(“Faça isso e acontecerá aquilo” é uma lógica que nos parece tão natural que nem questionamos se essa regra é real).
Olá!
“É o costume do pito que entorta o beiço", dizia um dos
vizinhos dos meus avós, que não fumava cachimbo. Aplicava-se este dito a pessoas
com manias reiteradas, que acabava por marcá-las e até apelidá-las. Acontece
que todos nós temos nossos costumes, que acabam por ficar automatizados. Eu
tenho vários, e um deles é o de encher a talha todos os dias de manhã, para não
faltar água filtrada durante o dia. Aqui cabe uma rápida explicação.
Eu tenho uma daquelas talhas de barro, comuníssimas. Esse
tipo de artefato normalmente é enchido com um jarro, pegando água do sistema
público diretamente da torneira. Minha talha fica em uma cantoneira, deixando-a
bem acima do nível da pia. Como era uma chatice ter que subir no banquinho para
encher o utensílio, bolei um esqueminha que consiste em uma torneirinha
secundária, de onde sai uma fina mangueira diretamente no reservatório,
entrando através de um orifício que eu fiz na tampa com arame quente. Dessa
forma, consigo encher o filtro sem a necessidade do sobe-e-desce. O sistema não
é perfeito, porque não consigo ver o nível em que a água se encontra, e por
vezes ela transborda, mas, com a prática, peguei uma noção de tempo que se
demonstra suficiente para suprir a necessidade diária. Logo depois do café, abro o
registro da talha e vou abrir a janela dos passarinhos, ajeitando as plantas
que ficam na varanda. No retorno, já posso fechar a torneirinha. Esse é o tempo
certo que mencionei logo atrás.
Tudo muito bonito, mas já aconteceu de haver grandes
transbordamentos, fazendo perder o serviço da louça escorrida que fica logo
abaixo, e assemelhando a pia a um dos tantos bairros que se alagam nesta
metrópole da solidão. Em uma dessas manhãs, eu percorri todo o trajeto que
mencionei para vocês, mas já ao chegar de volta à sala foi possível ouvir o
ruído de uma miniatura de cachoeira. A patroa diz que é desleixo, e eu fico
encafifado: por que funciona todo santo dia, mas há momentos em que a lógica
falha?
É através de uma cena tão quotidiana como esta que tivemos um dos maiores desafios ao racionalismo cartesiano, com um forte reforço no empirismo e quase beirando o ceticismo. É uma questão tão importante que eu nem sei como ficou de fora até hoje no meu espaço. Antes, porém, seria importante se dar conta das propostas do tal racionalismo, que podem ser lidas neste texto, e do embate que o mesmo teve com o empirismo*. Falei muitas vezes sobre isso, mas podem tomar conhecimento aqui. Isso feito, vamos falar sobre as ideias de David Hume.
Hume foi um filósofo escocês, bastante precoce, mas que
demorou um pouco a emplacar notoriedade. É considerado o empirista que mais
radicalmente carregou seu projeto epistemológico, a ponto de quase retomar o antigo ceticismo pirrônico, que entendia ser impossível
conhecer.
Mas vamos passo a passo. Os empiristas seguiam a linha geral
da tabula rasa, expressão latina que
significa algo como “papel em branco”. Essa é uma metáfora que indica que todos
os operandos para o funcionamento da razão humana são obtidos de fora, ou seja,
dos objetos aos quais somos apresentados. Não há, segundo eles, nenhuma coisa
que venha a priori, como tanto
defendiam os racionalistas. Portanto, todo o conhecimento é obtido a partir da
experiência e por intermédio dos nossos sentidos, que são a ponte entre nossa
razão e o mundo. É necessária uma experiência** para que tenhamos em nós
conteúdo cognitivo novo, e vem daí o nome da corrente (empeiria=experiência em grego).
Mas como essa coleta de informações vinda do ambiente e de
outros sujeitos é processada em nossas mentes? Enfim, como as percepções
absorvidas pelos sentidos ganham estatuto de conhecimento? Segundo Hume, os
dados obtidos do meio externo ficam gravados na forma de impressões e de ideias.
