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quarta-feira, 3 de março de 2021

O café filosófico do quotidiano – A alegoria da caverna e os enganos dos sentidos

Olá!

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As aparências enganam, já dizia um cônjuge que confiou no outro. Na primeira vez que eu coei um café em um filtro japonês, achei que a água ia passar de passagem, dado o tamanho do seu escoadouro, muito maior do que um filtro comum, mas não. Segundo seu fabricante, tudo ali é calculado para extrair aroma e sabor da melhor forma possível. Vamos ver o que eles dizem desse método, muito conhecido pelo seu nome de batismo, V60.

O segredo não é grande, apesar de ser todo cientificamente construído. O aparelho é fabricado pela japonesa Hario, e o termo V60 significa que o filtro é injetado em uma arquitetura em “V” com uma angulatura das paredes de 60 graus, o que faz com que a água seja conduzida ao centro do filtro. As espirais em relevo do interior da peça e o formato cônico fazem com que o líquido extraído escorra de maneira uniforme para o recipiente, e sem formar os acúmulos típicos de um porta-filtro oblongo, como o Melitta.

O ideal é molhar primeiramente o filtro, para aquecer o sistema e remover resíduos. Colocado o pó, e dependendo de sua quantidade, eu faço o blooming (pré-infusão) por trinta segundos e depois despejo a água em três ataques (para meus habituais 300 ml em 30g de pó). Para perceber diferenças no resultado, é preciso uma percepção bem treinada. De fato, os níveis de dulçor e acidez parecem mais nítidos na sua extração.

Nome do utensílio: Filtro Hario V60

Tipo de técnica: coador cônico espiral (percolação)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um coador de papel cônico é introduzido em um porta-filtros de fundo denteado e guias espirais, que retém as partículas enquanto a água faz a extração do café, desembocando em um recipiente de vidro refratário por ação da gravidade.

Resíduos: Mínimos.

Temperatura de saída: Baixa

Nível de ritual: médio

Com a xícara já na mão, fico com essa coisa da aparência na cabeça. Vou bebericando o café e percebo, lá no fundinho, as tais das notas. De fato, com o grão catuaí que utilizei, dá para notar uma insinuação de chocolate e de rapadura, mas nem de perto o café em questão fez simbiose com cacau ou cana, então a explicação está também nas aparências: a um sabor que se parece com chocolate sem ser. Poxa... qual será o percentual de aparências em tudo o que acontece em nossa vida?

E com isso me lembro da alegoria da caverna de Platão, um dos mais festejados e reproduzidos dos desenvolvimentos filosóficos de todos os tempos, leitura obrigatória em qualquer manual introdutório. Horrorizado, dou-me conta que, em mais de trezentos textos e quase dez anos de blog, nunca me debrucei sobre esse tema. Passou da hora, mas nunca é tarde enquanto estamos vivos. Vamos a ele.

A alegoria da caverna nada mais é do que um grande exercício mental, em que Platão usa os personagens Sócrates e Glauco para elaborar um dos clássicos diálogos maiêuticos*, e nós vamos fazer nossa tentativa de reproduzi-lo aqui. Em uma caverna localizada em um local qualquer, vivem homens aprisionados em seus pescoços e suas pernas, de modo que não consigam se locomover, nem olhar para qualquer direção que não seja o fundo do salão. A entrada da caverna não está exatamente ao nível do chão: há uma mureta de pedras da altura de um homem, e apenas acima desta mureta há um vão que permite passagem de luz. Isso faz com que toda a movimentação que ocorre fora da caverna somente possa ser percebida pelo fato de que os homens livres carregam acima dos ombros, do lado de fora –  estátuas de todo material e forma. São as sombras dessas estátuas, projetadas no fundo do salão, toda a percepção que os prisioneiros da caverna têm do mundo exterior, adicionada aos ecos típicos desta formação rochosa, que fazem os sons chegar em murmúrios pouco definíveis aos seus ouvidos.

Como não conheciam outra apreensão, para aqueles escravos as sombras e os ecos não eram projeções vindas de fora, mas a própria realidade em si mesma. Não existiriam nem homens, nem estátuas, nem vozes, nem mesmo sol, apenas as sombras e os ecos, que não eram reconhecidos como tal, ou seja, como projeções de um mundo exterior. O que havia naquele mundo era isso, sombras e ressonâncias, como nós reconhecemos pedras, flores ou pessoas como objetos do mundo. Eles não têm outra coisa que possam julgar como reais.

