticas à excessiva matematização do pensamento pretendida pelo Positivismo, que via ciência em tudo, que, se por um lado prometia uma precisão necessária ao progresso, por outro esquecia que o universo se compõe também do inesperado, do insólito, do ato de criação. Mas isso não o impedia de criticar também o finalismo pretendido pelas religiões. A eterna pergunta sobre o sentido da vida é respondida, costumeiramente, com uma entidade que cria os seres e dá a eles um propósito, mas a verdadeira resposta é justamente inversa: é a consciência que doa sentido para a vida. Isso se explica pelo fato de que cada um de nós pode construir uma cosmovisão própria, sem a necessidade de que se estabeleça uma finalidade comum a todos, com sentido próprio.

Com a crítica tanto ao mecanicismo quanto ao finalismo, o que propõe Bergson? Em primeiro lugar, precisamos compreender um pouco melhor as distinções feitas pelo processo evolutivo: o modo como chegamos a ser o que somos como humanos. Bergson entende que os mecanismos de evolução apontados por Darwin são suficientes para explicar como a humanidade chegou a o que é, mas falta entender seu mecanismo de propulsão. Se não temos os processos quadradinhos que a ciência propõe, nem uma entidade criadora que nos coloca em um plano predeterminado, ainda assim há algum motivo para nossas transformações. E a esse princípio Bergson dá o nome de élan vital (impulso vital, numa tradução direta do francês). Com isso, o nome da corrente que inaugura tem o nome de vitalismo.

O élan vital não é uma ideia propriamente nova, já que é bem semelhante ao conatus de Spinoza, à vontade de Schopenhauer, à vontade de potência de Nietzsche ou às pulsões de Freud, mas guarda sua originalidade por estar ligada diretamente ao processo biológico de evolução. De fato, desde o surgimento do universo, com aquilo que teorizamos como Big Bang ou qualquer outra hipótese concorrente, percebemos que a realidade se desdobra em um fluxo onde é indissociável a presença de energias. Segundo o pensamento de Bergson, toda essa movimentação vai construindo os tijolos que vão desembocar na vida como conhecemos, no lento processo que se iniciou, talvez, pelo desabrochar de aminoácidos no tempestuoso oceano primordial. O élan vital concentrava-se em ponto máximo naquele momento decisivo, de modo a se consubstanciar no ato criativo de se conseguir replicação contínua daqueles compostos orgânicos simples. Esse ímpeto é o motor do processo evolutivo.

E como isso funciona? Lembremos de que Bergson vê o tempo como durée, a duração que não se cronometra, porque as medidas não são significativas para a consciência, e sim da percepção que se tem dele. Ter o tempo como duração significa que esse fluxo impulsionado é a permanente transformação que se operacionaliza por onde encontrarmos esse fenômeno chamado vida. Então podemos deduzir que é intrínseca uma força que se oponha a qualquer tendência de estabilidade. Lembrem-se: Bergson é um antimecanicista e, sendo assim, princípios de inércia não fazem sentido onde houver uma consciência que lance seu olhar sobre o universo.

Entretanto, quando usamos as réguas da ciência, temos a tendência de observar o mundo fora do seu fluxo, como se fosse possível dividi-lo em compartimentos estanques, como se seu continuum fosse linear, e não é isso que vemos em nossas simples observações diárias. Há algo que escapa do racionalismo, mas que não é pura e simplesmente um instinto animal, que apreende de imediato a realidade ainda antes de que toda inteligência possa processá-la. Essa percepção rápida e sagaz é o que chamamos de intuição.

Não, a intuição de Bergson não é aquele palpite furado que damos na véspera do jogo, nem aquela namorada que apostamos que não dará certo com nosso filho. Na verdade, ela é uma contraposição ao pensamento kantiano de que é impossível se chegar ao Ser de qualquer coisa. Da mesma como Heidegger acharia um canal para o contato com o Ser, Bergson entende que a intuição é esse caminho por onde é possível se ter uma dimensão imediata da realidade, mais racional do que um mero instinto, e menos segregadora que a inteligência.

Uma ótima forma é dada por Bergson para perceber a intuição, e eu vou adaptá-la. Embora Alagoa seja uma cidade que esteja crescendo em seu potencial turístico, ainda é pouca gente que a conhece. Se eu, ao invés de colocar quinze fotos neste texto, colocar 150, 1500 ou 15000, se eu fizer um mapeamento completo dos endereços e logradouros, se eu fizer uma filmagem como aquelas dos vlogs de motociclistas, se eu documentar item por item da cidade, ainda assim não será possível substituir a apreensão direta de uma visita. Somente estando in loco temos a apreensão direta que é dada pela intuição, absorvemos o que a cidade é. As fotos e demais badulaques são uma demonstração de como a ciência coleta dados do mundo: sempre através de parcelas, de espacializações. A própria palavra “razão” já é perpassada pela ideia de divisão para que se compreenda o todo pelas partes, uma forma de dissecar a realidade em compartimentos. Já a intuição fornece a realidade como se ela caísse à nossa frente, quase como uma pedra caindo sobre nossa cabeça. A intuição é a percepção rápida e necessária a quem nós, humanos, fomos levamos pela evolução para que não tivéssemos meras reações instintivas quando defrontados com a realidade, mas que levássemos à nossa consciência um preâmbulo dos fenômenos. A intuição é o instinto da inteligência.

A diferença fundamental entre a inteligência e a intuição pode ser captada naquelas perguntas sem resposta. Lembro do programa provocações, apresentado pelo genial Antônio Abujamra, que sempre fazia a pergunta dupla no final da entrevista: o que é a vida? A sacada era genial porque passava a mensagem de que é impossível responder adequadamente. Isso se aplica a qualquer pergunta que tente resgatar a abstração: o que é o amor, o que é a coragem, o que é a beleza, o que é a virtude. São todas elas perguntas em que entendemos interiormente o que são, mas que não conseguimos traduzir em palavras, porque caímos na tentação cartesiana de segregar do objeto a sua definição, como se fosse possível dividir um do outro. É a intuição que tem a função intelectiva de fazê-lo, e, por essa razão, Bergson dizia que era através dela que se fazia possível confrontar as principais questões filosóficas.

A intuição surge no ser humano por conta do próprio processo evolutivo. Retomando o élan vital, as forças criativas da natureza fizeram com que o homem se distinguisse dos demais animais pela capacidade de raciocinar. Só que há um detalhe: esse homem ainda precisaria viver, e isso não seria possível se não houvesse o instinto, e não haveria uma conexão com o restante do meio se não fosse a apreensão imediata da intuição. Nela, o élan mantém toda a sua força criativa, porque é pela intuição que os humanos percebem e redesenham coisas novas. Um artesão de queijos não saberia perceber que seu processo poderia ser melhor se não intuísse isso.

E é por isso que conseguimos, nós humanos, chegar a resultados tão incríveis. A intuição não tem melhor lugar para se expressar do que na obra de arte, e é isso que temos à nossa frente quando nos deparamos com alimentos de tanto sabor e qualidade: a certeza de que alguém “sacou” que era possível obter maior prazer de coisas prosaicas. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É na obra A Evolução Criadora que Bergson depôs todo seu esplendor filosófico, mas a questão da consciência sempre esteve embutida nas suas ideias. Por essa razão, recomendo a obra abaixo, de tiro curto, e que ajudará a compreender melhor seus princípios intelectuais.

BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. São Paulo: Edipro, 2020.

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