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segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar – 7º sopro: Carmo de Minas, o café e a cultura na encruzilhada da apropriação e assimilação

Olá!

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É inegável. Já na ida de Lambari a São Lourenço a estrada rescendia àquele aroma peculiar e inebriante. Café! Apesar de não estar exatamente na região onde a cafeicultura é mais presente no estado de Minas Gerais, sem dúvida é aqui a cidade que melhor se identifica com a rubiácea pelas paragens que minha atual viagem pretende percorrer. Falo de Carmo de Minas.


O nome da cidade tem tudo a ver com Nossa Senhora do Carmo, uma das personificações da mãe de Jesus. O Carmo, ou Carmelo, é uma montanha de Israel onde, segundo a Bíblia, o profeta Elias guerreou dialeticamente com os sacerdotes do deus Baal. É lá que se originou e estabeleceu a ordem dos Carmelitas, focada em oração e penitência. Na praça principal do lugar está fincado o templo dedicado a, obviamente, Nossa Senhora do Carmo, de onde se originou o nome local.


Esta mesma ordem é a proprietária do prédio em que habito, para citar en passant. O interior da igreja é caracterizado pela existência de estátuas em tamanho natural dos doze apóstolos, com um furo, na minha humilde e pouco teológica opinião. Como se sabe, um dos doze se matou – Judas Iscariotes. Fê-lo em arrependimento à sua caguetagem, mas sua vaga não ficou vazia. Em substituição, os apóstolos remanescentes escolheram Mathias, por sorteio, como se pode ler no livro dos Atos dos Apóstolos. Era de se supor que fosse esse o gajo a ocupar um dos nichos, mas não. Quem ocupa o pedestal é São Paulo, que nem chegou a conhecer Jesus pessoalmente. Bem, passons. O pároco devia ter lá os seus motivos.


Do lado de fora, ainda no campo de ação da igreja, temos uma homenagem ao padre açoriano Joaquim Gonçalves Cardoso, que foi o mais eminente pároco daquela freguesia, quando ainda se denominava Silvestre Ferraz.


Espalhadas pela praça, vemos a presença da obra de outro ilustre morador local, o escultor Francisco da Silva Reis, o Chico Cascateiro, cuja principal característica era o uso de cimento e outras massas para simular objetos naturais, especialmente imitando madeira. Um deles é o chafariz.


Tentei descobrir o porquê do cognome, mas não consegui nada, a não ser saber que o gajo era português. Há um livre exercício de hipóteses – pode ser que ele gostasse de tomar banho de cascata, gostasse de replicar cascatas em suas obras, não gostasse de contar histórias fiáveis ou, o que seria mais romântico, conseguisse enganar os apreciadores com a perfeição de suas obras, fazendo-os cair em uma cascata do bem. Sei lá.


O pedaço onde ficam as casas de café fica bem em um dos extremos do perímetro urbano, no cimo de uma colina. Como em outros casos deste périplo, a cidadezinha um dia fez parte da Estrada Real, que procurei descrever com detalhes em meu texto sobre Pouso Alto. Deem uma lida lá para pegar bem o contexto.


As casas de café da região procuram disputar entre si a primazia do melhor café. Calma, crianças, não briguem. Todos são bons, portanto, procurem apanhar mais fregueses no preço, porque vocês estão muito caros. Cada um tem lá o seu atrativo. O Centro do Café tem uma boa variedade de objetos correlatos, como bules, açucareiros e placas motivacionais para um bom cafezinho.


O café Unique investe nas pesquisas de variedades exóticas e procura, como o nome diz, um sabor único (contrassenso da minha parte, há mais de uma variedade à venda). Essas barriquinhas lembram minha infância, quando o governo tentava nos incutir que o café era um autêntico símbolo da glória brasileira. Era uma balela, mas o distintivo é bonito mesmo.


Por fim, o Café Carmo de Minas transformou sua loja em um pequeno museu, com uma série de artigos de outrora e que remetem aos métodos utilizados para produzir o negro e bendito pó, como essa torreifadeira tripla...


... e essa moendinha, protótipo da primeira fase do caffè espresso. Tudo bem, faltam os quinze bars de pressão, mas todo café começa pela moagem, não?


Não. O café começa pelo plantio. Os cafeicultores locais têm o cuidado de tentar tornar Carmo de Minas um centro de excelência na produção de cafés finos, e, pelo que pudemos conversar com o pessoal do comércio, os resultados têm sido animadores. Tem tudo para dar certo. Nada é mais brasileiro que um bom cafezinho.


