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quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 9º sopro: Caxambu e a dúvida sobre se temos o que merecemos

Olá!


Após voltar de São Lourenço e Carmo de Minas (com passagem rápida por Jesuânia), ainda ficamos mais um dia em Lambari, para depois disso pegar o vento que nos batia do lado esquerdo do rosto e rumar na direção leste. Como de costume, saímos cedo e meio incertos, mas já com a ideia de palmilhar as redondezas de Caxambu.


Há uma grande incerteza quanto à origem etimológica deste topônimo. Encontrei ao menos três, sem que nenhuma seja definitiva. Uma delas é africana, e designaria os tambores com os quais os escravos da região acompanhariam suas canções (cacha-mumbu). Outra explicação possível adviria do tupi-guarani caa-cha-umbu, que significaria algo como “vista que se tem da mata para o riacho”, e, finalmente, há uma terceira tradução plausível, oriunda do dialeto dos Cataguases, cata-umbu, que seria traduzida por “água borbulhante”. De qualquer forma, há uma forte ligação entre as águas de Caxambu e as propriedades medicinais que lhe são atribuídas, refletindo no seu brasão.


Sendo tão importante para a municipalidade, era de se esperar que sua principal atração estivesse vinculada ao solvente universal, e isto é traduzido em seu majestoso Parque de Águas, que, à moda de São Lourenço e Cambuquira, concentra a emissão de fontes em diversos quiosques espalhados pela área.


Um dos pontos de interesse do parque são trabalhos do artista português Chico Cascateiro, os quais já havia podido apreciar em minha passagem por Carmo de Minas. Sua intenção é reproduzir em cimento objetos que se assemelham a outros materiais, como a suposta madeira deste aquário.


As temáticas aquáticas vistas em outras cidades se repetem aqui, como as referências mitológicas refletidas nas ninfas das fontes. Achei a ninfa do parque de Caxambu mais representativa da pureza, e as de São Lourenço, da sensualidade. É um bom exercício compará-las, até porque ambos os modelos são belos.


As atividades crenoterápicas são concentradas no belíssimo prédio do balneário, que fica no pé do morro do Cruzeiro e defronte à engarrafadora de água, ambas dentro do parque. Esta última está em reforma, e permite que os visitantes acompanhem os processos de trabalho de envase.


As semelhanças entre os parques de águas prosseguem. Também em Caxambu, embora em menor monta, há referências à religiosidade de seus habitantes, como na pequena capelinha dedicada à quase onipresente Nhá Chica, onde os fiéis gostam de depositar seus ex-votos e orações.


Temos ainda, no miolo do parque, um grande lago, que disponibiliza as atividades costumeiras, com pequenas embarcações. Algo que me chamou a atenção é que seus aparentemente inofensivos pedalinhos em forma de cisnes são mais velozes do que o costumeiro, o que confesso que gostei, apesar da aparência meio pueril.


Ainda há o teleférico que pode ser acessado tanto por dentro quanto por fora do parque, atravessando o seu lago e subindo ao mirante adjacente pelo meio do mato. Aquela no banco da frente é a patroa.


É um teleférico de nível fácil, com trajeto cumprido em dez minutos no máximo, que passa a pouca altitude do solo e da água. Não consigo calcular com precisão, mas acho que a altura média não passa dos vinte metros.


Apesar disso, a descida dá um pouco de frio na barriga, sim. Em especial para quem já trava ao subir no terceiro degrau de uma escadinha. Convenhamos: sem isso, um teleférico não tem graça. E o que compensa é a vista ampla que se tem do parque e da parte urbana da cidade, fora o mar de morros ao fundo.


O grande diferencial que há no Parque de Águas de Caxambu é o cuidado no acabamento de suas fontes, que tem um aspecto mais “histórico” que nos demais lugares mencionados no périplo.


Percebam que há um estilo um pouco mais uniforme, que remete às épocas aristocráticas e imperiais, ricas em arabescos e com ênfase nos detalhes. Assim, há mais destaque na beleza das construções do que em sua funcionalidade.


Mas, para ser honesto, não há prejuízo em seu acesso, até mesmo pelo contrário. Em uma de suas fontes mais famosas, a Mayrink, para mencionar um exemplo, foi preparado um nicho específico para que as pessoas que a procuram possam lavar os olhos e fazer bochechos, com uma pia mais alta, permitindo um pouco mais de discrição.


