"Vivemos tempos líquidos. Nada é
para durar."
Zygmunt Bauman
Zygmunt Bauman
Olá!
Vamos cuidar da vida, porque a morte é certa. E por falar
nela...
Se existe o termo “arroz de festa” para designar a pessoa
que está presente a toda e qualquer boca-livre disponível, posso dizer, por
analogia, que sou “sopa de velório”. Explico-me, porque nessas horas é bom não
deixar dúvidas.
Não sei dizer com exatidão o motivo, mas os velórios e
enterros representam o que resta de eventos sociais verdadeiramente agregadores.
Desde muito cedo, sempre estive presente a toda cerimônia como esta, fosse de
parentes, fosse de vizinhos, fosse de amigos, ou de amigos dos amigos. Muitos
deles eram de gente que eu nem ao menos conhecia. Fui a enterros de brancos, de
pretos, de orientais (de anões, nunca). Vi macróbios centenários sendo velados,
vi bebês (eu mesmo precisei fazê-lo), mocinhas, rapazolas, senhoras de
meia-idade. Vi velórios de gente que morreu de morte morrida e de morte matada:
enfartes (aos montes), cânceres (também), cirroses (muitas também), overdoses,
atropelamentos, tiros, facadas, queda de moto, até mesmo o estranhíssimo rito
de enterro de um suicida, sem qualquer utilização de símbolos religiosos.
A lembrança mais difusa e distante que eu tenho é do velório
do meu irmão, morto ainda criança. Não tenho recordações claras do seu enterro,
apenas do seu velório. Daí para frente, desfio um imenso rosário de caixões que
se estenderam de meados dos anos 70 até o começo dos anos 90: tio Rafa, tio
Chico, tia Nilda, ah... Não vou mencionar um a um. Alguns certamente marcaram
muito, pela proximidade de quem vai – meus avós, meu filho, minha madrinha, os
tios mais chegados. Outros, pelo trágico que representa – gente que morreu
jovem em acidentes, crimes ou vício – já abordei o tema neste texto.
Claro que as memórias destes casos preponderam, já que pessoas que passaram por
longas doenças, infelizmente, têm sua morte já preparada, e o falecimento de um
senhor de 90 e tantos anos já não é mais notícia.
A morte é final inevitável, destino certo e inexorável,
ponto final do livro escrito por nossas vidas, blá-blá-blá e outras disposições
poéticas, como, por exemplo, esta bela intervenção que encontrei pelas bandas
da Vila Mariana:
Se a morte é sempre o epílogo da vida, a maneira como se dão
os ritos mortuários nem sempre é igual, e variam com o tempo. E assim,
finalmente chegamos à sopa.
Um costume bastante comum no passado e que praticamente não
existe mais, ao menos nos centros urbanos, é fazer o velório do falecido em sua
própria casa. A coisa era mais ou menos assim: morreu em casa, velava em casa;
morreu no hospital, velava no hospital; se a morte era na rua, o cadáver era
velado no cemitério ou em uma igreja. Essa era uma regra geral, não escrita, um
costume passível de modificações, como de fato costumava ocorrer. A legislação
que obriga a certificação do óbito por um autoridade legal era muito mais
frouxa, e a vida ainda não era tão terceirizada – JAMAIS um filho deixava de
preparar o cadáver dos próprios pais – mas isso é tema para discutir depois.
Acontecia que, quando os velórios eram feitos nas casas, havia a “obrigação” de
o anfitrião prover alimentação aos visitantes, e como não era de bom tom servir
churrasco ou feijoada, fazia-se sopa.
[Neste momento, via-se uma solidariedade cada vez mais rara.
A pobre viúva não precisava se preocupar em correr atrás de tomates e batatas,
toda a vizinhança se mobilizava para suprir a necessidade. E da casa da dona
Maria vinha sopa de legumes, da dona Rosa vinha creme de espinafre, da dona
Lola vinha caldo verde, da dona Elvira vinha sopa de ervilha (claro!), da dona Nena
vinha canja de galinha, da dona Tude vinha uma terrina de mandioca e do seu Zé
vinha uma cachacinha, ninguém é de ferro. Além disso, a dona Tereza se
encarregava de servir o pessoal e a dona Olga lavava a louça, com a ajuda da
sua filha Bete (os nomes são fictícios, os papéis são reais)].