Brasileiríssimo, aliás. Foi do café que obtivemos um dos mais longos ciclos de geração de riqueza em nosso país. E mesmo hoje, com a diversificação da produção mundial, ainda somos referência em matéria de qualidade.

Brasileiríssimo, será? Etiopíssimo não seria mais verdadeiro? Afinal de contas, quando falamos de Etiópia só pensamos nos concorrentes dos quenianos na Corrida de São Silvestre ou na conjugação fome-guerra que sempre grassou e desgraçou o país, sem se dar conta que é de lá que surgiram as primeiras sementes que possibilitam o saboroso líquido. Foi introduzido no Brasil muito tempo depois de descoberto pelos europeus, por obra do militar Francisco Melo Palheta, e se afeiçoou tanto pelo clima e pela terra desta casa que aqui ganhou seu lar mais célebre. É certo chamá-lo de brasileiríssimo?

Estou levantando essa lebre por causa das recentes discussões sobre apropriação cultural, um conceito que chegou a acirrar susceptibilidades. As correntes são duas: a uma, parece que o uso de elementos de uma determinada etnia por outra é a consequência natural do convívio; a outra, há a impressão de tomada indevida, de descaracterização e de atribuir para si o que é de outrem. Quem tem razão, se é que alguém tem?

É preciso ser um pouco mais básico e definir primeira e minimamente o que é cultura. E já defino que se trata do conjunto de ações e pensamentos que caracteriza o modus vivendi e a maneira de encarar o mundo de um determinado grupo humano. Esses grupos podem ser variados em seus critérios, mas o que nos é significativo aqui é o aspecto étnico, ou seja, de pessoas que, de alguma forma, dividam características biológicas e/ou sociais.

A cultura, para o que nos cabe aqui, precisa ser estudada no convívio com os grupos étnicos, e ninguém foi tão pioneiro nisso quanto Claude Lévi-Strauss, antropólogo belga de quem já tratei neste texto, mas que, neste momento, devo aprofundar na análise.

Utilizando a metodologia criada pelo polonês Bronislaw Malinowski, a etnografia, que consiste no contato intersubjetivo entre ambos os lados do estudo (em outras palavras, morando junto aos índios), Lévi-Strauss fez as malas e foi morar anos a fio com diferentes tribos indígenas no Brasil. Essa abordagem permitiu que Strauss compreendesse coisas que não seriam possíveis sem o fruto do longo convívio. Em primeiro lugar, é preciso obter confiança daqueles para os quais você é um estranho; e depois, é preciso ter em mente que as coisas não se transmitem de estalo. É preciso tempo para que elas aconteçam, e presença para que sejam constatadas. Pode ser muito interessante que, por exemplo, um velho cacique lhe relate como se dá a época de uma determinada caça, e é realmente um tipo de informação que precisa ser considerado. Mas há problemas. Um deles: a visão do cacique é particular. Como será a visão dos outros? Dos jovens, dos velhos, das mulheres, dos subalternos, das tribos próximas. Outro: conta-se a prática da caça. Ok. Mas e se a próxima temporada esperada não vier? Apelarão para uma divindade? Mudarão o alimento do período? Buscá-la-ão em outros lugares? Não farão nada? Só o convívio suprime, e em parte, o imponderável. E a reação ao imponderável é o que melhor dá ideia aos limites e valores de determinada cultura.

Pois bem. Depois de anos de convívio com inúmeras culturas diferentes e de diversas localidades, Lévi-Strauss chegou à conclusão surpreendente e basilar para sua escola antropológica. Apesar das diferenças abissais existentes entre as culturas dos diferentes povos, elas possuem todas uma única estrutura. Isso significa que, por trás de um sistema cultural, há os mesmos eixos que existem em outros, ainda que, sob o olhar direto, pareçam tremendamente distintos. Por exemplo: toda cultura tem a intuição de uma anterioridade que chega a um determinado limite, quando não há mais como voltar para trás e um elemento externo interfere no cosmos e a origina – são os mitos de criação. A maneira como eles são descritos são as mais diferentes possíveis, mas eles (quase) sempre estão presentes. Pode ser um ovo primordial, uma deidade, uma energia cósmica ou qualquer outra intervenção, não é isso o que importa, mas sim o fato de ser uma presença invariável. Idem com o culto aos mortos. Não há etnia no mundo que vilipendie os corpos dos entes queridos. A forma com que isso é feito pode variar: enterro, cremação, lançamento ao mar, enclausuramento em um mausoléu, com ou sem ritos preparatórios. Mas, como elemento constitutivo, o respeito aos seus mortos está presente em todas as culturas.