Sem se saber como, um dos cativos consegue se libertar de seus grilhões. Apesar da posição incômoda em que vivia, ao alongar seus membros chega a sentir dor. Ao voltar seu olhar para a entrada da caverna, percebe as estátuas colocadas nos ombros dos homens, mas não consegue vinculá-las de bate-pronto às sombras que projetam nos fundos.

Ao fitar mais fixamente a luz que vem da entrada, este homem terá seus olhos doloridos, e levado até lá fora, terá como primeira reação um grande embaçamento, contra o qual apertará seus olhos e os recobrirá com as mãos. Só muito aos poucos sua visão se desanuviará, e começará a reconhecer as formas e as cores do mundo exterior, até concluir que vem do Sol toda a luz que existe no mundo, e que este era a causa das sombras que ele e seus companheiros enxergavam no interior da caverna.

Esse homem agora quer voltar para o interior da caverna. Não para retomar seu lugar de acorrentado, mas para anunciar aos seus antigos companheiros que conseguiu compreender a verdade sobre as sombras e ecos, que não eram a realidade em si, muito diferente do que eles pensavam. Ao adentrar novamente o recinto, terá suas vistas escurecidas, e, tentando falar sobre verdade, será ridicularizado pelos remanescentes, mais acostumados com a penumbra.

Pois bem. Para entender direitinho o sentido do mito da caverna, é preciso colocar alguns pontos da metafísica e da epistemologia de Platão. E vamos fazê-lo começando com exemplos. Houve um determinado Natal em que combinamos de reunir a família na casa de um dos primos pela primeira vez. Como sempre fazíamos, as tarefas eram divididas entre todos. A mim, cabia levar um fardinho de cervejas e alguma guloseima, não lembro qual. Além disso, também fiquei incumbido de comprar flores para enfeitar a mesa. É natural que nem eu, nem a patroa tenhamos lembrado disso, por conta da correria ou da falta de anotações. Como sempre estávamos atrasados, minha ainda viva mãe ficava ligando de quinze em quinze minutos. Em todas elas, dizia: “não esquece das flores”. Eu já estava meio irritado, então nem me dava conta direito da pergunta. Numa delas, atinei com a admoestação e lancei para a patroa: que diabo é esse de flor que minha mãe tanto pergunta? A esposa deu uma gelada no olhar, depois levou a mão na boca e falou um sonoro “esqueci!!!!”, com todas essas exclamações. Em uma véspera de Natal, onde a gente iria achar flores? O menino mais velho sugeriu o cemitério, em tom jocoso. Afinal, morre gente todo dia... Por que cargas d’água não morreria no Natal? Como não deixava de ser uma saída, passamos na porta de um desses e bingo! Lá estava a loja salvadora de minha reputação.

Devia ser já umas dez da noite. Eu mesmo saí correndo do carro e fui adentrar a floricultura modorrenta como um guerreiro zulu, sem perceber que sua porta de vidro estava fechada. Chapei o coco com tal gosto que cheguei a cair sentado. O pessoal no carro caiu na risada, enquanto eu tentava me recompor, mas a coisa foi mais séria do que uma simples cena de cinema pastelão. Com o impacto, travei a arcada com tal força que um pedaço de um dos sisos se partiu, e, além do galo, ganhei uma bela dor de dente, que ficou me perturbando a noite toda, mesmo com remédio. Foi, de longe, o meu pior Natal de todos**.

Mas por que eu meti a cabeça na porta de vidro? Ora (direis), porque o vidro é invisível. E isso significa um defeito em nossa sensibilidade: há um objeto concreto no caminho que não conseguimos perceber. Tantos outros sentidos nos são ilusórios - ouvimos um assobio que pensamos ser um passarinho, saboreamos um gosto de sabão e é coentro (blé), tocamos uma taturana e achamos que é fogo… nós apreendemos o mundo através dos sentidos e eles nos enganam. Como podemos saber o que é verdadeiro e o que não é? O que é conhecimento autêntico?

