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sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Sobre o problema da indução e a tangência com o ceticismo de Hume

(“Faça isso e acontecerá aquilo” é uma lógica que nos parece tão natural que nem questionamos se essa regra é real).

Olá!

“É o costume do pito que entorta o beiço", dizia um dos vizinhos dos meus avós, que não fumava cachimbo. Aplicava-se este dito a pessoas com manias reiteradas, que acabava por marcá-las e até apelidá-las. Acontece que todos nós temos nossos costumes, que acabam por ficar automatizados. Eu tenho vários, e um deles é o de encher a talha todos os dias de manhã, para não faltar água filtrada durante o dia. Aqui cabe uma rápida explicação.

Eu tenho uma daquelas talhas de barro, comuníssimas. Esse tipo de artefato normalmente é enchido com um jarro, pegando água do sistema público diretamente da torneira. Minha talha fica em uma cantoneira, deixando-a bem acima do nível da pia. Como era uma chatice ter que subir no banquinho para encher o utensílio, bolei um esqueminha que consiste em uma torneirinha secundária, de onde sai uma fina mangueira diretamente no reservatório, entrando através de um orifício que eu fiz na tampa com arame quente. Dessa forma, consigo encher o filtro sem a necessidade do sobe-e-desce. O sistema não é perfeito, porque não consigo ver o nível em que a água se encontra, e por vezes ela transborda, mas, com a prática, peguei uma noção de tempo que se demonstra suficiente para suprir a necessidade diária. Logo depois do café, abro o registro da talha e vou abrir a janela dos passarinhos, ajeitando as plantas que ficam na varanda. No retorno, já posso fechar a torneirinha. Esse é o tempo certo que mencionei logo atrás.

Tudo muito bonito, mas já aconteceu de haver grandes transbordamentos, fazendo perder o serviço da louça escorrida que fica logo abaixo, e assemelhando a pia a um dos tantos bairros que se alagam nesta metrópole da solidão. Em uma dessas manhãs, eu percorri todo o trajeto que mencionei para vocês, mas já ao chegar de volta à sala foi possível ouvir o ruído de uma miniatura de cachoeira. A patroa diz que é desleixo, e eu fico encafifado: por que funciona todo santo dia, mas há momentos em que a lógica falha?


É através de uma cena tão quotidiana como esta que tivemos um dos maiores desafios ao racionalismo cartesiano, com um forte reforço no empirismo e quase beirando o ceticismo. É uma questão tão importante que eu nem sei como ficou de fora até hoje no meu espaço. Antes, porém, seria importante se dar conta das propostas do tal racionalismo, que podem ser lidas neste texto, e do embate que o mesmo teve com o empirismo*. Falei muitas vezes sobre isso, mas podem tomar conhecimento aqui. Isso feito, vamos falar sobre as ideias de David Hume.

Hume foi um filósofo escocês, bastante precoce, mas que demorou um pouco a emplacar notoriedade. É considerado o empirista que mais radicalmente carregou seu projeto epistemológico, a ponto de quase retomar o antigo ceticismo pirrônico, que entendia ser impossível conhecer.

Mas vamos passo a passo. Os empiristas seguiam a linha geral da tabula rasa, expressão latina que significa algo como “papel em branco”. Essa é uma metáfora que indica que todos os operandos para o funcionamento da razão humana são obtidos de fora, ou seja, dos objetos aos quais somos apresentados. Não há, segundo eles, nenhuma coisa que venha a priori, como tanto defendiam os racionalistas. Portanto, todo o conhecimento é obtido a partir da experiência e por intermédio dos nossos sentidos, que são a ponte entre nossa razão e o mundo.  É necessária uma experiência** para que tenhamos em nós conteúdo cognitivo novo, e vem daí o nome da corrente (empeiria=experiência em grego).