E tinha a criançada. Como havia primos que a gente só
encontrava nessas ocasiões, era inevitável que rolasse algum nível de baderna,
beirando a inconveniência em muitos casos. Quanto mais longo o velório, maior a
impaciência e as ocasiões para “desvios de foco” dos fedelhos. Lembro, por
exemplo, das madrugadas que passávamos no cemitério da Quarta Parada. Sem tablets, celulares ou notebooks, pouco nos restava a não ser
pensar besteiras. Jogar cama de gato tem graça por dez minutos. Jogo da velha,
idem. E então vinha a ideia inevitável: explorar as campas. Capitaneados pelo
meu futuro compadre Plínio, explorávamos todo o baixio, lindeiro à Avenida
Salim Farah Maluf, onde ficavam, além dos jazigos, os gaveteiros, tenebrosos
como só eles. Tinha os sustos, habituais em quem maximiza na sua mente a aura
de mistério e escuridão propiciados por este tipo de ambiente: os olhos de um
gato que brilham, um rato que corre com estrépito, o vento que uiva nas
imitações de catedrais. Mas nunca vi espíritos, nem assombrações, nem correntes
arrastando. Hoje em dia, provavelmente veria tudo isso, na forma de assaltantes
de carne e osso. Não recomendaria um périplo dessa natureza, não.
Não compreendo muito bem a novíssima atitude de não mais se
levar crianças a velórios. Dizem que é para que elas preservem somente as boas
imagens daquele defunto. Na minha humilde opinião, trata-se de rematada
bobagem. Quem de nós, por mais saudáveis
que sejamos, evitará a senhora da capa preta? Não estaremos nós, na tentativa
de preservar a criança, expondo uma fraqueza nossa? Não estaremos nós
subestimando a inteligência da criança ao tomar tal atitude? Não estaremos
privando-as de uma experiência fundamental em sua formação? Tenham certeza que,
com raríssimas exceções, as crianças lidam MUITO MELHOR com a morte do que nós,
adultos. No tempo em que meu avô morreu, minha mãe e minha madrinha ficaram por
dias e dias e mais dias lamentosas, sem ânimo para muita coisa. Quanto a mim,
vida normal em poucos dias. Isso quer dizer que eu não gostava do meu avô? De
jeito nenhum, eu o amava. Não foi o fato de vê-lo no caixão que me traumatizou.
Desde os primeiros caroços que surgiram em sua garganta, acompanhei sua lenta
agonia e o crescimento de seus tumores. Lembro tanto disso quanto dos jogos que
ele me levava para assistir, dos cinemas em que comíamos pipoca, dos filmes de
faroeste que assistíamos à noite, da primeira vez em que andamos de metrô... Não
desenvolvi medo da morte nem gravei imagem negativa do meu avô, muito pelo
contrário. Na verdade, é tão habitual que meus parentes morram cedo, e me
acostumei tanto com essa ideia, que não consigo me ver velhinho, de bengala e
chapéu. Para dizer a verdade, nem desejo isso.
Superproteger a criança na morte dos seus próximos é um tiro
no pé, no meu entender. Ao não expô-la a uma consequência da vida, estamos
deixando de prepará-la. Ao presenciar o enterro de um tio mais distante, a
criança vai começando a criar arcabouço psicológico para se ver diante de
situações mais difíceis, como a morte dos pais – e você terá quem te enterre,
cara-pálida! Mais do que isso: se a criança aprende que um momento irresolvível
precisa ser encarado com serenidade (ainda que com profunda tristeza - e não
indiferença, entendam bem), poderá desenvolver ainda mais coerência e razão
quando colocada em situações difíceis, porém solucionáveis. E terá um motivo a
menos para desenvolver uma certa neurose, que nos obriga a preservar apenas
imagens boas, como se fosse possível evitar sempre as ruins, como se elas não
existissem.
Mas isso é um problema de cada
pai, de cada mãe, e não é sobre isso que eu quero falar.
Minha mãe morreu há pouco mais de um mês. Para não perder o
hábito familiar, tinha só 64 anos, perto do limite médio da dinastia. A tia
Antonia foi um ponto fora da curva, morreu com 92 anos, se não me engano. Vamos
lá: avô, 66 anos. Avó, 52. Tios diretos: 64, 66 e 65. Já tem gente da minha
geração que morreu, aos 47. A sina se repete nos parentes colaterais. Todos de
problemas cardíacos ou câncer. Minha mãe foi carcomida por esse último.
