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terça-feira, 5 de julho de 2022

O café filosófico do quotidiano - A transformação é a grande permanência universal

(Depois de tanto Parmênides, é hora de falar de Heráclito)

Tudo o que se vê não é igual ao que a gente viu a um segundo, tudo muda o tempo todo no mundo

Olá!

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Quem sou eu prá dizer que não vou mais voltar a um assunto…

Já apresentei toda sorte de métodos de extração de café aqui para vocês, e a lista segue crescendo. Quem me acompanha de perto já percebeu que, embora o maior intuito dessa série seja filosofar, há um claro sentido técnico também, menos na tentativa de ensinar alguém a função de barista (que eu não tenho), mais em colaborar no desenvolvimento da ideia que resultou no corpo principal do texto. Por esse motivo, sempre tem um pouco de didatismo aqui também, não se assustem.

Ainda que não seja uma divisão absolutamente canônica, temos em maioria dos métodos divididos em dois grupos: os cafés coados e os infundidos, em sua maioria prensados. Cada um tem suas virtudes e seus defeitos. Coar café geralmente dá um líquido mais límpido e menos cheio de resíduos, enquanto prensar mantém mais óleos e dá melhor corpo. Haveria de ter alguém que procurasse juntar o melhor dos dois mundos, e o resultado de uma das melhores tentativas resultou no Aeropress.


O processo de extração deste método consiste em aproveitar um grande êmbolo que abriga o pó moído e água suficiente para quatro xícaras padrão (daquelas de 50 ml). Como é possível antever, garante-se uma certa pressão com essa mecânica, o que dá uma certa aceleração no processo de infusão, que não fica tão longo quanto em uma prensa francesa.


O segredo do duplo método está no elemento vazado acoplado ao êmbolo, onde se encaixa um filtro de papel circular, finíssimo.


Para realizar a extração, tem-se então que realizar a pressão no pistão contra o filtro, de modo a vazar o café diretamente no decanter, o que dá um resultado que combina bom corpo e zero resíduos.


Nome do utensílio: Aeropress

Tipo de técnica: Misto (coado sob pressão)

Dificuldade: média

Espessura do pó: a critério. No entanto, o mais típico é adotar uma moagem que vai da média para a fina.

Dinâmica: Coloca-se o pó em um recipiente em forma de seringa, onde o mesmo ficará sob infusão por alguns minutos. Ao término do tempo, instala-se um filtro no aparelho e pressiona-se um embolo suavemente em um decanter.

Resíduos: nenhum

Temperatura de saída: média

Nível de ritual: alto


Todo o cuidado dos fabricantes não se dá somente por conta das frescuras de gente metida a connoisseur, como este escriba que vos rascunha. Todos esses pesos e medidas vão tentar encontrar uma coisa muito difícil e muito desejada: a padronização. Mas como conseguir que algo seja igual se sabemos que nada se mantém, como nos diz Lulu na epígrafe?

Embora digamos que prefiramos ser metamorfoses ambulantes, como ensinaria Raul, o fato é que temos em nós uma espécie de sintomas de permanência, e isso faz parte de nossa humanidade. É bem simples de fazer um exercício mental, e vou dar um exemplo que pode ser rememorado por qualquer um, com suas experiências próprias. Quando eu era menino de até meus treze anos, minha avó paterna fazia viagens semestrais ao norte do Paraná, mais especificamente a uma pequena urbe chamada Tapira, onde morava seu pai, com um irmão seu. Ela se propunha a custear a viagem de um dos netos mais velhos, e fazia um rodízio entre eles, eu incluso. A cidade era verdadeiramente pequena, e, como meus parentes moravam na zona rural, era preciso sincronizar bem o ônibus, que partia uma única vez ao dia. Se perdêssemos, só na base da carona. O caminho até lá era chão batido até um patrimônio chamado Gleba Quatro, de onde haviam mais quatro quilômetros de caminhada no areião, três deles desafortunadamente em aclive.

(Meninas e meninos, tudo isso pode lhes parecer muito estranho nestes tempos de zap e outros comunicadores instantâneos. Mas o fato é que mesmo telefones fixos eram raros. Meus tios não eram pobres a ponto de não ter uma carroça que nos buscasse. O problema era essencialmente conseguir se comunicar com eles, porque não existiam cabos para ter telefone. Tudo o que estava disponível eram cartas, que eram despachadas para caixas postais que eram verificadas semanalmente. Não dava para combinar com um mínimo de precisão por correspondência os horários de chegada – qualquer intercorrência que atrasasse a chegada faria com que os parentes ficassem como bobos esperando).

