Olá!
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É inegável. Já na ida de Lambari a São Lourenço a estrada
rescendia àquele aroma peculiar e inebriante. Café! Apesar de não estar
exatamente na região onde a cafeicultura é mais presente no estado de Minas
Gerais, sem dúvida é aqui a cidade que melhor se identifica com a rubiácea
pelas paragens que minha atual viagem pretende percorrer. Falo de Carmo de Minas.
O nome da cidade tem tudo a ver com Nossa Senhora do Carmo,
uma das personificações da mãe de Jesus. O Carmo, ou Carmelo, é uma montanha de
Israel onde, segundo a Bíblia, o profeta Elias guerreou dialeticamente com os
sacerdotes do deus Baal. É lá que se originou e estabeleceu a ordem dos
Carmelitas, focada em oração e penitência. Na praça principal do lugar está
fincado o templo dedicado a, obviamente, Nossa Senhora do Carmo, de onde se
originou o nome local.
Esta mesma ordem é a proprietária do prédio em que habito,
para citar en passant. O interior da
igreja é caracterizado pela existência de estátuas em tamanho natural dos doze
apóstolos, com um furo, na minha humilde e pouco teológica opinião. Como se
sabe, um dos doze se matou – Judas Iscariotes. Fê-lo em arrependimento à sua
caguetagem, mas sua vaga não ficou vazia. Em substituição, os apóstolos
remanescentes escolheram Mathias, por sorteio, como se pode ler no livro dos
Atos dos Apóstolos. Era de se supor que fosse esse o gajo a ocupar um dos
nichos, mas não. Quem ocupa o pedestal é São Paulo, que nem chegou a conhecer
Jesus pessoalmente. Bem, passons. O
pároco devia ter lá os seus motivos.
Do lado de fora, ainda no campo de ação da igreja, temos uma
homenagem ao padre açoriano Joaquim Gonçalves Cardoso, que foi o mais eminente
pároco daquela freguesia, quando ainda se denominava Silvestre Ferraz.
Espalhadas pela praça, vemos a presença da obra de outro
ilustre morador local, o escultor Francisco da Silva Reis, o Chico Cascateiro,
cuja principal característica era o uso de cimento e outras massas para simular
objetos naturais, especialmente imitando madeira. Um deles é o chafariz.
Tentei descobrir o porquê do cognome, mas não consegui nada,
a não ser saber que o gajo era português. Há um livre exercício de hipóteses –
pode ser que ele gostasse de tomar banho de cascata, gostasse de replicar
cascatas em suas obras, não gostasse de contar histórias fiáveis ou, o que
seria mais romântico, conseguisse enganar os apreciadores com a perfeição de
suas obras, fazendo-os cair em uma cascata do bem. Sei lá.
O pedaço onde ficam as casas de café fica bem em um dos
extremos do perímetro urbano, no cimo de uma colina. Como em outros casos deste
périplo, a cidadezinha um dia fez parte da Estrada Real, que procurei descrever
com detalhes em meu texto sobre Pouso Alto. Deem uma lida lá para pegar
bem o contexto.
As casas de café da região procuram disputar entre si a
primazia do melhor café. Calma, crianças, não briguem. Todos são bons,
portanto, procurem apanhar mais fregueses no preço, porque vocês estão muito
caros. Cada um tem lá o seu atrativo. O Centro do Café tem uma boa variedade de
objetos correlatos, como bules, açucareiros e placas motivacionais para um bom
cafezinho.
O café Unique investe nas pesquisas de variedades exóticas e
procura, como o nome diz, um sabor único (contrassenso da minha parte, há mais
de uma variedade à venda). Essas barriquinhas lembram minha infância, quando o
governo tentava nos incutir que o café era um autêntico símbolo da glória
brasileira. Era uma balela, mas o distintivo é bonito mesmo.
Por fim, o Café Carmo de Minas transformou sua loja em um
pequeno museu, com uma série de artigos de outrora e que remetem aos métodos
utilizados para produzir o negro e bendito pó, como essa torreifadeira
tripla...
... e essa moendinha, protótipo da primeira fase do caffè espresso. Tudo bem, faltam os
quinze bars de pressão, mas todo café começa pela moagem, não?
Não. O café começa pelo plantio. Os cafeicultores locais têm
o cuidado de tentar tornar Carmo de Minas um centro de excelência na produção
de cafés finos, e, pelo que pudemos conversar com o pessoal do comércio, os
resultados têm sido animadores. Tem tudo para dar certo. Nada é mais brasileiro
que um bom cafezinho.