As impressões são os meios primários com os quais nosso cérebro é atingido, e
se dá pelo contato direto com o objeto da cognição. Por exemplo, digamos que eu
tenha uma bola de futebol em minhas mãos. Percebo nela uma série de
características simples: suas cores, seu peso, sua esfericidade, seu material.
Nenhuma delas representa uma bola isoladamente, mas é necessário que todos
esses componentes de impressões simples estejam lá para que eu tenha uma
impressão complexa: o objeto bola. Enquanto a tenho comigo, ela imprime uma
forte percepção em minha mente, já que todos os meus sentidos estão atuando
para recolher informações sobre ela. A impressão, portanto, é extremamente
vívida, presente e correspondente ao real.
O que acontecerá, entretanto, se eu pegar essa mesma bola e
jogá-la em um canto do quintal, afastando-a dos meus sentidos? Bem, ainda assim
eu serei capaz de articular mentalmente com o objeto, só que agora na forma de
ideia. Ocorrerá que o objeto ficará cada vez menos nítido, empalidecido, mas
com uma vantagem em relação à impressão. Imaginemos um técnico que vê seu time
jogando uma partida sofrível. Os lances, passes e tática estão ali em campo,
visíveis, e estão sendo escritos na sua mente na forma de impressão. A partir
do momento em que nosso pobre treinador começa a imaginar formas de corrigir o
posicionamento de sua equipe, ele não está mais coletando dados da realidade presente,
mas utilizando informações vindas de suas experiências anteriores, até que
consiga pensar em formas de transpô-las para as quatro linhas. Essa é a
vantagem das ideias: como o objeto não estará mais tomando toda a minha
atenção, terei mais facilidade para articulá-lo com outras ideias, no que
resultará em nosso processo de abstração. Com a impressão, temos o que sentimos;
com a ideia, o que pensamos.
Segundo o empirismo, o inatismo é impossível, e ele é
imprescindível para a lógica racionalista. Hume explica como o inatismo é
falacioso por conta dos mecanismos de associações que produzimos em nossas
mentes. Entidades abstratas são reconhecidas por conta de conhecimentos preexistentes vindos dos sentidos. Um deus, por exemplo, é uma continuação dos
homens que são efetivamente conhecidos: através da ideia de humanidade,
maximizam-se seus valores e temos o deus infinitamente misericordioso. Através
do domínio da natureza que o próprio homem tem, chega-se à onipotência divina,
e assim sucessivamente. Aliás, falando em infinito, outra concepção abstrata
tida como inata, é através do aprendizado dos tempos cada vez maiores e dos
espaços cada vez mais distantes, que se associam uns aos outros, que se chega à
ideia abstrata de infinitude. Ou seja, mesmo o mais abstrato dos devaneios não
é feito por criação exclusiva da mente humana. Antes disso, é com elementos já
existentes nas ideias que a abstração se cria.
Apesar deste golpe no racionalismo, Hume também chuta a
canela do próprio empirismo, e o faz de maneira dolorida. Segundo ele, a mente
opera através de três processos de associação de ideias: semelhança,
contiguidade e causação. O primeiro é dado pelo óbvio mecanismo de
remissão de uma coisa para a outra. Uma bola de futebol se assemelha a uma de
basquete, que se assemelha a uma de vôlei e assim por diante. Até mesmo algum
esporte não inventado, que esteja somente em minha imaginação, pode ter uma bola
envolvida se eu associá-la a este ambiente por semelhança. Já a contiguidade se
forma pelo reconhecimento de que as coisas andam habitualmente juntas. Seguindo
o exemplo do futebol, uma bola já faz pressupor campo, jogadores, torcida,
árbitro, partida, campeonato e via discorrendo. Por fim, o processo de causação
é a clássica relação de causa e efeito, onde tudo o que acontece é consequência
de um fenômeno que lhes deu origem. O chute é a causa do gol, o gol é a
consequência do chute; a falta é a consequência da jogada violenta, a jogada
violenta é a causa da falta, seguindo ad
nauseam por quantos exemplos se queiram. Acontece que o processo empírico
se serve profusamente das associações de causação, e é aí que está todo o
problema. Tenham um pouco de paciência que a gente já chega lá.
