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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O café filosófico do quotidiano – a fácil moldagem do ápeiron de Anaximandro como essência de todas as coisas

Olá!

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Então ficou combinado assim: eu passo a virada de ano em Taubaté e logo em seguida vou para Curitiba. Fiz isso logo cedo, para aproveitar a aparente trégua da chuva, o que se revelou uma ilusão logo na Serra do Cafezal, primeira serra do caminho na Régis Bittencourt, onde o céu caiu por entre árvores e caminhões. Por falar nela, estreei uma metodologia nova de preparar café exatamente nesta viagem. Eu tenho uma garrafa térmica que possui um filtro metálico, e isso resolveu um belo de um problema.

Na verdade, o problema vem da frescura dos critérios mais rigorosos que eu tenho imposto a mim mesmo desde que passei a pesquisar mais a fundo os diferentes métodos de extração de café. Normalmente, eu pararia no caminho e tomaria um café coado no posto, mas vislumbrei uma maneira de tomar um líquido melhor sem ter que parar.


A solução mais simples de todas seria preparar o café e colocá-lo na garrafa para ir tomando na viagem. Só que isso desnatura o sabor em questão de uma hora, e o objetivo não era queimar a largada, mas ter o produto lá pela terceira hora de viagem, quando o tédio começasse a bater. A melhor maneira, portanto, seria utilizar os poderes térmicos da garrafa e levar nela apenas a água quente.


Quando estivesse lá por Cajati, bastaria pegar o moinho manual e triturar uma quantidade de grãos suficiente para o tanto de água contido na garrafa. É neste momento em que o elemento filtrante de metal entra em ação, fazendo com que obtivéssemos uma infusão fresca, de sabor quase tão agradável quanto se água tivesse sido aquecida na hora.


O ideal seria ter uma daquelas cafeteiras portáteis que fazem de tudo, moendo o grão e aquecendo a água eletricamente, utilizando o plugue do isqueiro do carro, mas elas custam o olho da cara e eu não estou podendo, como todos os demais assalariados deste país, então posso considerar que o método é, no mínimo, eficaz para este propósito. Ainda deu uma sobrinha para tomar mais à frente, já quase na divisa com o estado do Paraná.


Nome do utensílio: garrafa térmica com filtro de metal

Tipo de técnica: infusão

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: preenche-se a garrafa com água fervente, deixando espaço suficiente para despejar o pó. No momento adequado, retira-se o filtro e coloca-se o café moído. O filtro é reposto e a garrafa é firmemente fechada, ficando o tempo suficiente para a infusão. Após, o café é escoado para consumo. É importante que a garrafa tenha boa vedação para evitar a perda de temperatura.

Resíduos: Pouco

Temperatura de saída: Média-baixa

Nível de ritual: Baixo

Em um exemplo tão banal, podemos ver como as coisas têm sua plasticidade. Essa garrafinha não é destinada exatamente para se fazer café, dando-se melhor com chá, que é menos caprichoso com sabores e oxidações. Só que, bem usada, se prestou a um ótimo serviço. Poderia também levar suco, um vinhozinho, ser um peso de papel, um porrete de dar na cabeça de bêbado ou coisas menos votadas, tudo depende da criatividade de quem inventa usos.

Vou dirigindo e tomando meu café (que a PRF não saiba), em um ordinário copinho de plástico. Que vacilo, podia ter trazido recipiente melhor. O material é meio mole, o que dificulta um pouco o manuseio em momento tão delicado. Ele deforma todo na mão e parece que vai desmanchar. É outra coisa que é facilmente moldável, como também é o banco em que sento. Tudo na vida é tão plástico, tão flexível, tão acomodável que parece ser essa a nossa própria essência, e não a história parmenidiana de que tudo é imutável. Nós mudamos e nos adaptamos, seres e coisas fabricadas pelos seres, como as nossas próprias cidades.

Ora, se nossa essência é ser mutante, como quereria Heráclito, não é, ela mesma, algo imutável? Será que não é isso nosso core, nosso algo comum, nossa característica intrínseca? Vou pensando nisso já meio inebriado pelas curvas e pelo pico de cafeína, a ponto de esquecer que a patroa está do lado e solta um pequeno grito quando o copinho de plástico, o tal moldável que deu origem à série, escapole de sua mão e cai milagrosamente de pé no chão do carro, sem causar prejuízos. Apesar do susto, mantenho minha adrenalina em níveis estáveis e retomo meu papo interior sobre essência e plasticidade.