Sua doença foi longa. Começou na bexiga e se espalhou por
todo o abdômen. Perto do fim, os médicos suspeitavam de focos no pulmão e no
cérebro, mas não houve tempo para confirmações. A implantação de um dreno no
rim direito foi a pá de cal. Causou uma infecção que, no final das contas, foi
o motivo direto de sua morte. Tá lá na certidão de óbito: sepse do sistema
urinário.
Bom... Vivi alguns dias de óbvia tristeza e aflição, mas
que, no final das contas, também teve algo de bom. O IBCC é um hospital
decente, que faz um bom trabalho com seus pacientes, mas paira sobre ele uma
aura pesada. Para comparar, relembro de quando eu fui com uma pequena tropa ao
Hospital A. C. Camargo, também ele dedicado ao tratamento de câncer. Como
arrecadamos uma boa quantidade de brinquedos em uma campanha de dia das
crianças, elegemo-lo como receptor dos donativos. De minha parte, fiz o
trabalho de burro de carga. A galera que fez a entrega foi a seguinte:
A experiência foi muito mais que gratificante. Mas temos
plena consciência de que visitamos as crianças que estavam em boas condições de
saúde, já bem recuperadas de seus tratamentos. Quando o quadro se agrava, a
coisa muda de figura, substancialmente. O câncer é uma doença desgraçada, que
vai matando de maneira humilhante. É sonda, é cateter, é bomba, é bolsa. É
analgésico, é narcótico, é antiemético, é antibiótico. É vômito, é tontura, é
coceira, é suor. E é dor. Muita dor.
Diante de um painel tão crivado de desesperança, emerge
aquilo que eu disse ser interessante: a solidariedade dos doentes entre si e
entre seus acompanhantes. Decorridos tantos dias que ficamos instalados no
IBCC, muita gente passou, uma boa parte já desenganada. Primeiramente, minha
mãe dividiu o quarto com a dona Nadir, com câncer no cérebro. Já praticamente
não falava, não reagia. O pouco que ela se comunicava era com uma empregada
sua, moça magrinha e frágil, mas que gostava muito da patroa. Ficava na maioria
dos dias com ela. Ajudava minha mãe às vezes, retribuída por quem estivesse por
lá dos nossos. Chorava de dar pena. Um pouquinho antes da morte da dona Nadir,
minha mãe foi trasladada para outro quarto, onde estava internada a Valéria,
bem mais jovem, igualmente desenganada, com câncer no sistema gastrointestinal.
Sua estada foi uma constante alternância de recuperações e recaídas. Era
evangélica, e seus parentes tentaram em vão recorrer a orações. Morreu pouco
antes da minha mãe, acho que uns três dias. Trocamos telefones e favores com
seus parentes, gente muito bacana, que também tentaram ajudar-nos no que foi
possível. Bem no finzinho, dividimos quarto com uma outra mulher jovem, de quem
não lembro mais o nome. Câncer no pulmão, uma das formas mais tristes da
doença. Ofegava o tempo todo e tossia até a total perda de ar com frequência...
Enquanto escrevo, ouço uma banda italiana, chamada Gatto
Marte. Sua música é estranha, um embaralhamento de música clássica à la
Schoenberg e pesquisa jazzística. Bastante melancólico. Seu álbum chama-se
Danae, a princesa da mitologia grega que representa a chuva que fertiliza o
solo. E vinculo essa explosão de germinações com as inúmeras histórias contadas
nestes dias, as vidas de uns sendo desnudadas enquanto as de outros vão se
dissipando. Falar e ouvir passou a ser a maneira de oferecer arrimo a quem
tenta iludir a desesperança. Eu mesmo tive reações estranhas, como o fato de
sentir que a minha mãe lentamente descolava
algo como seu espírito de mim. A vontade de reagir, de sair, de sumir passou a
ser quase orgânica. Em uma ocasião específica, vi minha mãe se torcendo de
cólica, e comecei a sentir meus próprios rins sendo amassados. A coisa só
passou quando eu me retirei do quarto. O nome disso, eu sei, é somatização. Já
falei sobre o tema neste texto. E é nesse vai e vem de compartilhamentos
de destinos e histórias que vinha o alívio, o alívio de compreender que as
pessoas conseguem condividir suas angústias e agruras, que são todos humanos, e
que carregam consigo diferentes mapas que mostram como todos chegam no
mesmíssimo lugar. Cada um é influenciado e influencia não só na sua vida, mas com a sua morte, e isso é a própria história do homem. Um belíssimo exemplo vem de um delicadíssimo filme japonês que assisti a bem pouco tempo, Seguindo em frente (Não confundir com o filme gospel homônimo, por favor). Nada a ver com animês ou cinema catástrofe, esses são estereótipos. O filme tem como tema central as reações e o quanto da história de uma família é mexido pelo falecimento precoce de um dos seus membros, e como cada um dos remanescentes lida com o fato. O pai parece alienado, a mãe se encapsula em suas preces, o irmão se enxerga em sua exclusão, ainda que esta não seja real. Suave e levemente angustiante.
