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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 12º sopro: Baependi, os beatos e a hipótese da Religião como fenômeno humano

"Assim lembrava-se de Joana-menina diante do mar: a paz que vinha dos olhos do boi, a paz que vinha do corpo deitado do mar, do ventre profundo do mar, do gato endurecido sobre a calçada. Tudo é um, tudo é um... A confusão estava no entrelaçamento do mar, do gato, do boi com ela mesma. A confusão vinha também de que não sabia se entoara 'tudo é um' ainda pequena, diante do mar, ou depois, relembrando. No entanto a confusão não trazia apenas graça, mas a realidade mesma". 
Clarice Lispector - Perto do coração selvagem

Olá!


Já havia dez dias que eu e a patroa estávamos rodopiando entre as montanhas da Alta Mantiqueira e Circuito das Águas, tudo isso pelo interior sul da província de Minas Gerais. Estando hospedados em Caxambu, era natural que passássemos por sua circunvizinhança, e o que há de mais próximo é a cidade de Baependi, que destrincharei a partir de agora.


Mbaé-pindi, a clareira que se abria ao lado do Rio Grande, que orientava os tropeiros em meio à Mata Atlântica, hoje transformada em Baependi, tem um verdadeiro festival de cachoeiras, especialmente no curso do Rio Gamarra. Algumas delas são acessíveis apenas com veículos off-road (percebi que a galera usa muitas motos por aqui) ou através de trilhas. Juntei um folheto da prefeitura para ter uma descrição mais completa de todos os atrativos naturais desta cidade.


Esta é uma das cidades em que primeiramente se teve notícia de localização de ouro, muito embora o tal do metal precioso tenha sido encontrado para valer mais ao norte. Esse é um dos fatos que levou Baependi, além da própria disposição geográfica, a fazer parte da Estrada Real, cuja importância histórica e estratégica procurei esclarecer em meu texto sobre Pouso Alto, o que é demonstrado por um dos marcos de milhagem que ficam próximos à entrada da cidade.


Bem, eu enchi tanto o saco de vocês, pacientes leitores, com as imagens de Padre Victor e Nhá Chica, presenças constantes em toda essa região, que ambos serão a principal pauta deste texto, aproveitando o fato de que estamos na terra onde descansam os restos mortais desta última.


Comecemos pelo beato Padre Victor. Nascido com o nome de Francisco de Paula, atuou na maior parte de sua vida na cidade de Três Pontas, ao noroeste dos limites da minha viagem, e, como já se aproximava perigosamente o dia de ir embora, resolvi deixar para uma próxima. Ele nasceu em 1827, na condição de escravo. Tendo proprietários tolerantes para o padrão da época, foi-lhe permitido aprender a ler e escrever, o que lhe propiciou um ofício: a alfaiataria. Conta-se que, nessa época, o ainda jovem Victor teve um sonho que lhe desvelou a vocação: queria se tornar sacerdote. O problema estava no fato de que a Igreja Católica não aceitava escravos em seus seminários, além de ser filho de pai desconhecido, algo ainda mais malvisto, e somente através da intervenção de sua senhora junto ao bispo Dom Viçoso, da diocese de Mariana, é que pode ser admitido em um convento. É evidente que sofreu lá dentro toda sorte de preconceito: os demais seminaristas tratavam-no como um criado ou cozinheiro, obrigando-o a utilizar as portas dos fundos do edifício para entrar e sair. Ou seja, nunca foi tratado como um igual – as honrarias da carreira eclesiástica, ainda que não baixadas em escrito, deveriam ser reservadas à elite branca. Diz-se que o jovem enfrentou esse processo de segregação com naturalidade, pois não estava lá para ascender socialmente, e sim para servir. Ao completar seu tempo para exercer o sacerdócio, foi indicado para a matriz de Três Pontas, onde enfrentou uma resistência maior ainda dos proprietários rurais. Foi preciso tempo, paciência e muita ação junto às comunidades mais carentes para que a aversão inicial se transformasse, inicialmente, em tolerância. Depois, pouco a pouco, essa condescendência virou admiração, especialmente após os frutos do trabalho do padre Victor começarem a aparecer, como a fundação da Escola Sagrada Família, que demonstrava sua preocupação com a educação das camadas pobres, e de sua vida de esmola e oração. Ficou durante 53 anos adiante da Paróquia Nossa Senhora d’Ajuda, até sua morte. Diz-se que tanta gente acorreu ao seu velório que foram necessários três dias antes do sepultamento, e que de seu corpo desfalecido exalava-se um odor de rosas. Uma das intenções que tenho de futuras viagens é o Vale Verde, do qual Três Pontas faz parte. Se e quando o fizer, prometo trazer melhores informações sobre o beato.