Quando falamos nesse tipo de coisa, resgatamos o pensamento mais primordial da Filosofia grega, que queria chegar em uma essência da mesma forma meu pensamento quase descoordenado em meio às serras da Regis. Já falei muito sobre isso neste blog, chegando quase à saturação, mas é que o tema é central na história filosófica ocidental, e eu mesmo me pego por vezes fazendo algo bem semelhante, como estou narrando neste momento.

Acontece que os primeiros filósofos buscavam a arché em coisas plenamente físicas, como especifiquei neste texto, sendo que o pioneiro de todos foi Tales, que elegeu a água como elemento primordial, pela sua quase onipresença no universo observável. Mas meu foco será em seu sucessor.

Anaximandro era milésio, assim como Tales. Em sua obra De Natura (outra dentre tantas “Sobre a Natureza” que os primeiros gregos escreveram), da qual nos chegou apenas alguns fragmentos, abandonou a linguagem em verso típica dos gregos e passou a utilizar a prosa, mais adequada a quem queria fazer uma comunicação mais livre de elementos desvinculados da ideia em si. Ele desenvolve sua ideia de arché de maneira mais intrínseca que seu antecessor, que ainda incorporava um elemento físico para explicar a essência originária do cosmos. Anaximandro entende que a água, embora concorde que esteja presente em quase tudo o que nos rodeia, ela mesma é uma matéria secundária, e tem ainda antes de si outro princípio primitivo, assim como qualquer outro elemento que se possa captar pelos sentidos, como tentaram Anaxímenes com o ar e Xenófanes com a terra, para ficar em dois exemplos.

Se nós paramos para pensar, de fato é difícil aceitar que um único elemento molde toda a realidade, pelo menos com suas simples características próprias. Uma substância mais permeável a moldagens daria uma explicação melhor à questão. Anaximandro sofisticou o pensamento talesiano através do ápeiron, palavra grega que significa algo como “sem limites”. Ele tira a necessidade de um meio físico e coloca um princípio delineador à realidade, de modo a tudo ser possível através dele. Esse princípio, como o próprio nome prenuncia, não possui limites quantitativos e nem qualitativos, ou seja, pode-se estender espacialmente para qualquer dimensão e assumir toda e qualquer forma que exista no universo inteiro.

O ápeiron de Anaximandro sobrepõe a dimensão temporal que estamos acostumados a adotar. Quando pensamos nos mais extremos dos tempos, podemos falar de vidas eternas, das quais as divindades são as mais potentes representantes. Entretanto, os deuses gregos tinham um infinitude em sentido único, sendo que eles jamais morriam, mas tinham um nascimento, que eram explicados nas diferentes teogonias, como é o caso célebre da de Hesíodo, já comentada neste texto. O mesmo se aplica ao universo e ao próprio mundo. Contudo, Anaximandro identifica o ápeiron com os fundamentos divinos e retira dele o início, reputando-o como eterno em qualquer sentido temporal: o ápeiron não tem fim, e também não tem começo, senão ele teria um limite. Ele está divinizado e quebra um dos eixos da religião pública grega, dando um certo sabor órfico à sua filosofia.

Mas como se dá a moldagem do ápeiron? Apesar de ser uma substância única, ele toma a forma e a matéria de qualquer objeto que possamos observar, e desses fenômenos podemos perceber que há uma série de características que muitas vezes são opostas entre si, aquela velha história do quente-frio, grande-pequeno, seco-molhado, velho-novo e così via. Em cada uma das instâncias que o ápeiron se concretiza, há uma predominância de um contrário sobre o outro. Essa predominância indica que um ponto de equilíbrio se perdeu, como são os relacionamentos pessoais e sociais, e isso gera uma “injustiça”, onde essa preponderância "massacra" o lado oposto. Imagine, por exemplo, uma planta em uma terra completamente seca. Todos os líquidos que estão em seu interior vão se esvaindo até sua morte. Todavia, se ela receber água incessantemente, suas estruturas internas se encharcarão a ponto de perder sua funcionalidade, o que também representará seu fim. Ou seja, a predominância de um dos opostos vai se manter até um ponto de cisão, quando os contrários porão um fim em si mesmos e renascerão novamente, dando ao ápeiron um novo aspecto. Eu já mencionei várias vezes as visões cíclicas da realidade, como acontece com Empédocles, com o Budismo ou até mesmo com a provocação nietzscheana do eterno retorno, e aqui temos mais uma dessas representações: tudo parte do ápeiron e tudo volta ao ápeiron, em um ciclo sem fim, já que a própria substância é infinita.