Além disso, é uma casinha que possui três fontes distintas, que desembocam em bicas que permitem as combinações necessárias entre as águas carbogasosas, ácidas e radioativas.


Uma das curiosidades do parque é o seu gêiser, que entra em erupção na parte da manhã, todos os dias, pelo que me consta. O formato de cogumelo é meio sugestivo de São Thomé das Letras, mas ainda não havia trafegado para lá neste momento. Emana uma água de temperatura constante, ligeiramente fria, e com muitos sais dissolvidos, o que a torna mais apropriada para banhos do que para ingestão.


A vida do parque não se limita ao interior do seu perímetro. Do lado de fora, há uma grande quantidade de lojinhas vendendo artesanato, em especial os cestos de palha para carregar garrafas de água mineral. Só sugiro que as garrafas sejam melhor lavadas. Há também uma fileira de charretes, que propõem passeios para todos os pontos turísticos da cidade.


Hospedamo-nos em um hotelzinho com uma pequena e oportuna piscina, que fica na mesma rua da igreja matriz, dedicada a Nossa Senhora dos Remédios. Quando procurei referências sobre ela, houve um chato que veio dizer que o verde não é uma cor honrada para uma igreja séria... Sem comentários.


Não é de se estranhar que houvesse também aqui uma homenagem aos beatos destas freguesias: o padre Vitor...


... e novamente a Nhá Chica, que, além da costumeira estátua, tinha uma série de santinhos, em que é inserida uma relíquia: um pedaço de linho que encostou no seu corpo já falecido.


Do hotel, onde conhecemos a Regina, que nos deu algumas dicas da cidade, é possível perceber os aclives e declives que cercam o riacho central. Do outro lado do vale, há uma outra igreja, menor que a matriz, mas que conta algumas histórias interessantes. Para começo de conversa, há uma grande escadaria a lhe guarnecer, daquelas que o pessoal costuma subir de joelhos, para pagar as contas de seus desesperos.


A igreja em si é pequena, mas muito bonita em seu estilo gótico. É dedicada a Santa Isabel de Hungria, uma princesa franciscana de quem se diz que cuidava de uma tonelada de pobres. É uma igreja que abre poucas horas por semana, e dei sorte: a irmãzinha que faz sentinela na casa tinha acabado de abri-la. Nos fundos da pequena paróquia, fica localizado um hospital dedicado a São Vicente de Paulo.


É uma igreja muito antiga, cuja pedra fundamental foi lançada em 1868, por ordem da Princesa Isabel, a quem o povo de Caxambu passou a ter uma reverência quase sacrossanta. O motivo da sua construção se deu por uma suposta graça alcançada pela princesa. Seu adro, feito em local bem alto, tem também uma gruta dedicada a Nossa Senhora de Lourdes.


Mas por que tanta devoção? É que a Princesa Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon d'Orléans era forte admiradora de sua xará dos altares, seja pela coincidência no nome, seja pela coincidência na condição aristocrática. Ela chegou a Caxambu pela boa fama da água local e pela sua dificuldade em engravidar. Como a visita lhe gerou um rebento, atribuiu à graça divina a água ingerida como fármaco, e, em retribuição, mandou erguer a tal capela. Agradecida, a população lhe construiu um busto ao lado da escadaria.


Não tenho informações muito precisas sobre a biografia da princesa. O seu fato mais notável dá conta da assinatura da Lei Áurea, a famosa abolição da escravatura no Brasil. A uma visão mais descuidada, dá a aparência de que se trata de um ato de espontânea vontade da princesa, que achou por bem tornar livres todos os homens que ainda permaneciam escravos. Sabemos que não se tratou de uma ação isolada, porque várias outras leis, como a do Sexagenário, a do Ventre Livre e a proibição do tráfico negreiro já vinham cerceando a escravidão; também sabemos que a assinatura da Lei Áurea foi a sanção de uma lei proposta no Senado, e que depois foi referendada pelo Congresso, não sendo iniciativa direta da princesa. Mas a ideia imediata é a que a princesa era uma mulher benemerente, dada a virtudes e caridades. Não vou julgar nada, até porque pode ser que ela fosse de fato o que se lhe atribui, e a distinção tem motivos firmes para acontecer, ainda mais se levarmos em conta que, se Caxambu é hoje uma cidade pequena, de pouco mais de 20 mil habitantes, quanto mais não seria no meio do século XIX... E receber uma visita imperial era motivo de regozijo, em época sem internet, telefone, televisão ou mesmo rádio. Ver um membro da alta nobreza era a mesma coisa que ver um santo.

