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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 1º relato: Águas da Prata entre o misticismo e a razão da arché

Olá!

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Há 25 anos atrás, estava eu a contrair núpcias com minha esposa. Como não se trata de um dia qualquer, fizemos uma bela comemoraçãozinha, pequena mas importante, incluindo uma bênção na igreja da Boa Morte, um forra-bucho regado a chope e champagne com meus amigos, parentes e afilhados e uma viagem de revisita aos mesmos lugares por onde passamos em nossa lua de mel. Mas não só. Demos uma belíssima expandida no roteiro, passando por quase todas as cidades do chamado Circuito das Águas Paulista. Houve duas defecções: Serra Negra, por conta da lotação da cidade e Jaguariúna, desta vez por causa do tempo exíguo. Fica para a próxima. Em compensação, inserimos de bônus a pequena Estiva Gerbi e a laboriosa Monte Sião, esta última no estado de Minas Gerais, além das originais Águas da Prata e Poços de Caldas, protagonistas de nosso giro inicial.
Em primeiro lugar, rápida passagem sobre minhas bodas. Não é fácil, ao menos hoje em dia, casamentos duradouros. O discurso de quem nos rodeia é de admiração, mas não somos santos nem vivemos incólumes a problemas e dificuldades, por isso mesmo não tenho nenhuma espécie de fórmula mágica, nem farei grandes blá-blá-blás. Componentes básicos são tolerância, paciência, respeito mútuo, e andar de mãos dadas. Não só metaforicamente, mas fisicamente mesmo. Andar de mãos dadas é muito bom.

Gostei das alianças. Elas combinam o dourado habitual com o prateado simbolizante das bodas de prata. Olhem que legal:

Tomei o cuidado necessário para que a minha não ficasse entalada no dedo, como ocorreu com a minha pobre aliança original, que teve de ser impiedosamente cortada, além de deixar uma marca permanente na falange inferior. Conselho, crianças: aprendam a não se habituar a estalar os dedos, porque engrossa as juntas, já dizia insistente e aflitivamente minha avó, ao presenciar este meu vício.

Meu coração ficou mole nos últimos tempos. Chorei prá caramba... Meus filhos falaram e eu chorei. Meus afilhados fizeram uma homenagem (linda demais) e eu chorei. A Natália fez um discurso (chorando, e muito) e eu chorei. Abracei meus convidados e eu chorei. Chorei sozinho vendo as fotos e as filmagens. Bom, nem falo da patroa... Ela chorou mais ainda. Gozado esse negócio de chorar na alegria. Depois eu reflito melhor sobre isso.
Devidamente beijados, comidos, bebidos e dormidos, partimos em viagem. Nossa primeira parada: Águas da Prata, cidade do interior paulista extremamente próxima de Minas Gerais, região da serra da Mantiqueira, pequenina e bem preservada em seu ambiente natural, cuja principal atração é a boa quantidade de fontes de água mineral com diversas características físicas (mais radioatividade, menos radioatividade... não sei distinguir muito bem suas benesses; vou confiar no bom senso das informações dadas em cada uma delas).

Ficamos na mesma pousadinha em que passamos nossa lua de mel original. Não mudou em praticamente nada. Algum quadrinho, uns chuveiros mais sofisticados, mas, no todo, foi um regresso ao passado. Só faltou – graças a Deus – a invasão de marimbondos que tivemos na primeira viagem. Esta é a casinha em foco:

Revisitamos o Cristo Redentor que fica no mais alto monte do perímetro urbano. De novidade, um horroroso cabeamento do para-raios. Feio, mas essencial. Detalhe: absolutamente todas as cidades que visitamos neste périplo tem seu Cristo Redentor voltado para a cidade.

A vista da cidade a partir deste ponto é linda, dando a exata dimensão de uma vila bem construída, porém dentro dos limites racionais urbanos.

Tentamos refazer o passeio de trem até Poços de Caldas, mas tivemos uma notícia desanimadora. Apesar de bem conservada, a gare local está desativada para fins turísticos. Pesquisei algumas notícias e conversei com algumas pessoas, e há uma tendência em reativá-la. Seria ótimo, é um passeio que passa por paisagens únicas, que a estrada não permite curtir.

Uma das tentativas que fiz desta vez foi subir a serrinha que conduz até o Pico do Gavião, em uma estradinha de terra de 12 Km, de onde partem heroicos voos livres. Pobre do meu carro... Chegando lá, vi, de grande altitude, que talvez não conseguisse reunir coragem necessária para fazer um voo de parapente (na carona, evidentemente). Mas o problema foi resolvido de maneira mais simples: não havia instrutores no local. No final das contas, ainda bem!