Com relação a Nhá Chica, cujo nome de batismo é Francisca de Paula de Jesus, o nível de reverência nesta cidade atinge seu clímax. Ela nasceu em São João del Rey, no ano de 1810, a cerca de 150 Km de Baependi, para onde se mudou ainda criança, e onde viveu desde então. A foto abaixo é a única disponível da beata, e é difícil perceber que se tratava de uma mulata, descendente direta de escravos.


Daqui por diante, vão os nossos agradecimentos à Miloca, voluntária na entidade que cuida do santuário, que tão gentilmente nos ciceroneou e contou histórias sobre a santa e o edifício que ajudou a construir, bem como o trabalho realizado junto aos peregrinos que lá buscam agradecer os favores recebidos. Nhá Chica, logo aos 10 anos, ficou órfã, e passou a viver unicamente com seu irmão, sempre na mesma casinha que hoje se situa nos fundos da igreja, e que faz parte do mesmo complexo.


Nhá Chica nunca constituiu família, ao contrário de seu irmão Teotônio, que fez carreira política e militar. Quando morreu, deixou uma herança razoável para sua irmã, que utilizou o terreno da propriedade e o dinheiro legado para construir uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição, de quem era devota fervorosa.


A igreja, no início, era uma capela que veio sofrendo algumas reformas no seu projeto inicial, até ficar com uma cara mais moderna do que o habitual. Não teve jeito, a igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição caiu no conhecimento popular como Igreja de Nhá Chica, com a devida vênia da padroeira oficial.


A beata era conhecida por sua capacidade de dar bons conselhos. Apesar de iletrada, conseguia acolher o convencimento das pessoas para as obras de caridade pela sua vida simples e benevolente, e toda campanha que promovia costumava recolher bons fundos. Essa fama crescente foi lhe dando estatuto de santidade ainda em vida, e sua figura se tornou um emblema da religiosidade desinteressada.


A igreja da Conceição (ou Nhá Chica) guarda uma simplicidade quase que austera em seu interior. Há uma constante peregrinação, em especial no dia 14 de junho. Esta é a data em Nhá Chica faleceu, e, por este motivo, foi-lhe designada para homenagem.


Por falar em morte, uma das principais curiosidades contidas no interior do Santuário é o túmulo onde Nhá Chica foi enterrada. Era parte da propriedade original herdada do irmão, mas que, por ocasião de seu falecimento, já estava coberta pela igreja. Ainda assim, foi o local escolhido para seu enterro. Este era um desejo manifesto: de ser inumada perto de sua santa de devoção.


Nas proximidades do altar, há um esquife que contém relíquias de Nhá Chica, mas eu já volto a ele. No espaço que fica entre os fundos da igreja e a parte de trás da casinha, a paróquia construiu um memorial, que preserva uma série de objetos pessoais e outras curiosidades que marcaram a vida da beata.


Nele, por exemplo, existem os fragmentos do que sobrou do seu caixão, como pedaços de madeira com o tecido de suas roupas de enterro colados ao mesmo, e os pregos que lhe fechavam. Todos esses objetos são tidos como milagrosos.


Há também uma urna de pedra, onde ficaram depositados os seus ossos após a exumação, daquela cova que fica no interior da igreja. Mas sua ossada não ficou para todo o sempre nessa caixa. Ela foi incorporada a um outro tributo.


Voltando ao interior da igreja. Quando eu vi a imagem dentro do caixão de vidro, tive a impressão de se tratar de um daqueles santos incorruptos, como Santa Catarina Labouré, Dom Orione, Santa Bernadette e outros, que mantém seus corpos sem decomposição após a morte, ainda que sem nenhum processo de embalsamação. Não é o caso, então daí passo a me surpreender com a capacidade técnica do artista que lhe plagiou a aparência em uma estátua que beira a perfeição.


Este foi o destino de seus ossos: um simulacro feito em sei lá qual material, praticamente indistinguível de um ser humano de carne e osso (bom, osso tem). Olhei com máxima atenção ainda várias vezes, para me certificar se havia alguma dica de que não se tratava de alguém de verdade. O nível de detalhes é realmente impressionante.


Para resolver definitivamente a questão da separação entre a dedicação da igreja a Nossa Senhora da Conceição e a necessidade de um espaço própria para Nhá Chica que, segundo a Miloca, está com um processo de canonização bastante avançado, um projeto ambicioso está em andamento, com a construção de um grande santuário dedicado à futura santa. Não caiu muito no meu gosto, mas não sou muito prá frente nessas questões de estética. Talvez aqui a praticidade seja mais relevante que a beleza ou a coesão do conjunto.