Mas como essa coleta de informações vinda do ambiente e de outros sujeitos é processada em nossas mentes? Enfim, como as percepções absorvidas pelos sentidos ganham estatuto de conhecimento? Segundo Hume, os dados obtidos do meio externo ficam gravados na forma de impressões e de ideias. As impressões são os meios primários com os quais nosso cérebro é atingido, e se dá pelo contato direto com o objeto da cognição. Por exemplo, digamos que eu tenha uma bola de futebol em minhas mãos. Percebo nela uma série de características simples: suas cores, seu peso, sua esfericidade, seu material. Nenhuma delas representa uma bola isoladamente, mas é necessário que todos esses componentes de impressões simples estejam lá para que eu tenha uma impressão complexa: o objeto bola. Enquanto a tenho comigo, ela imprime uma forte percepção em minha mente, já que todos os meus sentidos estão atuando para recolher informações sobre ela. A impressão, portanto, é extremamente vívida, presente e correspondente ao real.

O que acontecerá, entretanto, se eu pegar essa mesma bola e jogá-la em um canto do quintal, afastando-a dos meus sentidos? Bem, ainda assim eu serei capaz de articular mentalmente com o objeto, só que agora na forma de ideia. Ocorrerá que o objeto ficará cada vez menos nítido, empalidecido, mas com uma vantagem em relação à impressão. Imaginemos um técnico que vê seu time jogando uma partida sofrível. Os lances, passes e tática estão ali em campo, visíveis, e estão sendo escritos na sua mente na forma de impressão. A partir do momento em que nosso pobre treinador começa a imaginar formas de corrigir o posicionamento de sua equipe, ele não está mais coletando dados da realidade presente, mas utilizando informações vindas de suas experiências anteriores, até que consiga pensar em formas de transpô-las para as quatro linhas. Essa é a vantagem das ideias: como o objeto não estará mais tomando toda a minha atenção, terei mais facilidade para articulá-lo com outras ideias, no que resultará em nosso processo de abstração. Com a impressão, temos o que sentimos; com a ideia, o que pensamos.

Segundo o empirismo, o inatismo é impossível, e ele é imprescindível para a lógica racionalista. Hume explica como o inatismo é falacioso por conta dos mecanismos de associações que produzimos em nossas mentes. Entidades abstratas são reconhecidas por conta de conhecimentos preexistentes vindos dos sentidos. Um deus, por exemplo, é uma continuação dos homens que são efetivamente conhecidos: através da ideia de humanidade, maximizam-se seus valores e temos o deus infinitamente misericordioso. Através do domínio da natureza que o próprio homem tem, chega-se à onipotência divina, e assim sucessivamente. Aliás, falando em infinito, outra concepção abstrata tida como inata, é através do aprendizado dos tempos cada vez maiores e dos espaços cada vez mais distantes, que se associam uns aos outros, que se chega à ideia abstrata de infinitude. Ou seja, mesmo o mais abstrato dos devaneios não é feito por criação exclusiva da mente humana. Antes disso, é com elementos já existentes nas ideias que a abstração se cria.

Apesar deste golpe no racionalismo, Hume também chuta a canela do próprio empirismo, e o faz de maneira dolorida. Segundo ele, a mente opera através de três processos de associação de ideias: semelhança, contiguidade e causação. O primeiro é dado pelo óbvio mecanismo de remissão de uma coisa para a outra. Uma bola de futebol se assemelha a uma de basquete, que se assemelha a uma de vôlei e assim por diante. Até mesmo algum esporte não inventado, que esteja somente em minha imaginação, pode ter uma bola envolvida se eu associá-la a este ambiente por semelhança. Já a contiguidade se forma pelo reconhecimento de que as coisas andam habitualmente juntas. Seguindo o exemplo do futebol, uma bola já faz pressupor campo, jogadores, torcida, árbitro, partida, campeonato e via discorrendo. Por fim, o processo de causação é a clássica relação de causa e efeito, onde tudo o que acontece é consequência de um fenômeno que lhes deu origem. O chute é a causa do gol, o gol é a consequência do chute; a falta é a consequência da jogada violenta, a jogada violenta é a causa da falta, seguindo ad nauseam por quantos exemplos se queiram. Acontece que o processo empírico se serve profusamente das associações de causação, e é aí que está todo o problema. Tenham um pouco de paciência que a gente já chega lá.