Para não perder a viagem (que já não estava perdida – a altitude dá medo, mas é muito bonita), paramos no meio da estrada para molhar as costas na cachoeira da Ponte de Pedra. Trata-se de um salto que forma um bacião, com água bem gelada. Refrigério perfeito para um calor de 37 graus. Lá encontramos a Evelina, que, do alto de seus 60 anos, mais da metade vividos na cidade, entrava pela primeira vez naquelas águas. Ela chegava a estar emocionada.

Com relação à vida noturna... Bem, ela continua bastante singela. A cidade fecha às 20 horas. Poucos botecos e barraquinhas permanecem abertos, para a tristeza de nossas gargantas sedentas por cerveja. Uma delas é esta aí da foto abaixo, comandada pela dupla Amanda e Kika, jovens que saíram da loucura da Pauliceia para viver de forma mais tranquila e natural. Elas nos disseram que a pegada de Águas da Prata é essa mesmo. Tudo calmo, devagar, sem pressa. Tirei a foto durante o dia, para retratar um dos vários macaquinhos que há na praça. É preciso tomar algum cuidado com eles, ladrõezinhos que são.

Mas o que eu achei mais digno de nota é a reverência com que as pessoas lidam com o seu contato com a água proveniente das fontes. Não é nada raro ver indivíduos que se benzem e riscam sinais-da-cruz nos rostos ao se achegar às bicas disponíveis.

A sacralidade atribuída às águas se explica nas grutas dos santos...
... nos avisos aos visitantes...

... nos formatos místicos das pias...


... e nos nomes aplicados às fontes. Esta, por exemplo, é conhecida como Fonte do Padre (sublimem a sujeira, por favor):

E também há o nascedouro da fonte do Vilela...
...acessível por uma trilha que abastece tanto a fonte da praça principal da cidade quanto da gruta que fica no sopé da igreja, bem grandona, como é hábito nestas cidades:

É daí que parte o caminho de Santiago de Compostela brasileiro, uma rota que se dirige para o Santuário de Aparecida, e que se principia nas beiras das águas pratenses, serpenteando a Serra da Mantiqueira por picadas, estradinhas e morros.
A religiosidade sempre esteve fortemente ligada à água, e a usa fartamente em seus rituais e liturgias. Os cristãos, por exemplo, utilizam-na em inúmeras situações, principalmente em ritos que envolvam purificação. Ao batismo, para citar um caso, é atribuído o poder de lavar os pecados. A água benta é uma representação das doações das graças divinas, e por isso mesmo são feitas aspersões para tudo que se queira consagrar a Deus. O Espiritismo usa água como veículo de fluidificação, ou seja, da canalização de energia espiritual para um meio físico. A Umbanda e o Candomblé reservam muitos dos seus ritos para serem realizados em rios e mares, e uma de suas principais divindades, Iemanjá, é chamada de Rainha do Mar. O rio Ganges é considerado sagrado pelos hindus, que cremam seus cadáveres em piras flutuantes para libertá-los do ciclo de reencarnações (roda de Samsara) e da escravidão material. As religiões anímicas da África estabelecem que os mortos devem ser lavados antes dos ritos de sepultamento, o que tem sido um grande problema nas contaminações pelo vírus Ebola.

(Parênteses aqui. Independentemente da racionalidade ou não do ato, imagine o quanto é doloroso para uma pessoa ter que enterrar um ente querido, falecido de maneira trágica e repentina, sem poder aplicar os ritos que acredita serem obrigatórios, e sem ter o conforto de ter realizado todo o possível por aquele que se vai. Por isso mesmo, devemos ter muito cuidado ao analisar as atitudes das pessoas que insistem em levar a cabo essas liturgias. A dor fala muito mais alto que a razão, e não devemos nos apartar da possibilidade de que algo semelhante nos aconteça).
O sentimento de familiaridade e onipresença que temos com a água é tão intenso que ela esteve presente até mesmo na transição do pensamento mítico ao pensamento filosófico. Já falei sobre o tema aqui, mas vou descer um pouco mais no nível dos detalhes. Vale muito a pena.

O mundo grego, berço da Filosofia ocidental, vivia, antes do seu surgimento, imbuído por dois mecanismos mitológicos: aquele mais conhecido, dos deuses olímpicos, e o dos mistérios órficos, que contém muitos elementos que foram absorvidos pelos monoteísmos, como a noção de dualidade corpo-alma, a eternidade desta última, a existência de uma fase temporal para expiação dos erros cometidos em vida e também a introdução do tema da ressurreição, tão caro aos cristãos. Podemos perceber que, mesmo com o desvio proposto pela vertente racional, este modus operandi do pensamento continua a subsistir ainda hoje.
Em Tales, vemos a primeira tentativa conhecida de quebra destes paradigmas. Ele não se deslinda das divindades, mas as integra à própria natureza, e procura investigar de que maneira elas permeiam tudo o que existe. Esse é o exato momento em que o homem deixa de depender de uma intervenção mágica para buscar explicações sobre o mundo e sobre si mesmo circunscritos à realidade observável, ainda que esta reflexão conduza a uma contínua especulação. Mas percebam, meus amiguinhos, que não são mais a tradição oral e os deuses das lacunas que doam sentido à constituição e aos mecanismos universais, mas a observação e a racionalidade aplicadas a este mesmo universo.

