É mole de ver
que para o negro
mesmo a AIDS possui
hierarquia
na África a
doença corre solta
e a imprensa mundial
dispensa poucas linhas
comparado, comparado ao
que faz com qualquer
comparado, comparado
figurinha do cinema
comparado, comparado ao
que faz com qualquer
figurinha do cinema ou
das colunas sociais
Todo camburão
tem um pouco de navio negreiro
Marcelo Yuka – O
Rappa
Olá!
Bem no finalzinho do mês de maio, uma das universidades que mais relutavam em adotar um sistema de cotas para prover suas vagas, a toda-poderosa Universidade de São Paulo (USP), começou a abrir o debate para sua adesão a este benefício, apoiado principalmente no julgamento da constitucionalidade deste regime pelo STF, o que levou o pessoal da Faculdade de Direito a recomendá-lo ao Conselho Universitário.
Tema complicado, esse.
Já escutei um sem-número de opiniões a respeito,
prós e contras, e a principal encruzilhada é feita de
um misto de resistência social baseada no mérito e da
dificuldade em determinar quem é negro e quem não é.
Vou dar um exemplo prático para entendermos melhor a
dificuldade.
Esta é a
Natália:
Uma menina linda que,
isoladamente, podemos chamar no máximo de morena. Em seus
registros civis consta como branca. Em tempo: o nariz não é
naturalmente vermelho (Ai, que engraçado).
Esta é a Renata:
O enquadramento
atribuído anteriormente também vale aqui. Bonita,
morena clara, branca por extensão.
Pois bem. Estas são
Renata e Natália:
Elas são irmãs,
filhas do mesmo pai e da mesma mãe. Será que agora a
Natália virou negra?
Esta é a
Deborah:
Mais uma menina linda.
Ela é loira, olhos azuis. Corre sangue indígena em suas
veias, comprovado por documentos. Seria ela também uma
indígena?
Sabemos que o Brasil é
quase que uma perfeita amostra para qualquer extraterrestre que
queira investigar os tipos humanos de nosso planeta. São Paulo
é uma cidade absolutamente cosmopolita. Temos os italianos do
Bixiga e da Moóca, os espanhóis do Ipiranga, os
portugueses da Vila Maria, os argelinos do Arouche, os gregos e
judeus do Bom Retiro, os japoneses, chineses e coreanos da Liberdade,
os lituanos da Vila Zelina, os bolivianos e peruanos do Brás,
os alemães do Brooklin, os nordestinos do Sapopemba, os
armênios da Ponte Pequena, os sírios e libaneses do
Parque Dom Pedro, antigos e recentes, misturados uns aos outros.
Vieram em busca do progresso, para fugir da guerra e da miséria.
Vejam bem, o único contingente populacional significativo que
veio para o Brasil contra a própria vontade foi o africano.
Foram colocados para
fazer todo o trabalho sujo e pesado, por anos a fio. Todo seu aporte
cultural foi jogado no lixo. O melhor exemplo foi a demonização
de sua fé, cujos efeitos perduram até hoje (vide este
post). Não é preciso se alongar muito. Um belo dia,
deram um papel na mão de cada um e ofereceram a Brasil inteiro
para que pudessem vagar. Em outras palavras, mostraram-lhes o caminho
da rua, substituídos por imigrantes melhor preparados.
A história não
tem nada de romântico e pouco de humanitário. Os
escravos só foram libertados porque havia vantagem financeira.
Os reflexos se sentem até hoje, e o maior desafio de nosso
tempo é corrigir esta maldade histórica.
Para embasar uma
solução à questão das desigualdades
geradas por nosso modelo social, podemos recorrer ao filósofo
político John Rawls, autor da teoria da justiça como
equidade. Estadunidense, ele verificava na filosofia utilitarista em
voga no mundo ocidental um fato gerador de desigualdades. De acordo
com a posição utilitária, a sociedade deve
perseguir o maior bem-estar possível para o maior número
de pessoas. Seu grande problema é que sua distribuição
se baseia no mérito, mas este é influenciado por
fatores que independem da vontade do indivíduo. A grande
questão de Rawls é: como garantir direitos iguais a
pessoas desiguais?
Para o nosso filósofo,
é imprescindível que se tenha em tela a perspectiva
kantiana sobre a ética. Kant lança a idéia do
imperativo categórico, ou seja, toda atitude ética deve
ter o valor de uma lei universal. A concepção de
justiça baseada no utilitarismo é falha neste aspecto,
porque desconsidera os fatores limitantes dos seres humanos. Dessa
forma, não se pode pensar em uma sociedade justa (e o conceito
de justiça é primal para Rawls, mais do que o conceito
de bem) se ela não provê mecanismos de adequação
a estas limitações que independem do mérito,
como os defeitos físicos, a pobreza, a acuidade intelectual,
entre outros. Se a sociedade utilitária não se ocupa de
proporcionar equanimidade de oportunidades para estes indivíduos,
temos uma falha na formação da cidadania, que é
a constituição de minorias. Estas minorias estarão
sempre em desvantagem, porque constituem a porção da
população que puxa a média do bem-estar
disponível para baixo, e eis que temos a exclusão
social.