Os trabalhos já se encontram em andamento, como podemos observar na escadaria da matriz, às costas da célebre estátua, que recebe ininterruptamente flores e que deve ser recordista de selfies em Baependi, com o rosto sereno e a inseparável sombrinha. Parece aquelas avós que a gente gosta de sentar aos pés para ouvir histórias dos tempos em que os bichos falavam.


Em outros momentos, comentei sobre uma espécie de espiritualidade distinta da religião, alguma coisa como um impulso para a transcendência, ou uma integração ao universo como um retorno, ou mesmo uma sensação estética que causa uma catarse. Falei sobre isso principalmente na viagem que fiz a Catuçaba, distrito de São Luiz do Paraitinga, e para Águas da Prata, terra de vinculo da materialidade da água e da espiritualidade humana. Mas essa característica de fusão entre imanência e transcendência não é necessariamente uma religião. Será ela um ponto em comum de todas elas?

Como se trata de um fenômeno intangível, um estudo de sensação que não envolve um móbile concrescível em instrumentos, vamos ver o que o viés psicanalítico tem a nos dizer sobre isso. Sigmund Freud, referência constante neste blog, pensa a religião pelo caminho pessimista típico de seu tempo, o teatro da Primeira Guerra Mundial, com desdobramentos que incluem a Revolução Russa, o colapso do capitalismo e a ascensão do fascismo. Para ele, o que está na raiz da criação das religiões não é exatamente um sentimento natural e inerente aos seres humanos, mas uma neurose infantil que é replicada para o adulto, mudando apenas o objeto dúbio à qual é dirigida. Vamos trocar em miúdos.

No livro O Futuro de Uma Ilusão, Freud centra o sentimento humano em uma única palavra: desamparo. Temos consciência de nosso corpo frágil diante de um mundo violento, temos consciência do sufocamento de nossas individualidades perante uma sociedade moralmente uniformizadora, temos consciência da morte inevitável. Mas a sensação de que estamos desprotegidos é anterior à consciência; ela nasce conosco. Diante desse quadro, nossa psique se agarra a qualquer coisa que lhe possa oferecer algum tipo de proteção, e isso já se inicia instintivamente na primeira infância.

Logo que a criança nasce, ela é apresentada a um contexto de ameaça à sua estabilidade. Do escuro quentinho e da alimentação garantida no útero, o bebê é arremessado a um ambiente multimovimentado e que lhe exige coisas dantes dispensáveis: ele precisa respirar, mais tarde precisará se alimentar e passará mal com isso. É o primeiro momento em que é um organismo autônomo, com toda dor e susto que isso representa.

Seu primeiro ponto de apoio é a mãe, que lhe provê o conforto e a nutrição perdidos, sem saber que era o organismo desta que já exercia essa função. Isso gera um vínculo afetivo tremendamente forte, mas, com o tempo e com a maturação, surge a figura do pai, mais imponente e decisiva, mas também mais distante. O pai não é somente uma presença coadjuvante. É quase uma representação totêmica do que dita os destinos familiares. Em todas as decisões mais complexas, é a sua palavra que prepondera, e é dele que partem os castigos mais severos. Talvez o pai seja uma figura vista com menos carinho, mas com mais reverência; e, como o propósito do desamparado é obter proteção, o pai posa como melhor detentor do escudo do que a mãe.

Mas há um fato que é a gênese da neurose infantil – o pai disputa a mãe com a criança. Enquanto fonte de atenção, a mãe fere o egoísmo da criança ao ser dividida com o pai. Pior: a mãe fornece ao pai o mesmo que ao filho – comida, agasalho, companhia – mas há algo que o pai recebe que a criança não tem, mesmo que não o conheça explicitamente. Com isso, a criança tem uma relação conflituosa com relação à figura paterna. Não pode prescindir dela, dada sua capacidade de proteger; mas vê nela um concorrente desleal à posse da mãe. Tudo isso opera, evidentemente, no nível do inconsciente.

O que acontece com a maturidade é que todo esse processo continua válido, com a diferença básica de que, na pessoa adulta, o pai físico é substituído por um deus. Já se sabe aqui que os pais não têm a dimensão eterna que imaginávamos, em nossos infantis sonhos de estabilidade. Eles envelhecem, enfraquecem e também morrerão. Isso é resultado do aperfeiçoamento de nosso aparelhamento cognitivo e de nosso conhecimento empírico, e a solução que o inconsciente dá para um novo amparo, desta vez, vem de fora, vem transcendentemente. Novamente temos um pai. Só que novamente temos um conflito. E, pasmem, novamente temos a neurose infantil.