Brasileiríssimo, aliás. Foi do café que obtivemos um dos
mais longos ciclos de geração de riqueza em nosso país. E mesmo hoje, com a
diversificação da produção mundial, ainda somos referência em matéria de
qualidade.
Brasileiríssimo, será? Etiopíssimo não seria mais
verdadeiro? Afinal de contas, quando falamos de Etiópia só pensamos nos
concorrentes dos quenianos na Corrida de São Silvestre ou na conjugação
fome-guerra que sempre grassou e desgraçou o país, sem se dar conta que é de lá
que surgiram as primeiras sementes que possibilitam o saboroso líquido. Foi
introduzido no Brasil muito tempo depois de descoberto pelos europeus, por obra
do militar Francisco Melo Palheta, e se afeiçoou tanto pelo clima e pela terra
desta casa que aqui ganhou seu lar mais célebre. É certo chamá-lo de
brasileiríssimo?
Estou levantando essa lebre por causa das recentes
discussões sobre apropriação cultural, um conceito que chegou a acirrar
susceptibilidades. As correntes são duas: a uma, parece que o uso de elementos
de uma determinada etnia por outra é a consequência natural do convívio; a
outra, há a impressão de tomada indevida, de descaracterização e de atribuir
para si o que é de outrem. Quem tem razão, se é que alguém tem?
É preciso ser um pouco mais básico e definir primeira e
minimamente o que é cultura. E já defino que se trata do conjunto de ações e
pensamentos que caracteriza o modus
vivendi e a maneira de encarar o mundo de um determinado grupo humano.
Esses grupos podem ser variados em seus critérios, mas o que nos é
significativo aqui é o aspecto étnico, ou seja, de pessoas que, de alguma
forma, dividam características biológicas e/ou sociais.
A cultura, para o que nos cabe aqui, precisa ser estudada no
convívio com os grupos étnicos, e ninguém foi tão pioneiro nisso quanto Claude
Lévi-Strauss, antropólogo belga de quem já tratei neste texto, mas que,
neste momento, devo aprofundar na análise.
Utilizando a metodologia criada pelo polonês Bronislaw Malinowski,
a etnografia, que consiste no contato intersubjetivo entre ambos os lados do
estudo (em outras palavras, morando junto aos índios), Lévi-Strauss fez as
malas e foi morar anos a fio com diferentes tribos indígenas no Brasil. Essa
abordagem permitiu que Strauss compreendesse coisas que não seriam possíveis
sem o fruto do longo convívio. Em primeiro lugar, é preciso obter confiança
daqueles para os quais você é um estranho; e depois, é preciso ter em mente que
as coisas não se transmitem de estalo. É preciso tempo para que elas aconteçam,
e presença para que sejam constatadas. Pode ser muito interessante que, por
exemplo, um velho cacique lhe relate como se dá a época de uma determinada
caça, e é realmente um tipo de informação que precisa ser considerado. Mas há
problemas. Um deles: a visão do cacique é particular. Como será a visão dos
outros? Dos jovens, dos velhos, das mulheres, dos subalternos, das tribos
próximas. Outro: conta-se a prática da caça. Ok. Mas e se a próxima temporada
esperada não vier? Apelarão para uma divindade? Mudarão o alimento do período?
Buscá-la-ão em outros lugares? Não farão nada? Só o convívio suprime, e em
parte, o imponderável. E a reação ao imponderável é o que melhor dá ideia aos
limites e valores de determinada cultura.
Pois bem. Depois de anos de convívio com inúmeras culturas
diferentes e de diversas localidades, Lévi-Strauss chegou à conclusão
surpreendente e basilar para sua escola antropológica. Apesar das diferenças
abissais existentes entre as culturas dos diferentes povos, elas possuem todas
uma única estrutura. Isso significa que, por trás de um sistema cultural, há os
mesmos eixos que existem em outros, ainda que, sob o olhar direto, pareçam
tremendamente distintos. Por exemplo: toda cultura tem a intuição de uma
anterioridade que chega a um determinado limite, quando não há mais como voltar
para trás e um elemento externo interfere no cosmos e a origina – são os mitos
de criação. A maneira como eles são descritos são as mais diferentes possíveis,
mas eles (quase) sempre estão presentes. Pode ser um ovo primordial, uma
deidade, uma energia cósmica ou qualquer outra intervenção, não é isso o que
importa, mas sim o fato de ser uma presença invariável. Idem com o culto aos
mortos. Não há etnia no mundo que vilipendie os corpos dos entes queridos. A
forma com que isso é feito pode variar: enterro, cremação, lançamento ao mar,
enclausuramento em um mausoléu, com ou sem ritos preparatórios. Mas, como
elemento constitutivo, o respeito aos seus mortos está presente em todas as
culturas.