Hume entende que há dois gêneros de objetos que são processados em nossos cérebros. Temos relações de ideias, que são desdobramentos de pensamentos inferidos unicamente pelo próprio raciocínio, e que ficam circunscritos à definição de conceitos lógicos e matemáticos. Não se trata dos mesmos pensamentos inatos que Hume tanto combate, mas de derivações daquelas ideias que já perderam o vínculo com a concretude que lhes originou. Aqui ficam os conceitos, os entes matemáticos, os desenvolvimentos lógicos formais, as descrições geométricas e tantas outras relações que se assemelham muito aos juízos apriorísticos kantianos. É uma relação de ideias, por exemplo, afirmar que duas retas paralelas são aquelas que não possuem nenhum ponto em comum, ou que um cubo é um sólido de seis faces, ou ainda que a décima potência de 2 é igual a 1024. As relações de ideias são baseadas no princípio da não-contradição, o que significa que uma inversão lógica a torna completamente inválida. Não é possível afirmar que um círculo é quadrado, ou que eu vou e não vou ao jogo de futebol ao mesmo tempo.

O outro gênero são os dados de fatos. São estes que são colhidos diretamente da experiência, iniciando como uma impressão e posteriormente indo para o campo das ideias. São exatamente eles que retratam o ato empírico, e é por eles que disparamos as associações de ideias. Ou seja, não há aqui nada que seja apriorístico, porque só conseguimos atinar qualquer fenômeno a partir do seu acontecimento. Quando eu usei o exemplo da bola para falar sobre a aquisição de uma impressão, era um dado de fato que eu tinha em minhas mãos. Então eu poderia fazer um sem-número de associações a partir daquele objeto: a similaridade com qualquer outra bola e a contiguidade do seu uso em um campo ou quadra. Naturalmente, eu também podia fazer associações de causa e efeito com ela. A bola é consequência do couro, que é consequência do boi, que é consequência da grama, que é consequência da terra e qualquer outro tipo de bobagem meramente ilustrativo. Enfim, o princípio da causalidade diz que qualquer objeto ou fenômeno tem uma causa que lhe dê origem. Só que é aí que tem uma pegadinha. Para demonstrar isso, vamos ao exemplo do próprio Hume.

Vamos imaginar uma mesa de bilhar onde estão duas bolas colocadas livremente, sem que nenhuma delas esteja encostada nos limites do móvel. Quando você der a tacada de uma na direção da outra, o que esperará? Ora, que o choque impulsione a bola que estiver parada. Isso acontece porque vemos isso acontecer uma vez, duas vezes, três vezes, todas as vezes em que se repetir o movimento. Acontece que ver o choque entre duas bolas de bilhar é um dado de fato, e aqui o princípio da não-contradição é inaplicável. Ao contrário de afirmar que um triângulo tem dois lados, não há nenhuma espécie de contradição lógica em dizer que uma bola não se moverá com o impacto da outra. Isso pode se dar por qualquer motivo: que uma das bolas seja imprevisivelmente pesada, que esteja imantada na mesa, que possua uma trava sob ela, não importa. Não há nada que assegure a repetição da causa e do efeito.

Mas por que diabos vemos as coisas se repetirem? Por que o sol nasce todos os dias e se põe todas as noites? Porque as coisas caem quando as soltamos no ar? É que nós possuímos um esquema mental que está preparado para a habitualidade. A repetição dos fenômenos faz com que tomemos por verdade lógica uma determinada sequência de causa e consequência que, in extremis, não existe. Isso porque os dados de fatos não precisam seguir o princípio da não-contradição. O sol nasce todos os dias, mas é possível dizer que ele não nascerá sem que se caia em uma contradição. Diga-o a alguém que esteja na noite de seis meses dos polos ou no lado escuro da lua. Também não há contradição em dizer que algo não vai cair por ação da gravidade, bastando estar no espaço sideral. E, por fim, um dia o sol vai se apagar, e o efeito da gravidade pode ter uma condição tal em que seja anulado de uma hora para outra, quem pode dizer?