Mas também não é sobre isso que
eu quero falar.
Por que diabos, meu Pai do céu, temos tanta dificuldade em
manifestar o amor? Por que nos envergonhamos de dizer “eu te amo”, frase tão
curta e simples, que não enrola a língua? O problema está no próprio afeto ou
está em nós?
Vamos ver. Algumas das mais belas músicas do mundo são
canções de amor. Ouvimo-las e sentimo-nos deleitados. Alguns dos mais
interessantes livros de todos os tempos versam sobre amor. E, nesse sentido,
nada há com o Romantismo, escola com a qual o pessoal faz muita confusão. É bem
verdade que esta tendência, que enfatiza radicalmente os sentimentos e a
interioridade, acaba falando muito de amor, mas não há sinonímia. Há livros do
Realismo que falam sobre ele, do Arcadismo, do Simbolismo, cada um em seu
estilo. Assistimos a um filme e, se não há o beijo final entre os
protagonistas, parece que falta algo. Isso tudo significa que gostamos do
relacionamento amoroso e estamos sempre preparados para ele, mas na hora do
mundo real, nossa voz tranca. E então apelamos para simbolismos, como a entrega
de flores e outras formas de dizer o que não conseguimos. É que amor é pathos, o mesmo radical grego que serve
para designar paixão e sofrimento.
Gostamos dessas músicas, desses livros e desses filmes
porque queremos terceirizar nossas mensagens. Não falamos diretamente sobre
nossos sentimentos, então assinamos uma procuração ao músico, ao escritor e ao
ator para que eles digam por nós.
Será que consideramos o amor algum tipo de fraqueza? Será
que nos consideraremos ridículos ao expor o que sentimos? Talvez sim, e este
deve ser o demônio que trava nossa língua.
Li um livro interessantíssimo de Zigmunt Bauman, sociólogo
polonês, chamado “Amor Líquido”. É uma visão original sobre o problema. Muitos
pensadores já haviam falado sobre o amor. Para Schopenhauer, por exemplo, amor
é sexo. Sempre haverá alguma motivação orgânica para aproximar as pessoas. Para
Kierkegaard, o amor é algo que se desenvolve em estágios: primeiro há o jogo de
sedução e o prazer está mais na busca do que na conquista (amor estético), que
é seguido por uma procura pela estabilidade (amor ético) para, ao final,
atingir a transcendência (amor religioso) – para maiores detalhes, clique aqui.
Podemos citar muitos outros, mas vamos analisar o quanto Bauman deu um caminho
novo para a resolução da aporia.
Nosso caro polaco, sociólogo que é, compara as relações
humanas contemporâneas com as relações de consumo da era pós-moderna
capitalista. Trocando em miúdos: hoje em dia, somos compelidos a renovar
continuamente nossos produtos. O exemplo mais óbvio está nos celulares. Um
celular com um ano de uso já é bem velho, desatualizado. Aliás, nem é preciso tanto.
Basta uma simples funcionalidade a mais e pronto – um celular sem ela já é peça
de museu. É algo que nem vale a pena vender, e mandamo-lo para o lixo, com
caixinha e tudo, para adquirir um novinho em folha, cuja única diferença com
relação ao anterior é uma porcaria de função quase sempre inútil, mas é NOVO,
ora essa!