Platão tinha uma perspectiva dualista da realidade. Para ele, todas as coisas tinham um modelo perfeito, ou uma essência, que estavam no plano das ideias, e a realidade física existente nada mais era do que cópias dessas ideias. E aí nós temos o busílis. Pegue um objeto qualquer e tente copiá-lo. Por mais magnífico que seja o artista, sempre haverá algo na cópia que diferirá do original. Um risquinho, um grama no peso, uma graduaçãozinha de cor… mesmo que muito próxima, uma cópia nunca é absoluta. Por isso, o conhecimento autêntico não pode vir da mera observação do mundo, mas de um processo intelectual. É através do intelecto puro que podemos nos aproximar das formas perfeitas que residem no mundo das ideias. E não é necessário que procuremos esse lugar fora de nós mesmos. Segundo Platão, todos já nascemos com o conhecimento de todas as coisas plasmado em nossas mentes, bastando ativá-las por intermédio do exercício intelectual. E como funciona essa coisa de existir um lugar onde existem as formas perfeitas e a nossa possibilidade de conhecê-las?

Anima mundi é uma espécie de princípio cosmológico onde se considera a existência de um espírito compartilhado espalhado por toda a matéria e por todas as almas individuais. Esta anima carrega consigo todo o conhecimento suprassensível às almas individuais, o que faz com que elas tenham a capacidade de conhecer. O eidos residente no Hiperurânio entra em contato com cada indivíduo através dessa espécie de alma compartilhada. Ocorre que esse conhecimento fica latente em cada espírito, e é através da escalada dialética que um intelecto pode acessar esse conhecimento que já existe em si mesmo.

Ocorre que o que temos ao nosso alcance sensório é o cosmos, mas a natureza e o universo não são a totalidade de tudo o que existe; ao invés, são a totalidade de tudo o que pode ser percebido aos sentidos. O que vai além disso é o tal de eidos, a matriz da palavra ideia, e compreende tudo aquilo que é suprassensível. As ideias não existem senão apenas por si, o que as tiram do turbilhão do devir. Elas mesmas não sofrem mudanças e, por isso, são as razões últimas e supremas, ou seja, o crème de la crème de cada coisa e fato no universo.

Nosso caro ateniense descreve o conhecimento, portanto, como um processo de despertar. Todo conhecimento já está embutido em nossas mentes, bastando que seja ativado por uma escalada intelectiva, que procura remover os enganos dos sentidos para se chegar às tais essências suprassensiveis.

Vejamos agora a alegoria. Os homens da caverna são aqueles que se banham no senso comum. Tomam a realidade como resultado do que seus sentidos podem captar e se conformam com isso. As sombras projetadas na parede e as reverberações das vozes são um subproduto da realidade em si mesma. Trazem consigo uma parte desta realidade, mas que são extremamente distorcidas, levando a eles um estado de ignorância conformada. O escravo que se liberta é o inconformista, que não aceita acriticamente a realidade como a mesma se apresenta, e isso representa seu primeiro ato de liberdade. Voltar a cabeça para a luz, antes de mais nada, é a concretização desse ato de transgressão. A subida rumo à entrada da caverna é o esforço intelectual para depurar as distorções da realidade vista fora de sua fonte autêntica. Os homens e as estátuas são as coisas em si mesmas, e o sol que ilumina tudo e trás luz é a fonte primária de todo o conhecimento. Platão deixa para nós a interpretação de que há duas formas de conhecimento: uma sensível, composta principalmente pelo senso comum, pelas opiniões infundadas e pelas superstições; e outra intelectual, filosófica, que é traduzida pelo conhecimento das coisas reais, intelectualmente puras e racionalmente adquiridas.

A lição é que há uma discrepância entre o que extraímos do mundo em que vivemos e o que ele é de fato, sendo tendemos muito mais a nos sentar no conforto das apreensões imediatas e das opiniões prontas do que do desafio e do risco de compreender o que há por trás dos véus.

Em um mundo onde vivemos bombardeados pelas tais das narrativas, podemos sentir a validade dos argumentos de Platão ainda mais atual. Os recursos tecnológicos, que poderiam muito bem reforçar nosso conhecimento efetivo, acabam na verdade sendo ferramentas das sombras e dos ecos, porque ainda mantemos as mesmas superstições e crendices da época clássica grega, para quem este texto foi dirigido. Ao menos naquele tempo havia um luminar. E agora?

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O livro onde a Alegoria da Caverna é descrito é A República. Como já o recomendei neste texto, vou indicar o livro onde Platão fala mais especificamente sobre o processo de conhecimento e a anima mundi.

PLATÃO. As Leis. São Paulo: Edipro, 2010.

* Não se sabe ao certo quando os relatos a respeito de Sócrates são verdadeiros e quando são usados para construir uma cena onde se quer personificar o sábio. A alegoria em questão parece o caso clássico da segunda intenção.

** E sim, comprei as malditas flores.

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