O fato, para Hume, é que o hábito ilude. Nós não nos damos conta de que a repetição dos fenômenos não é uma questão de conhecimento, mas de crença. Nós não sabemos que algo vai acontecer em consequência de uma causa, mas cremos que vai acontecer. Isso arremessa de cabeça a indução para a Metafísica, porque não é possível inferir necessidade*** a priori. Se fosse, por qual motivo precisaríamos observar empiricamente o resultado de uma ação? A causa e efeito retirados de uma relação lógica se tornam algo como uma fé, que não está no escopo do empírico. As relações de ideias estão a salvo disso tudo, porque definições não são derivadas de causação, e estão submetidas ao princípio da não-contradição, como eu disse anteriormente.

E por que isso é um grande problema? Porque toda a Ciência se baseia em indução. Os antigos silogismos aristotélicos eram muito elegantes, mas se prestavam a inferir logicamente as coisas que já possuíam predicação em si mesmas, enquanto o que trazia novidades de fato eram os encadeamentos indutivos, que buscavam exatamente a repetição dos fenômenos para trazer cada vez mais força aos seus argumentos. O problema da indução levantado por Hume nos faz questionar se de fato a Ciência é capaz de produzir conhecimento, já que se baseia na observação de fenômenos que, reduzidos a inferências, não tem poderio lógico de se sustentar.

O desconforto, mais uma vez, vem do desconhecimento sobre a maneira com a qual a Ciência se apoia na observação dos fenômenos para obter seu combustível. Os cientistas sabem disso, e trabalham no sentido de uma aproximação com a verdade, e não com a verdade em si, que é coisa difícil de atingir. É por isso que os métodos buscam cada vez maior aperfeiçoamento, e o critério da falseabilidade é a melhor prova de que a indução pode ser trabalhada de forma mais inteligente, e mesmo o método popperiano já foi levado mais além, de modo que os corolários de uma teoria sejam atacados antes do seu cerne. Além disso, o próprio Hume afirmava que as relações de causa e efeito podiam não ser logicamente consistentes, mas eram úteis. Embora a indução seja contingente, ela fornece graus competentes de probabilidade quando levantada com rigor. Isso porque o objetivo de Hume não é imobilizar o processo de busca do conhecimento, como fariam os antigos céticos, mas o de descortinar qualquer procedimento que não fosse baseado na realidade e nas verdadeiras possibilidades cognitivas.

Evidentemente, as propostas de Hume são desafiadoras, mas ele mesmo diria que não são definitivas. Pouco tempo depois, Kant faria a genial conciliação entre as duas correntes, descrevendo o que é apriorístico e o que é empírico na cognição, e dando um limite muito mais preciso da participação da consciência individual nessas relações, mas ele mesmo atribui a Hume seu despertar do sono dogmático, o que por si só já é um elogio de inflar o balão. Espero que tenha ficado bem claro. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Hume é altamente crítico neste seu tratado, e é uma das obras mais pedidas nas faculdades de Filosofia. Para quem se interessa pelo tema, é um prato cheio.

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: Unesp, 2009.


* Para quem estiver com preguiça de ler os links: o racionalismo entende que a razão é prioritária no desenvolvimento do conhecimento, porque certas relações cognitivas já vêm de fábrica no ser humano. Já o empirismo acha que todo o conhecimento é externo ao contribuinte, sendo adquirido através dos sentidos e, aí sim, processado pela mente.

** Não no sentido propriamente científico, como as experiências realizadas em laboratório, mas na vivência dos fenômenos que nos cercam.

*** Em Filosofia, necessário é aquilo que é de uma forma e não poderia ser de outra.

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