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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Sobre direitos iguais e pessoas desiguais (ou: a justiça como equidade e solução social)

É mole de ver que para o negro
mesmo a AIDS possui hierarquia
na África a doença corre solta
e a imprensa mundial dispensa poucas linhas
comparado, comparado ao que faz com qualquer
comparado, comparado figurinha do cinema
comparado, comparado ao que faz com qualquer
figurinha do cinema ou das colunas sociais
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
Marcelo Yuka – O Rappa

Olá!

Bem no finalzinho do mês de maio, uma das universidades que mais relutavam em adotar um sistema de cotas para prover suas vagas, a toda-poderosa Universidade de São Paulo (USP), começou a abrir o debate para sua adesão a este benefício, apoiado principalmente no julgamento da constitucionalidade deste regime pelo STF, o que levou o pessoal da Faculdade de Direito a recomendá-lo ao Conselho Universitário.

Tema complicado, esse. Já escutei um sem-número de opiniões a respeito, prós e contras, e a principal encruzilhada é feita de um misto de resistência social baseada no mérito e da dificuldade em determinar quem é negro e quem não é. Vou dar um exemplo prático para entendermos melhor a dificuldade.

Esta é a Natália:



Uma menina linda que, isoladamente, podemos chamar no máximo de morena. Em seus registros civis consta como branca. Em tempo: o nariz não é naturalmente vermelho (Ai, que engraçado).

Esta é a Renata:


O enquadramento atribuído anteriormente também vale aqui. Bonita, morena clara, branca por extensão.


Pois bem. Estas são Renata e Natália:


Elas são irmãs, filhas do mesmo pai e da mesma mãe. Será que agora a Natália virou negra?

Esta é a Deborah:


Mais uma menina linda. Ela é loira, olhos azuis. Corre sangue indígena em suas veias, comprovado por documentos. Seria ela também uma indígena?

Sabemos que o Brasil é quase que uma perfeita amostra para qualquer extraterrestre que queira investigar os tipos humanos de nosso planeta. São Paulo é uma cidade absolutamente cosmopolita. Temos os italianos do Bixiga e da Moóca, os espanhóis do Ipiranga, os portugueses da Vila Maria, os argelinos do Arouche, os gregos e judeus do Bom Retiro, os japoneses, chineses e coreanos da Liberdade, os lituanos da Vila Zelina, os bolivianos e peruanos do Brás, os alemães do Brooklin, os nordestinos do Sapopemba, os armênios da Ponte Pequena, os sírios e libaneses do Parque Dom Pedro, antigos e recentes, misturados uns aos outros. Vieram em busca do progresso, para fugir da guerra e da miséria. Vejam bem, o único contingente populacional significativo que veio para o Brasil contra a própria vontade foi o africano.

Foram colocados para fazer todo o trabalho sujo e pesado, por anos a fio. Todo seu aporte cultural foi jogado no lixo. O melhor exemplo foi a demonização de sua fé, cujos efeitos perduram até hoje (vide este post). Não é preciso se alongar muito. Um belo dia, deram um papel na mão de cada um e ofereceram a Brasil inteiro para que pudessem vagar. Em outras palavras, mostraram-lhes o caminho da rua, substituídos por imigrantes melhor preparados.

A história não tem nada de romântico e pouco de humanitário. Os escravos só foram libertados porque havia vantagem financeira. Os reflexos se sentem até hoje, e o maior desafio de nosso tempo é corrigir esta maldade histórica.

Para embasar uma solução à questão das desigualdades geradas por nosso modelo social, podemos recorrer ao filósofo político John Rawls, autor da teoria da justiça como equidade. Estadunidense, ele verificava na filosofia utilitarista em voga no mundo ocidental um fato gerador de desigualdades. De acordo com a posição utilitária, a sociedade deve perseguir o maior bem-estar possível para o maior número de pessoas. Seu grande problema é que sua distribuição se baseia no mérito, mas este é influenciado por fatores que independem da vontade do indivíduo. A grande questão de Rawls é: como garantir direitos iguais a pessoas desiguais?

Para o nosso filósofo, é imprescindível que se tenha em tela a perspectiva kantiana sobre a ética. Kant lança a idéia do imperativo categórico, ou seja, toda atitude ética deve ter o valor de uma lei universal. A concepção de justiça baseada no utilitarismo é falha neste aspecto, porque desconsidera os fatores limitantes dos seres humanos. Dessa forma, não se pode pensar em uma sociedade justa (e o conceito de justiça é primal para Rawls, mais do que o conceito de bem) se ela não provê mecanismos de adequação a estas limitações que independem do mérito, como os defeitos físicos, a pobreza, a acuidade intelectual, entre outros. Se a sociedade utilitária não se ocupa de proporcionar equanimidade de oportunidades para estes indivíduos, temos uma falha na formação da cidadania, que é a constituição de minorias. Estas minorias estarão sempre em desvantagem, porque constituem a porção da população que puxa a média do bem-estar disponível para baixo, e eis que temos a exclusão social.