Tales, bem como outros filósofos dos primeiros tempos, queria a arché. Pretendo fazer um texto onde mostrarei as diferentes propostas de vários filósofos, porque é tema interessantíssimo e que se encerra em uma conclusão válida até o quotidiano, mas basta saber, neste momento, que esta estranha entidade deveria ser o princípio fundamental de tudo o que existe.
Em primeiro lugar, a arché estaria na origem de todas as coisas, ou seja, do que tudo é feito; de que material são constituídos os sólidos, os líquidos e os gases, o modo como o elemento primordial se reúne e se condensa ou se distende.

Depois, a arché é aquilo que daria sustentação à existência das coisas e dos seres; é aquilo que está sempre presente, sempre persistente e imutável, cujas variações são de ordem física, mas sem a qual não se pode falar em vida. A arché não apenas doa substância ao ser, mas também o plasma e o faz subsistir.
E disso deriva a última característica da arché: sua ausência representa inexistência. Tudo aquilo em que se finda a presença da arché é não-ser. Assim, ela é princípio, existência e fim. Tudo se origina na arché, subsiste na arché e se finda na arché. Ela doa substância ao ser, o mantém existente e recobra a si mesma ao cabo da morte do ser. Tu és pó e ao pó voltarás.

Bonitinhamente explicado, vamos voltar a Tales. Para nosso patriarca, a arché era água. Já falei sobre isso no mencionado texto, mas repito rapidinho: encontramos água com facilidade e em toda parte, como gelo, líquido e vapor. De tudo se extrai umidade, mesmo onde ela é inaparente. A vegetação é sempre mais abundante onde há volumes significativos de água, e com ela, a vida animal. O sangue é elemento líquido e, uma vez escoado, impossibilita-se a vida. Idem para a seiva, nas plantas.
Dessa observação, Tales concebe três raciocínios:

1º - A água é o elemento primordial que permeia tudo e que é essencial à existência de todas as coisas;
2º - A Terra é sustentada fisicamente pela água, ou seja, viveríamos em uma gigantesca ilha. Evidentemente esse pensamento deriva da falta de instrumentação disponível à época, mas é compreensível. A todo lugar que um homem se dirigisse, teria por fim de caminhada a orla marítima, e ao mirar seus olhos no horizonte, não veria nada além de água. Isso dava a impressão de que os limites da Terra sólida estavam sempre circunscritos por oceanos. Esse não era um pensamento originariamente talesiano, mas servia de corolário para reforçar a água como substrato comum a todas as coisas, porque onipresente a qualquer confim que se observe.

3º - Todas as coisas estão permeadas de deuses. Aqui, temos o encontro entre um materialismo com a religiosidade. Tales identifica a arché com a água e esta com os deuses, constituindo, desta forma, um panteísmo (pessoas mais jovens: ocorre um panteísmo justamente quando há a crença de que deuses estão presentes em tudo, desde uma pedrinha até um ser vivo).
É imperioso que levemos em conta que Tales não provoca uma ruptura imediata com a mitologia. Antes disso, ele inicia uma transição. Além do mais, a religião órfica não era um emaranhado enlouquecido oriundo de alguma mente especialmente criativa. Muito pelo contrário, os seus desenvolvedores originaram teses metafísicas sofisticadas. No dualismo corpo-alma, por exemplo, observamos uma explicação para o problema da consciência, que tende a enxergar o pensamento não como uma função orgânica, mas algo que pode expandir sua percepção para além dos limites físicos do corpo, o que parece essencial para explicar os sonhos e o autoconhecimento. Também as noções de eternidade da alma e da reencarnação partem de fenômenos semelhantes àqueles que acontecem quando nos deparamos com coisas ou pessoas que nunca vimos, mas que reconhecemos, ou com situações que parecemos já ter vivenciado. Dejá-vu, manja? Portanto, Tales não parte de uma construção desprovida de sentido, mas procura identificá-la com fenômenos materiais.

E dessa forma podemos concluir o quanto a centralidade empírica da água acaba por se distribuir para a racionalidade e para a espiritualidade, e acabamos por compreender o porquê de tamanha reverência a elemento tão banal, aparentemente banal. Não é à toa. Somos constituídos por 67% de água, mesmo o mais sólido e marombado musculito.
Recomendação de leitura:
Vou de Nietzsche. Em uma de suas obras, ele recupera a importância dos filósofos pré-socráticos para a gênese do pensamento racional, e faz considerações interessantes sobre Tales de Mileto, que, de resto, não deixou nenhum escrito conhecido.

NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Porto Alegre: L& PM, 2011.

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