Hume entende que há dois gêneros de objetos que são
processados em nossos cérebros. Temos relações
de ideias, que são desdobramentos de pensamentos inferidos unicamente pelo
próprio raciocínio, e que ficam circunscritos à definição de conceitos lógicos e
matemáticos. Não se trata dos mesmos pensamentos inatos que Hume tanto combate,
mas de derivações daquelas ideias que já perderam o vínculo com a concretude
que lhes originou. Aqui ficam os conceitos, os entes matemáticos, os
desenvolvimentos lógicos formais, as descrições geométricas e tantas outras
relações que se assemelham muito aos juízos apriorísticos kantianos. É uma
relação de ideias, por exemplo, afirmar que duas retas paralelas são aquelas
que não possuem nenhum ponto em comum, ou que um cubo é um sólido de seis
faces, ou ainda que a décima potência de 2 é igual a 1024. As relações de
ideias são baseadas no princípio da não-contradição,
o que significa que uma inversão lógica a torna completamente inválida. Não é
possível afirmar que um círculo é quadrado, ou que eu vou e não vou ao jogo de
futebol ao mesmo tempo.
O outro gênero são os dados de fatos. São estes que são
colhidos diretamente da experiência, iniciando como uma impressão e
posteriormente indo para o campo das ideias. São exatamente eles que retratam o
ato empírico, e é por eles que disparamos as associações de ideias. Ou seja,
não há aqui nada que seja apriorístico, porque só conseguimos atinar qualquer
fenômeno a partir do seu acontecimento. Quando eu usei o exemplo da bola para
falar sobre a aquisição de uma impressão, era um dado de fato que eu tinha em
minhas mãos. Então eu poderia fazer um sem-número de associações a partir
daquele objeto: a similaridade com qualquer outra bola e a contiguidade do seu
uso em um campo ou quadra. Naturalmente, eu também podia fazer associações de causa
e efeito com ela. A bola é consequência do couro, que é consequência do boi,
que é consequência da grama, que é consequência da terra e qualquer outro tipo
de bobagem meramente ilustrativo. Enfim, o princípio da causalidade diz que
qualquer objeto ou fenômeno tem uma causa que lhe dê origem. Só que é aí que
tem uma pegadinha. Para demonstrar isso, vamos ao exemplo do próprio Hume.
Vamos imaginar uma mesa de
bilhar onde estão duas bolas colocadas livremente, sem que nenhuma delas esteja
encostada nos limites do móvel. Quando você der a tacada de uma na direção da
outra, o que esperará? Ora, que o choque impulsione a bola que estiver parada.
Isso acontece porque vemos isso acontecer uma vez, duas vezes, três vezes,
todas as vezes em que se repetir o movimento. Acontece que ver o choque entre
duas bolas de bilhar é um dado de fato, e aqui o princípio da não-contradição é
inaplicável. Ao contrário de afirmar que um triângulo tem dois lados, não há
nenhuma espécie de contradição lógica em dizer que uma bola não se moverá com o
impacto da outra. Isso pode se dar por qualquer motivo: que uma das bolas seja
imprevisivelmente pesada, que esteja imantada na mesa, que possua uma trava sob
ela, não importa. Não há nada que assegure a repetição da causa e do efeito.
Mas por que diabos vemos as
coisas se repetirem? Por que o sol nasce todos os dias e se põe todas as
noites? Porque as coisas caem quando as soltamos no ar? É que nós possuímos um
esquema mental que está preparado para a habitualidade. A repetição dos
fenômenos faz com que tomemos por verdade lógica uma determinada sequência de
causa e consequência que, in extremis,
não existe. Isso porque os dados de fatos não precisam seguir o princípio da
não-contradição. O sol nasce todos os dias, mas é possível dizer que ele não
nascerá sem que se caia em uma contradição. Diga-o a alguém que esteja na noite
de seis meses dos polos ou no lado escuro da lua. Também não há contradição em
dizer que algo não vai cair por ação da gravidade, bastando estar no espaço
sideral. E, por fim, um dia o sol vai se apagar, e o efeito da gravidade pode
ter uma condição tal em que seja anulado de uma hora para outra, quem pode
dizer?