Mas a Princesa Isabel não foi para Caxambu por causa de suas broinhas de milho e calorosa acolhida, e sim por conta de sua água taumaturga. Como eu disse anteriormente, a nobre senhora tinha dificuldades de engravidar, e, casada que era com o francês Conde D’Eu (o que gerou uma série de controvérsias que ajudaram a antecipar a república brasileira), guardava para si sério busílis. Hoje pode parecer estranho, nestes tempos de poucos filhos, mas uma mulher sem a capacidade de gravidez era quase como uma garrafa sem fundo – uma inutilidade. Fazia-se chás de “pega-barriga”, posições semelhantes a ioga, fases da lua, orações e simpatias, coisas análogas às que ainda hoje se fazem para tentar curar o câncer, com qualquer mezinha servindo de tentativa desesperada: cartilagem de tubarão, sangue de carpa, uísque com babosa, fosfoetanolamina

Mas, no caso específico, há uma explicação razoável. Uma das fontes mais célebres de Caxambu é a ferruginosa, que contém, como se pode deduzir, alta concentração de ferro dissolvida em si, gerando um líquido pouco saboroso, mas pleno do mineral. Se a causa da infertilidade da princesa se dava por uma anemia, é bastante óbvio que sua cura se deveu às propriedades químicas da água, e não às miraculosas. Mas é normal que isso se coloque em segundo plano, especialmente por conta de uma tendência em se acreditar que há por trás do mundo uma cadeia de causas e consequências previamente ordenada, que faz com que pessoas boas colham bons frutos e pessoas más tenham exatamente o contrário.

Essa correlação mental entre virtudes realizadas e benesses recebidas é uma tendência dos seres humanos? Para o psicólogo social norte-americano Melvin Lerner, sim. Vamos tentar dissecar rapidamente.

O homem é o animal que sabe que sabe. E o que ele mais sabe é que vai morrer um dia. O que vai acontecer depois da morte ninguém sabe, mas temos uma hipótese mais provável que é muito dolorosa – aqui morreu, aqui acabou. Outras intercorrências na vida seguem o mesmo princípio da incerteza. Por exemplo, podemos sonhar com a menina mais bonita, mais esperta, mais inteligente, mais tudo; é sonho. O que teremos é uma pessoa imperfeita como nós somos imperfeitos. Tem mais: o centroavante que pegou a bola na orelha, o goleiro que tomou uma bola no meio das pernas, o técnico que substituiu um meia por um zagueiro e levou a virada, um bandeirinha que não viu um impedimento, um árbitro que deu um cartão vermelho abusivo – justo para o craque do time. Isso tudo conspira contra os títulos do seu clube, por mais bem arquitetadas que sejam suas táticas e mais empenhados que sejam seus jogadores. O mundo e tudo o que tem nele se movimenta em meio ao caos. Há uma dissonância muito grande entre aquilo que enxergamos como perfeito e aquilo que temos à nossa frente. Pior ainda: o mundo é randômico. Hoje o árbitro erra para o meu time, amanhã justamente para o pior rival. A não ser que você torça para a Portuguesa, verá que há uma alternância em tempo longo que distribui os benefícios e os prejuízos dos juízes para os times de maneira mais ou menos equânime, cinco por cento para cá, sete por cento para lá. E isso não é indicativo de uniformidade, mas justamente o contrário: o erro não tem preferência, e, por isso, respinga em quem estiver por perto. Um bloco de cimento que desaba do viaduto pode cair na cabeça do mendigo ou do magistrado, sem nenhum tipo de discriminação.

Isso tudo significa que podemos fazer muito pouca coisa diante deste grande sistema não linear chamado vida. E esse é o típico pensamento que causa imenso desconforto. De fato, saber-se exposto às intempéries do acaso causa uma sensação muito forte de desamparo e incerteza. E isso nos leva a ser impelidos a tentar enxergar algum tipo de lógica nessa trama, uma lógica que nos permita, de alguma forma, direcionar a realidade e dar algum rumo aos nossos destinos, modificando psiquicamente as atribuições das razões pelas quais o mundo se põe diante de nossa consciência. Em suma, a tragédia não pode recair em nós se não fizemos nada para provocá-la.