Inúmeros outros fatores estão presentes em todas as
comunidades que constituem culturas diferentes entre si – todas têm a noção de
espaço vital, de transmissão de saberes, de organização do poder, de estética e
arte, de acordo mútuo e punição, entre outros. Enfim, as sociedades e suas
culturas possuem um âmago comum, o que varia é a casca que o reveste. E, sendo
assim, não dá para se falar em superioridade de uma em relação a outra, já que
são diferentes maneiras de se repetir uma mesma estrutura, que, se coexistem, é
porque cada uma delas se mostrou adequada para fazer funcionar um organismo
social.
A noção de superioridade cultural padece do mesmo erro que
se comete ao investigar a evolução das espécies. Não existe espécie mais ou
menos evoluída. Se uma espécie existe hoje, ela tem o mesmo nível de evolução
de qualquer outra. Seus indivíduos foram naturalmente selecionados até tornar o
que o conjunto como um todo é. Se ela existe, é porque é evoluída. Não há ápice
na evolução. Idem com as culturas. O fato de existirem culturas ágrafas, por
exemplo, não indica que sejam culturas inferiores; indica apenas que há
grupamentos que prescindem de registro e/ou contagem, sendo suficiente aquilo
que se expressa oralmente. Vivem bem assim e pronto.
Pois bem. Se não há hierarquia entre culturas, como podemos
estabelecer o que se apropria e o que se assimila? Poderíamos pensar no que
significa apropriação e, falando diretamente, é tomar para si o que não é seu,
sem a concordância do outro. Mais diretamente ainda, é roubo. Assim, se
dissermos que o café é coisa brasileira sem reconhecer sua anterioridade,
podemos falar em apropriação. Agora, se tivermos a lembrança de observar sua
história, a maneira como se imiscuiu em nossos bules, e como passou a fazer parte
de nosso quotidiano e a ser gerador de riqueza, temos a assimilação. Podemos buscar muitos outros exemplos. Vejam o
futebol. Diz-se com frequência que o Brasil é o país do futebol (do que já
discordei aqui), e, de fato, 90% das discussões de boteco têm esse pano
de fundo. Mas ele não chegou aqui por intervenção divina, e sim dos ingleses,
que começaram a praticá-lo aqui do lado de casa, na Várzea do Carmo (Carmo
também). O Corinthians se autointitula “o clube mais brasileiro”. Mas com esse
nome em inglês, e com essa referência a um povo grego? E o Santos Futebol
Clube? São Paulo Futebol Clube? Fluminense Futebol Clube? Embora aportuguesado,
o termo “Futebol Clube” é um anglicismo. Na nossa estrutura linguística, o
correto seria “Clube de Futebol”, mas a origem étnica do termo justifica a
construção. E isso não tira de nós a predileção pelo esporte.
Tudo isso serve para demonstrar como é complexa a questão da
transformação cultural. Há culturas dominantes que se impõe à cultura
subalterna, que lhe sugam elementos, que lhes assimilam ou que se imbricam; há
possibilidade, com esses movimentos, de acentuação ou de atenuação de guetos,
tudo é possível e nem tudo é desejável. Mas aqui no Brasil, os horizontes são
tremendamente obnubilados. O brasileiro, como se bem sabe, é uma miscelânea de
povos, e é de se esperar que a sua cultura também o seja. Falar em apropriação,
a não ser quando se vilipendia claramente a origem de determinado objeto
cultural, envolve tantos fatores que eu me declaro incompetente para analisar
com propriedade. Mas sigo pelo caminho pacífico do caldeirão cultural, onde
cada pitada influencia o sabor final. O café é brasileiro, porque constitui
parte do jeito de ser dos habitantes daqui. E não precisamos negar sua origem
etíope e sua transição por outras terras para inseri-lo, também nós, em nosso ethos. Espero que essa seja a melhor
forma de acabarmos com os nossos preconceitos.
Recomendação de leitura:
O livro abaixo é a reunião de uma série de artigos que
buscam uma renovação do método antropológico, para que as estruturas façam
parte do escopo primordial de qualquer estudo que foque a cultura humana:
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia
Estrutural. São Paulo: Cosac & Naify, 2008.
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