A pedra de toque do
pensamento de Rawls está contida na afirmação de
que “toda pessoa possui uma inviolabilidade baseada na justiça,
sobre a qual nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode
prevalecer. Por esta razão a justiça nega que a perda
da liberdade de alguém possa ser justificada por maiores
benefícios obtidos por outros”, liberdade esta entendida
como de oportunidades e escolhas. Em um resumo final, podemos
perceber a filosofia de Rawls imbricada para um viés moral que
havia sido perdida nas concepções positivistas e
pragmáticas.
Olhamos para o Brasil
de hoje e percebemos a influência da filosofia de Rawls.O ECA
visa garantir direitos ao menor em formação, o Estatuto
de Idoso protege os cidadãos da terceira idade, as diversas
leis de acessibilidade visam facilitar a locomoção de
deficientes, os concursos públicos reservam vagas para
portadores de necessidades especiais. E, neste ponto, posso incluir a
solução almejada para as dificuldades encontradas em
meus posts sobre a despolitização de nossa juventude
(aqui e aqui).
Retomando seu tema
rapidamente, observei que os sistemas educacionais implantados até
hoje não se mostraram eficientes, porque desprezam a
identidade humana e sua necessidade de perceber, articular e
retrabalhar os vínculos entre os conhecimentos, gerando uma
visão fragmentada, ideal para o trabalho, mas desastrosa para
a cultura global. A implantação de um sistema sério
deve partir do zero, mexendo com a base do conhecimento, que é
transmitida desde os primeiros anos do aluno. Ocorre que já
temos um contingente gigantesco de jovens inseridos na metodologia do
fracasso, que dificilmente sentirão os reflexos de um novo
sistema. Já estão estragados, precisam de um
dispositivo que permita reduzir os danos. E este remédio
parece ser o sistema de quotas.
Vamos pensar nas
preconizações de Rawls. O que é justo? É
aquilo que permite a equanimidade. Já disse que os negros
foram enfiados a força no Brasil, com o racismo nas suas
costas a impedir sua ascensão social. A inapelável
maioria das classes sociais mais baixas é constituída
por negros e seus descendentes, no que incluo os indígenas.
(Aqui, uma pequena contradição de aplicabilidade do
pensamento de Rawls, já que sua visão parte de um
ângulo anglo-americano. Como a sociedade de lá é
menos desigual do que a nossa, o conceito de minoria excluída
se torna um pouco inadequado – nossas classes sociais são
muito mais esgarçadas – já que uma parcela imensa da
população pode ser considerada como distante das
elites, e consequentemente dependentes do poder público). A
falta de oportunidades é clara, e, se queremos corrigir os
rumos da justiça social, é preciso que a vontade
política seja dirigida para programas de inclusão.
Sou contra um sistema puramente baseado na raça por um motivo extremamente simples: temos o risco de criar um novíssimo preconceito, poucas vezes imaginado antes, que a criação de uma pequeníssima minoria de brancos favelados. E, como exemplifiquei com fotos logo acima, é extremamente difícil estabelecer quem é negro e quem não é. O jornalista Elio Gaspari certa vez sugeriu uma maneira de estabelecer o quanto o aspecto de uma pessoa poderia ajudar a definir quem é negro. Formar-se-ia uma comissão de porteiros e seriam apresentados a eles os candidatos à quota. A pergunta seria simples – quais destas pessoas vocês admitiriam que entrasse em seus prédios sem consulta de documentos? Aqueles que forem barrados serão considerados negros. Claro que há um sentido irônico nesse “método”, mas ele demonstra o quanto a sociedade se baseia na aparência como critério de acesso.
Se nos dirigirmos à
classe social mais baixa, invariavelmente estenderemos seus efeitos à
questão racial. E desta forma poderíamos abarcar
aqueles que não se enquadram no estereótipo racial, mas
que enfrentam os mesmos problemas sociais. Portanto, vejo como
necessária a adoção de quotas sociais, e não
puramente raciais.
Como seriam aplicadas
as atribuições das quotas sociais é questão
difícil de resolver, mas é preciso estabelecer
critérios que possam ser corrigidos com o passar do tempo e da
constatação de sua eficácia. Um exemplo poderia
ser a bonificação de uma percentagem na nota obtida
pelo aluno nos processos avaliativos, como já é feito
nos acessos às ETEC’s, e os candidatos em geral concorreriam
em lista única. De qualquer forma, a formação de
uma nova geração não pode pressupor a exclusão
da anterior, e não vejo alternativa à adoção
de quotas. Se realmente levarmos a sério as indicações
de John Rawls, é preciso engolir a concorrência com as
classes que antes ficavam do lado de fora do palacete estudantil. O
resultado final será um círculo virtuoso, onde cada vez
mais pessoas poderão auxiliar na sustentação da
igualdade, e o peso será menor para o caminhãozinho de
todos.
Recomendação
de leitura:
As teses de John Rawls
são bastante extensas. Para conhecê-las em profundidade,
é preciso ler seu capolavoro:
RAWLS, John. Uma
teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Em tempo: Queria agradecer a Ná, a Rê e a Deb por autorizar os usos de suas fotos. Amo muito vocês!!!
Em tempo: Queria agradecer a Ná, a Rê e a Deb por autorizar os usos de suas fotos. Amo muito vocês!!!
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