O fato, para Hume, é que o
hábito ilude. Nós não nos damos conta de que a repetição dos fenômenos não é
uma questão de conhecimento, mas de crença. Nós não sabemos que algo vai acontecer em consequência de uma causa, mas cremos que vai acontecer. Isso arremessa
de cabeça a indução para a Metafísica, porque não é possível inferir
necessidade*** a priori. Se fosse, por qual motivo precisaríamos observar empiricamente
o resultado de uma ação? A causa e efeito retirados de uma relação lógica se
tornam algo como uma fé, que não está no escopo do empírico. As relações de
ideias estão a salvo disso tudo, porque definições não são derivadas de
causação, e estão submetidas ao princípio da não-contradição, como eu disse
anteriormente.
E por que isso é um grande
problema? Porque toda a Ciência se baseia em indução.
Os antigos silogismos
aristotélicos eram muito elegantes, mas se prestavam a inferir logicamente
as coisas que já possuíam predicação em si mesmas, enquanto o que trazia
novidades de fato eram os encadeamentos indutivos, que buscavam exatamente a
repetição dos fenômenos para trazer cada vez mais força aos seus argumentos. O
problema da indução levantado por Hume nos faz questionar se de fato a Ciência
é capaz de produzir conhecimento, já que se baseia na observação de fenômenos
que, reduzidos a inferências, não tem poderio lógico de se sustentar.
O desconforto, mais uma vez,
vem do desconhecimento sobre a maneira com a qual a Ciência se apoia na
observação dos fenômenos para obter seu combustível. Os cientistas sabem disso,
e trabalham no sentido de uma aproximação com a verdade, e não com a verdade em
si, que é coisa difícil de atingir. É por isso que os métodos buscam cada vez
maior aperfeiçoamento, e o critério
da falseabilidade é a melhor prova de que a indução pode ser trabalhada de
forma mais inteligente, e mesmo o método popperiano já foi levado mais
além, de modo que os corolários de uma teoria sejam atacados antes do seu
cerne. Além disso, o próprio Hume afirmava que as relações de causa e efeito
podiam não ser logicamente consistentes, mas eram úteis. Embora a indução seja
contingente, ela fornece graus competentes de probabilidade quando levantada
com rigor. Isso porque o objetivo de Hume não é imobilizar o processo de busca
do conhecimento, como fariam os antigos céticos, mas o de descortinar qualquer
procedimento que não fosse baseado na realidade e nas verdadeiras
possibilidades cognitivas.
Evidentemente, as propostas de
Hume são desafiadoras, mas ele mesmo diria que não são definitivas. Pouco tempo
depois, Kant faria a genial conciliação entre as duas correntes, descrevendo o
que é apriorístico e o que é empírico na cognição, e dando um limite muito mais
preciso da participação da consciência individual nessas relações, mas ele
mesmo atribui a Hume seu despertar do sono dogmático, o que por si só já é um
elogio de inflar o balão. Espero que tenha ficado bem claro. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Hume é altamente crítico neste
seu tratado, e é uma das obras mais pedidas nas faculdades de Filosofia. Para
quem se interessa pelo tema, é um prato cheio.
HUME, David. Tratado da Natureza Humana. São Paulo:
Unesp, 2009.
* Para quem estiver com preguiça de ler os links: o
racionalismo entende que a razão é prioritária no desenvolvimento do
conhecimento, porque certas relações cognitivas já vêm de fábrica no ser
humano. Já o empirismo acha que todo o conhecimento é externo ao contribuinte,
sendo adquirido através dos sentidos e, aí sim, processado pela mente.
** Não no sentido propriamente científico, como as
experiências realizadas em laboratório, mas na vivência dos fenômenos que nos
cercam.
*** Em Filosofia, necessário é aquilo que é de uma forma e
não poderia ser de outra.
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