O primeiro mecanismo para permitir isso vem das religiões. Segundo elas ensinam (em sua maioria), por trás de tudo há uma teleologia, ou seja, um propósito. Cada homem e cada flor e cada bicho e cada pedra e cada alma e cada mundo é criado por uma divindade para atender um determinado desígnio. Essa espécie de ordem estabelecida por uma deidade faz pressupor a existência de uma dimensão que transcende a realidade tangível e o cosmos visível, de modo a ser possível supor que a morte não é um fim, mas um muro que se precisa saltar para atingir os quintais metafísicos da transcendência. Uma divindade que imaginamos bondosa e misericordiosa plasma nas suas criaturas os mesmos crivos para determinar o destino de cada um: em troca de uma vida caritativa e virtuosa, há um reino dos céus para lhe apascentar o espírito, enquanto o contrário traz um horizonte punitivo. Portanto, a causa chamada vida é seguida por uma consequência chamada eternidade que será determinada pelo fator chamado merecimento.

Esse é o mecanismo de grande escala temporal (para a vida humana). Mas a cada ato é possível replicar esse mesmo paradigma, de causa e consequência intermediados pelo mérito, e não pela aleatoriedade. Se uma pessoa pratica atos bons, então coisas boas acontecerão para ela; vice-versa, se seus atos forem ruins. Essa é a psicologia da hipótese do mundo justo levantada por Lerner. É uma maneira que a psique de uma pessoa encontra para reordenar o caos que o universo lhe apresenta. Já pude falar sobre outras maneiras como o cérebro faz isso, algumas vezes de maneira imediata, como na pareidolia; ou múltipla, como na heurística. Mas a reconstrução de um mundo em que podemos determinar causa e consequência através do merecimento é irrealista. E tem problemas, que, aliás, são graves.

Em primeiro lugar, é óbvio que há uma relação entre causas e efeitos. Fure uma bola e ela murchará, não há dúvida. E as pessoas em geral te verão bem se você for alguém agradável, de maneira a ser mais fácil um convívio mais aprazível. O problema do mundo justo é que as consequências não estão ligadas a causas que lhe dão origem de fato, como descrevi na falácia da falsa correlação. Estão mais na base do “você colhe o que planta”, de modo a se inverter o julgamento. Por exemplo: se eu vejo uma pessoa fumando, posso supor que a consequência será um belo pigarro a curto prazo e um belo câncer a longo, mas não posso fechar o veredito se o que dá causa a uma pessoa com câncer no pulmão é o tabagismo. Pode ser tanta coisa... Predisposição genética, inalação de poluentes, fumante passivo, doenças carcinogênicas, e até mesmo o próprio tabagismo, ora pois. Mas estou tentando aplicar uma origem que pode não ser verdadeira, embora faça sentido.

E é aqui que abrimos duas grandes complicações: essa atitude é um poço de preconceitos e nos dá o conforto de virar as costas para o problema sem pesos na consciência. Quando vemos um miserável, observamos um efeito de uma longa cadeia de eventos que não nos damos conta, mas tendemos a achar que ele mesmo, o miserável, é o responsável pelo seu estado de coisas. Isso nubla a visão sobre o que pode tê-lo levado à situação, porque temos a convicção de que nada do que lhe tenha ocorrido tenha decorrido de injustiças. E isso se alastra a uma dimensão social amplamente abrangente, dividindo as sociedades entre párias e eleitos.

Além disso, passamos a culpar não só os próprios indivíduos por situações duradouras ou permanentes, mas por toda sorte de mal que venham a sofrer. Um dos exemplos mais escancarados que encontrei é a recente polêmica sobre a culpa das vítimas pelos estupros que sofrem: usam roupas provocantes, andam em horários e locais impróprios, se embebedam e se drogam, e se sujeitam a ser polos passivos nestes crimes. Mas essa é só uma ponta aparente. 

A lógica do mundo justo nos alivia de encarar o mal social como partícipes desta mesma sociedade. De novo: as coisas ruins acontecem para pessoas ruins ou que tomam atitudes ruins, independentemente do que tenhamos feito sem olhar para o próprio umbigo, e pessoas com comportamentos louváveis (e preestabelecidos) estão isentas de infortúnios.

Até que o bloco de cimento caia em seus colos. Aí, o que faremos com essa lógica?

Recomendação de leitura:

Melvin Lerner foi um pesquisador profícuo, e um grande entusiasta das questões psicológicas envolvendo a justiça social. Infelizmente, não há bibliografia em português, e precisei me arranjar em inglês mesmo.


LERNER, Melvin. Belief in a just world. A fundamental delusion. Nova Iorque: Plenum, 1980.

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