Adiantemos o ponteiro para 2020, cerca de quarenta anos depois. Tapira é uma cidade que, com um pouco de boa vontade, fica na rota de Cascavel, essa sim uma cidade de porte razoável, onde meu menino mais velho morou por três anos. Todas as minhas lembranças daquele lugarejo são hoje efetivamente parte do passado. A estrada de terra, a mercearia de beira de estrada, a igrejinha do Alto Café, as três ruas da “cidade” que agora são dez... Embora não tenha surgido uma grande metrópole no lugar, o fato é que não há nada reconhecível dos tempos em que eu vinha para cá, nem mesmo o armazém que fazia as vezes de rodoviária. 

O que eu queria? Que nada tivesse evoluído? Não, apenas tenho em mim a sensação de permanência que todos têm, representada pela memória e pela expectativa que ela se torne concreta novamente à nossa frente.

São Inúmeros os exemplos: vamos na casa de nossas avós esperando comer uma macarronada tão saborosa quanto sempre, vamos na Javari querendo ver um JuveNal tão aguerrido quanto o último, vamos viajar para Marmelópolis e queremos achar uma pasta de marmelo tão boa quanto a de quatro anos atrás, vamos para Itamonte e tememos congelar na água gelada do Escorrega, mas a macarronada está com um molho mais ácido, o JuveNal foi bem mais chocho, a pasta de marmelo está mais aguada e o Escorrega não estava tão frio, a ponto de não avermelhar a pele. Nós temos consciência da alternância dos fenômenos. Sabemos que tudo varia, tudo muda, mas esperamos, aí inconscientemente, achar tudo como antes, em um sentimento de estabilidade que não existe. 

É desse fluido que é feita a realidade, e por isso achamos tão complicado compreender a verdadeira natureza das coisas. Parece existir algo que é sempre igual na realidade, por mais que nos pareçam diferentes. Como conseguimos afirmar que um chihuahua e um rottweiler são cães, se até mesmo mecanicamente é difícil imaginar que eles cruzem? Mas o fato é que chamamos os dois de cachorro, por mais diferentes que sejam. Parece que ambos têm a mesma semente, e floriram absolutamente cada um para um lado.

Para onde vai a velha percepção parmenidesiana? Como podemos concluir que nada se move, que tudo é sempre igual a si mesmo, que tudo é o uno, que tudo não passa de uma armadilha lógica que não encontra eco em nada do que nos circunda? Poderíamos pensar nos ciclos, como os dias que sempre nascem, os anos que sempre se encerram, a flora que sempre brota, a chuva que sempre cai, mas a chuva de ontem não foi a chuva de anteontem. Não foi a água do mesmo mar que evaporou, não foi a mesma terra que ela molhou, não foi o mesmo tempo que ela levou. Nessas urbanescências dos tempos modernos, nem são os mesmos compostos químicos que recobrem os carros e os coloca a enferrujar.

A verdade parece bipolar como os acometidos pelo mal psíquico de mesmo nome. Sempre que pensamos na afirmação de algo, já surge de pronto sua negação, como se fossem pontos de parâmetros. Sabemos que algo é quente porque sabemos o que é o frio, que o vazio se contrapõe ao cheio, o leve ao pesado (apesar de Kundera), o novo ao velho. Ou seja, há uma eterna alternância entre extremos, como se uma estranha imantação quisesse atrair um fenômeno que está do lado de lá. Parece que estou falando de política, mas não só. Até porque entre um extremo e outro há toda uma miríade de nuances, e o mundo se desenrola entre elas.

Bom… então o que verdadeiramente é a verdade? Uma constância com aparência de alternância ou uma transformação travestida de permanência? Esse é o debate que atribuem a Parmênides versus Heráclito, em mais um desses trânsitos entre extremos que mencionei no parágrafo anterior. Mas essa é uma definição superficial. Para quem começa a estudar agora, pode ser didático, mas meia hora de leitura é suficiente para fazer notar que ambas, mais do que serem opostas, são complementares.

Já cansei de falar de Parmênides neste espaço, dele e de seus Blue Caps, então entendo que fiquei em débito com seu antípoda de Éfeso, que é colocado no âmbito dos primeiros ontologistas, sem deixar de ser um naturalista.