A pedra de toque do pensamento de Rawls está contida na afirmação de que “toda pessoa possui uma inviolabilidade baseada na justiça, sobre a qual nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode prevalecer. Por esta razão a justiça nega que a perda da liberdade de alguém possa ser justificada por maiores benefícios obtidos por outros”, liberdade esta entendida como de oportunidades e escolhas. Em um resumo final, podemos perceber a filosofia de Rawls imbricada para um viés moral que havia sido perdida nas concepções positivistas e pragmáticas.

Olhamos para o Brasil de hoje e percebemos a influência da filosofia de Rawls.O ECA visa garantir direitos ao menor em formação, o Estatuto de Idoso protege os cidadãos da terceira idade, as diversas leis de acessibilidade visam facilitar a locomoção de deficientes, os concursos públicos reservam vagas para portadores de necessidades especiais. E, neste ponto, posso incluir a solução almejada para as dificuldades encontradas em meus posts sobre a despolitização de nossa juventude (aqui e aqui).

Retomando seu tema rapidamente, observei que os sistemas educacionais implantados até hoje não se mostraram eficientes, porque desprezam a identidade humana e sua necessidade de perceber, articular e retrabalhar os vínculos entre os conhecimentos, gerando uma visão fragmentada, ideal para o trabalho, mas desastrosa para a cultura global. A implantação de um sistema sério deve partir do zero, mexendo com a base do conhecimento, que é transmitida desde os primeiros anos do aluno. Ocorre que já temos um contingente gigantesco de jovens inseridos na metodologia do fracasso, que dificilmente sentirão os reflexos de um novo sistema. Já estão estragados, precisam de um dispositivo que permita reduzir os danos. E este remédio parece ser o sistema de quotas.

Vamos pensar nas preconizações de Rawls. O que é justo? É aquilo que permite a equanimidade. Já disse que os negros foram enfiados a força no Brasil, com o racismo nas suas costas a impedir sua ascensão social. A inapelável maioria das classes sociais mais baixas é constituída por negros e seus descendentes, no que incluo os indígenas. (Aqui, uma pequena contradição de aplicabilidade do pensamento de Rawls, já que sua visão parte de um ângulo anglo-americano. Como a sociedade de lá é menos desigual do que a nossa, o conceito de minoria excluída se torna um pouco inadequado – nossas classes sociais são muito mais esgarçadas – já que uma parcela imensa da população pode ser considerada como distante das elites, e consequentemente dependentes do poder público). A falta de oportunidades é clara, e, se queremos corrigir os rumos da justiça social, é preciso que a vontade política seja dirigida para programas de inclusão.

Sou contra um sistema puramente baseado na raça por um motivo extremamente simples: temos o risco de criar um novíssimo preconceito, poucas vezes imaginado antes, que a criação de uma pequeníssima minoria de brancos favelados. E, como exemplifiquei com fotos logo acima, é extremamente difícil estabelecer quem é negro e quem não é. O jornalista Elio Gaspari certa vez sugeriu uma maneira de estabelecer o quanto o aspecto de uma pessoa poderia ajudar a definir quem é negro. Formar-se-ia uma comissão de porteiros e seriam apresentados a eles os candidatos à quota. A pergunta seria simples – quais destas pessoas vocês admitiriam que entrasse em seus prédios sem consulta de documentos? Aqueles que forem barrados serão considerados negros. Claro que há um sentido irônico nesse “método”, mas ele demonstra o quanto a sociedade se baseia na aparência como critério de acesso.

Se nos dirigirmos à classe social mais baixa, invariavelmente estenderemos seus efeitos à questão racial. E desta forma poderíamos abarcar aqueles que não se enquadram no estereótipo racial, mas que enfrentam os mesmos problemas sociais. Portanto, vejo como necessária a adoção de quotas sociais, e não puramente raciais.

Como seriam aplicadas as atribuições das quotas sociais é questão difícil de resolver, mas é preciso estabelecer critérios que possam ser corrigidos com o passar do tempo e da constatação de sua eficácia. Um exemplo poderia ser a bonificação de uma percentagem na nota obtida pelo aluno nos processos avaliativos, como já é feito nos acessos às ETEC’s, e os candidatos em geral concorreriam em lista única. De qualquer forma, a formação de uma nova geração não pode pressupor a exclusão da anterior, e não vejo alternativa à adoção de quotas. Se realmente levarmos a sério as indicações de John Rawls, é preciso engolir a concorrência com as classes que antes ficavam do lado de fora do palacete estudantil. O resultado final será um círculo virtuoso, onde cada vez mais pessoas poderão auxiliar na sustentação da igualdade, e o peso será menor para o caminhãozinho de todos.


Recomendação de leitura:

As teses de John Rawls são bastante extensas. Para conhecê-las em profundidade, é preciso ler seu capolavoro:

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2009.


Em tempo: Queria agradecer a Ná, a Rê e a Deb por autorizar os usos de suas fotos. Amo muito vocês!!!

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