Da mesma forma que encaramos o pai, vemos um deus (que é chamado justamente de “pai” por tantas religiões) como uma entidade que não só protege, mas, em oposição, tem o monopólio da punição. Também ele dita o caminho e a moralidade reinante, também ele tolhe a liberdade, tudo como o pai biológico. E também ele fere nosso ego, ao nos apequenar infindamente diante de sua majestade, sem o lenitivo de pensarmos que um dia seremos deuses, assim como um dia poderemos ser pais. Aceitamos isso em nome de uma consolação e de uma expectativa de permanência, principalmente diante da morte. Esse é o alicerce das religiões, segundo Freud.

Isso tudo parece ter pouca correlação com o que apresentei sobre religiosidade anteriormente. Porém, em uma obra subsequente, O Mal-estar na Civilização, Freud é confrontado com outra hipótese. Um interlocutor não revelado menciona uma sensação denominada de sentimento oceânico, que seria uma reação humana perante o ilimitado, o imenso, o intransponível. É como se estivéssemos bem no meio de um de nossos imensos oceanos. Para todos os lados que se olhe, só vemos o mar azul, que se confunde na sutil curvatura da linha do horizonte com o próprio céu. Não há nenhuma noção clara nem de direção, nem de limite. Se navegarmos até a suposta linha do horizonte, saberíamos se tratar de um fruto da imaginação: de lá, teríamos mais do mesmo – novamente a mesma curvatura, a mesma fusão do mar com o firmamento, a mesma sensação de que há uma eternidade, uma continuidade. Isso tudo, por mais que saibamos existir, tira-nos a noção de finitude. Se há algo além de nosso alcance, queremos saber o que é. Dessa forma, mesmo a um ateu é permitida alguma forma de espiritualidade.

A partir deste pressuposto, Freud faz uma releitura da Religião como infantilidade, ou melhor, sem dispensar sua tese inicial, busca agregar o sentimento oceânico e lhe dar uma motivação. Vamos prosseguir.

O que é o ego de uma criança? Mais especificamente, até onde vai a capacidade de uma criança de distinguir a si mesma do mundo em que vive? Qual sua consciência própria? Freud entende que a criança em seus primeiros dias é eminentemente egoísta. “Sabe” de si, mas não dos outros. Ela é amoral, e não quer deixar o leite para ninguém, mesmo que seja seu irmão gêmeo. Quer se alimentar até a saciedade; se sobrar alguma coisa, muito que bem. Se não sobrar, dane-se. Esse é um dos motivos pelos quais a criança recém-nascida não se distingue do ambiente que a cerca: ela não reconhece a si mesma como uma entidade única, cercada de mundo por todos os lados. Falta-lhe a mesma noção de limite que o sentimento oceânico causa. No entanto, com o passar dos anos, evidentemente o ser vai amadurecendo e destacando-se na paisagem. Mas esse sentimento de indistinção de si com o universo permanecerá registrado em sua memória para todo o sempre, ainda que cada vez mais tênue.

A memória é um negocinho desgraçado. Eu faço força para tentar lembrar o que eu comi ontem, e de repente recordo do nada o que comi no dia da mudança de casa que fiz aos quatro anos. E há acepipes que recordo sem a precisão de uma idade, como, por exemplo, quando fui apresentado ao alecrim e com ele estabeleci uma relação conflituosa. Freud pensa o mesmo com referência ao sentimento oceânico: são reminiscências das primeiras infâncias que sobem à tona todas as vezes em que nos vemos diante de um painel de indistinção entre nós e o mundo, como na metáfora do oceano. Meio que “recordamos entre nuvens” do tempo em que não sabíamos a diferença entre nós e o cosmos.

Essa, portanto, não pode ser colocada como origem das religiões. Na verdade, estas aproveitam esse sentimento indefinido para se imiscuir nele, dando estatuto de beatitude a uma reação puramente psicológica. Esse sentimento de religiosidade é um espaço que a Religião chama de seu, invadindo-o para justificar um impulso natural que levaria as pessoas a buscar uma divindade, sem que a lógica da infantilidade seja descartada.

Tudo isso segundo Freud.

Então é isso. Cumpri minha promessa e narrei o que consegui saber sobre Padre Victor e Nhá Chica, e, em contraposição, trouxe as hipóteses de alguém que acredita que a Religião é um fenômeno puramente humano. Mas antagonismo é um dos pilares onde se sustenta a Filosofia, junto com a especulação e a lógica. Sejam sempre bem-vindos a estas praias quando o oceânico em suas vidas clamarem por uma direção.

Recomendações de leitura:

Vão aí as duas escritas de Freud sobre o assunto tratado acima. Eu diria que são alguns dos escritos mais eivados de Filosofia do polêmico austríaco, e, como eu disse, um é derivado do outro, pelo que deixa a entender o próprio autor. São textos curtos e concisos, vale a pena uma leitura rápida.

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão. Porto Alegre: L&PM, 2010.

______________. O Mal-estar na Civilização. São Paulo: Cia. Das Letras, 2011.

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