É a ele que se atribui o panta rei, uma das mais famosas assertivas de toda a Filosofia. Tudo flui, e não se banha duas vezes no mesmo rio, porque nem nós somos os mesmos, nem o rio, mesmo que o banho seja daqui a cinco minutos. Heráclito é o filósofo da mudança, da transformação e do devir. Ele vivia em um tempo onde os primeiros pensadores ainda buscavam a arché, o princípio originário de todo o cosmos, e ele mesmo trouxe sua proposta, só que seguindo uma rota um tanto alternativa.

De fato, a busca pela arché supunha que no substrato da realidade estivesse um elemento constante, e as mudanças de características de cada um comprovam um dinamismo universal que girava em torno de seus diferentes estados. Só relembrando um exemplo, Tales via que a água era o meio físico pelo qual todas as coisas se constituíam. Dela, se obtém facilmente os três estados da matéria, ela surge nas cavernas escuras, brota das pedras, surge dos poços, poreja dos corpos, evapora para os céus e retorna para a terra. Embora tome qualquer aspecto, volta sempre para sua forma fundamental. A água que é gelo também é vapor, é solvente universal, é item de sobrevivência e morte, é rio.

É exatamente esse rio que Heráclito olha para deduzir que a arché é mais do que algo físico. Todas as vezes em que olhamos para nós mesmos, que seja de um segundo para o outro, já temos alguma coisa de diferente. Ao digitar essa frase, já tive que colher algo de minha memória e que se transformou em escrita. Releio e já tenho essa impressão regravada, mais presente do que antes. É como cada passo que dou dentro do rio. Cada metro cúbico, cada balde, cada gota e cada molécula já são outras. mesmo que uma delas volte a passar, será companhia de bilhões outras que nunca correram esse curso, e assim é com tudo no cosmos.

Não se trata de não imaginar que não exista um fundamento comum em tudo o que existe. É isso o que constitui a arché heraclítica do universo: o eterno devir, a permanente transformação. Já não é um substrato físico, mas ontológico. É natural do próprio ser estar em contínua mudança, de ir para lá e para cá, se transmutando em Ser e não-Ser, ad aeternum

Heráclito chama o elemento de sua arché de fogo, mais pelo plano simbólico do que constitutivo. A explicação é simples, bastando perguntar a qualquer químico qual é a aplicação mais frequente para efetuar combinações entre elementos: o aquecimento. O fogo, quando pensamos em transformações, é o elemento mais representativo, ainda mais porque ele faz nascer substâncias novas e a elas calcina, dando-lhes fim. O fogo nunca é imóvel, como é a água congelada, a terra sem ventos ou o ar engarrafado. O fogo surge e desaparece sempre dando sua presença – nada onde há fogo permanece igual, nem ao menos em sua aparência.

Sendo da maneira que diz Heráclito, deveríamos perceber o universo como caos contínuo, mas isso não acontece. Notamos ordenações e ciclos, a ponto de possibilitar a Ciência como o ofício das predições. Ocorre que da luta dos contrários nasce uma harmonia detectável unicamente pela razão. De fato, sabemos que o jovem de hoje é o velho de amanhã. Sabemos que o café quente esfriará, e sabemos que as águas que nos banham, ainda que não sejam as mesmas, estão no lugar contínuo a quem chamamos de rio. Desta forma, a presença do logos, a capacidade humana de se diferenciar dos animais, a herança divina da qual falava Heráclito e seus contemporâneos, é a chave da interpretação do universo… o logos dá a ordem no meio da "bagunça".

Se Parmênides diz que o Ser (a essência) é o fundamento de tudo, Heráclito diz que o devir é exatamente este Ser, essa essência. A permanência e imutabilidade deste Ser do universo está exatamente nisso: em sua permanente e imutável dinâmica.

Com isso tudo, neste texto que enchi de paráfrases e referências, podemos concluir que há mudanças e permanências, sendo que a principal das estabilidades é na ausência delas, e daí vem uma clave ética muito importante, semelhante à que já ouvimos vinda da década de 80:

Faça tudo o que você estiver fazendo como se fosse a última vez, porque efetivamente é. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Heráclito compôs mais um dentre tantos De Natura típicos de sua época, do qual restou certa quantidade de fragmentos, que podem ser encontrados no livro abaixo:

HERÁCLITO. Fragmentos Contextualizados. Trad. Alexandre Costa. São Paulo: Odysseus, 2021.

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