Essa história de jogos de equilíbrio e de vida cíclica é uma ideia que vem do orfismo, como eu disse logo atrás, que influenciou muito diretamente a filosofia pré clássica e que me levou a redigir um texto recente. Se você tiver paciência de ler, perceberá que já naquele momento existia uma ideia de carga de culpas semelhante ao que acontece com o pecado original cristão, e que se repete em Anaximandro: a injustiça dos desequilíbrios é inerente à própria constituição do cosmos, já estando embutida em sua substância original, e é isso o que faz com que ele se mova.

Além disso, Anaximandro rompe com a ideia de universo único. A sua lógica consiste na ausência de limitação do ápeiron, que não pode se restringir apenas ao universo visível. Do contrário, ele teria os limites da nossa própria percepção. Desta forma, não apenas os mundos teriam existências cíclicas e sucessivas, mas concomitantes, como os proponentes do multiverso amariam adotar mais tarde. Portanto, a filosofia de Anaximandro tem um horizonte bem mais largo que a de Tales, sendo até mesmo possível correlacioná-la com a metafísica dos mundos possíveis imaginada contemporaneamente.

Por fim, podemos chamar a atenção dos conspiracionistas de plantão para uma nova teoria com a qual eles podem assustar a patuleia. Para Anaximandro, o planeta Terra não possuía o formato plano que se cria na época, mas também não era esférico como sabemos hoje em dia. Anaximandro entendia que a Terra era cilíndrica.

Como funciona isso? Para ele, o cosmos nasce de uma das inúmeras oposições possíveis, a do frio versus calor. No âmbito local, esse contraste era representado pelo Sol quente e a Lua fria, cada um inserido em sua própria roda que se situam concentricamente. A luta entre ambos os estados criava uma espécie de túnel, exatamente onde a Terra estaria encapsulada, bem ao centro. O Sol e a Lua seriam visíveis por conta de descontinuidades nessa cápsula, e isso tornava possível a entrada de sua luz. O formato cilíndrico era melhor que o plano para explicar o deslocamento dos astros através dos céus, sendo que o mundo conhecido se limitava à Europa, África e Ásia. Nem se sonhava com América, Oceania e Antártica. Sendo assim, a porção sólida do planeta seria circundada totalmente por água que, ao contrário do pensamento de Tales de que a terra boiava sobre esse elemento, se autossustentava no espaço por ação das oposições externas já mencionadas.

Aqui, Anaximandro fará uma concessão a Tales e reconhecer a importância da água nas relações do planeta. Para ele, e prenunciando um rudimento de evolução das espécies, a vida inicia-se nos mares e lentamente vai migrando para a porção sólida, através de progressivas adaptações do seres que de lá surgem.

Eu fiquei lá por entre as serras divagando sobre a genialidade deste modelo de pensamento, em época que não havia instrumentos disponíveis, apenas os cérebros humanos. Quando dou por mim, já passei a Barra do Turvo e entrei no Paraná, com a patroa dando seu reconfortante cochilo de um olho só, e aperto o passo para chegar logo de uma vez e recolher todos estes pensamentos no texto que vocês estão lendo agora. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É o livro de um dos principais físicos da atualidade, que rende suas louvaminhas (justas) àquele que é tido como um dos grandes precursores dos métodos científicos. Na ausência de escritos remanescentes do autor original, é uma boa dica para conhecer melhor este filósofo.

Rovelli, Carlo. Anaximandro de Mileto. O nascimento do pensamento científico. São Paulo: Loyola, 2013.

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