Com os relacionamentos, o mesmo se aplica. Também eles vão
se tornando descartáveis na medida em que o ser humano vai tornando suas
relações de consumo cada vez mais superficiais, porque aplica a mesma lógica a
ambos: é um sofrimento ter um celular usado, um carro do ano passado. Está mais
sujeito a falhas e quebras. Não importa o quanto ainda poderiam servir, se o
limpássemos, se revisitássemos o modo como o tratamos. Eu já não o quero, não
posso sofrer com o desgaste, de quem cada vez menos aprendo a lidar. Só vale a
pena, dessa forma, o relacionamento que é bom – o primeiro atrito é motivo para
o descarte. Vivemos tempos de um amor líquido, diz Bauman, tão flexível que
escorre entre os dedos. Ele é tão frágil que não admite nenhuma forma de
reparo. Nesses tempos de comunicação rápida, de redes sociais e de WhatsApp, o término do “amor” está ao
alcance da tecla DEL...
Só que o ser humano se engana ao tirar profundidade do amor
com o intuito de não sofrer, porque há o reverso da medalha, constituída de uma
continua solidão – mil amigos no Facebook não significam nada quando o botão
“Excluir” está à disposição de todos eles. A liquidez é um termo da economia.
Quanto maior a liquidez de uma pessoa, ou de uma empresa, mais facilmente ele
se livra se suas obrigações. O relacionamento assim comparado também é aquele
que está em alta disponibilidade para ser solvido. A dívida de uma relação está
em suportar os limites humanos do outro. É o que chamamos de alteridade, e esta
tem consigo uma carga de incômodos, que, no limite, representam sofrimento, em
maior ou menor nível. Só que, hoje em dia, esse limite é nenhum. E isso não se
dá de um lado só, mas de todos – o botão “Excluir” está disponível para todos.
Esse desejo de não sofrer, ou seja, essa predisposição de
não suportar as dores infalíveis na vida de qualquer pessoa tem gerado uma
crise de responsabilidade, da mesma forma que ninguém cuida de um celular que
será jogado fora no ano seguinte. Um relacionamento duradouro pressupõe uma
série de decisões que incluem abrir mão de desejos, aceitação de limitações,
reconhecimento de defeitos e multiplicidade de níveis de afeto, que se
transformam com o tempo – para pior ou para melhor, isso é imprevisível. É
muita coisa para os afetos de superfície do nosso quotidiano. Nessa lógica da
equiparação entre consumo e relacionamentos, se não cuidamos do celular, também
não cuidamos do amor; não queremos essa responsabilidade. Por isso mesmo, não
dizemos “eu te amo”, porque estas três simples palavras carregam consigo o
cadeado que atam as correntes do amar e do cuidar, do querer e do conviver. Não
queremos um vínculo assim tão forte, porque não temos força para tentar
mantê-lo. Infelizmente, vivemos tempos pragmáticos, e em matéria de amor o
pragmatismo não funciona.
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Esta foto é a última da minha mãe. Estava um bocado inchada:
Sonhei com ela há poucos dias atrás. Estava na porta do
quarto das crianças, ainda doente, mas já com seus cabelos loiros crescidos,
alegre como quase sempre, bem mais corada. Era um daqueles sonhos lúcidos, logo
saquei que não estava acontecendo de verdade. Eu tentei, no sonho, recitar um
pequeno texto que eu tinha tentado redigir nas vésperas do seu último
aniversário, em abril. Não consegui, como não havia conseguido no mundo real.
Acho que eu fiquei bloqueado pelo medo de que minhas palavras
representassem um adeus. Ou porque eu tive vergonha de dizer "eu te amo". Quanta bobagem! Só perdi mais uma vez a chance de
destrancar minha boca, de falar do medo que eu sentia toda vez que via uma luz
imensa cortando o céu, como uma estrela cadente, porque só um brilho tão forte seria capaz de tirá-la de
mim... Eu te amo, mãe. Fique em paz.
Recomendações:
O livro de Bauman é interessantíssimo. Recomendo fortemente
sua leitura, principalmente para quem curte uma análise de como a vida em
sociedade influencia os espíritos individualmente.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços
humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Como curiosidade, segue a recomendação do álbum que
mencionei. É meio difícil de ouvir, precisa de um bocado de paciência, mas, no
todo, é bem legal.
GATTO MARTE. Danae.
Itália: Independente, 1997. 48:16.Quanto ao filme, não esperem aventuras, mas é muito bom para quem gosta de filosofar e de tentar entender o destino antropologicamente.
KORE-EDA, Hirokazu. Seguindo em frente. Japão, 2006. 114 min.
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