Inúmeros outros fatores estão presentes em todas as comunidades que constituem culturas diferentes entre si – todas têm a noção de espaço vital, de transmissão de saberes, de organização do poder, de estética e arte, de acordo mútuo e punição, entre outros. Enfim, as sociedades e suas culturas possuem um âmago comum, o que varia é a casca que o reveste. E, sendo assim, não dá para se falar em superioridade de uma em relação a outra, já que são diferentes maneiras de se repetir uma mesma estrutura, que, se coexistem, é porque cada uma delas se mostrou adequada para fazer funcionar um organismo social.

A noção de superioridade cultural padece do mesmo erro que se comete ao investigar a evolução das espécies. Não existe espécie mais ou menos evoluída. Se uma espécie existe hoje, ela tem o mesmo nível de evolução de qualquer outra. Seus indivíduos foram naturalmente selecionados até tornar o que o conjunto como um todo é. Se ela existe, é porque é evoluída. Não há ápice na evolução. Idem com as culturas. O fato de existirem culturas ágrafas, por exemplo, não indica que sejam culturas inferiores; indica apenas que há grupamentos que prescindem de registro e/ou contagem, sendo suficiente aquilo que se expressa oralmente. Vivem bem assim e pronto.

Pois bem. Se não há hierarquia entre culturas, como podemos estabelecer o que se apropria e o que se assimila? Poderíamos pensar no que significa apropriação e, falando diretamente, é tomar para si o que não é seu, sem a concordância do outro. Mais diretamente ainda, é roubo. Assim, se dissermos que o café é coisa brasileira sem reconhecer sua anterioridade, podemos falar em apropriação. Agora, se tivermos a lembrança de observar sua história, a maneira como se imiscuiu em nossos bules, e como passou a fazer parte de nosso quotidiano e a ser gerador de riqueza, temos a assimilação.  Podemos buscar muitos outros exemplos. Vejam o futebol. Diz-se com frequência que o Brasil é o país do futebol (do que já discordei aqui), e, de fato, 90% das discussões de boteco têm esse pano de fundo. Mas ele não chegou aqui por intervenção divina, e sim dos ingleses, que começaram a praticá-lo aqui do lado de casa, na Várzea do Carmo (Carmo também). O Corinthians se autointitula “o clube mais brasileiro”. Mas com esse nome em inglês, e com essa referência a um povo grego? E o Santos Futebol Clube? São Paulo Futebol Clube? Fluminense Futebol Clube? Embora aportuguesado, o termo “Futebol Clube” é um anglicismo. Na nossa estrutura linguística, o correto seria “Clube de Futebol”, mas a origem étnica do termo justifica a construção. E isso não tira de nós a predileção pelo esporte.

Tudo isso serve para demonstrar como é complexa a questão da transformação cultural. Há culturas dominantes que se impõe à cultura subalterna, que lhe sugam elementos, que lhes assimilam ou que se imbricam; há possibilidade, com esses movimentos, de acentuação ou de atenuação de guetos, tudo é possível e nem tudo é desejável. Mas aqui no Brasil, os horizontes são tremendamente obnubilados. O brasileiro, como se bem sabe, é uma miscelânea de povos, e é de se esperar que a sua cultura também o seja. Falar em apropriação, a não ser quando se vilipendia claramente a origem de determinado objeto cultural, envolve tantos fatores que eu me declaro incompetente para analisar com propriedade. Mas sigo pelo caminho pacífico do caldeirão cultural, onde cada pitada influencia o sabor final. O café é brasileiro, porque constitui parte do jeito de ser dos habitantes daqui. E não precisamos negar sua origem etíope e sua transição por outras terras para inseri-lo, também nós, em nosso ethos. Espero que essa seja a melhor forma de acabarmos com os nossos preconceitos.

Recomendação de leitura:

O livro abaixo é a reunião de uma série de artigos que buscam uma renovação do método antropológico, para que as estruturas façam parte do escopo primordial de qualquer estudo que foque a cultura humana:

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac & Naify, 2008.

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