Deixem-me fazer um breve comentário antes de disponibilizar este espaço ao meu amigo Vitor, de quem já falei nestas mal digitadas linhas. É com muita alegria que recebo a primeira colaboração direta ao conteúdo deste blog. O Vitor é meu colega de trabalho, um jovem bastante interessado em assuntos ligados à Filosofia, embora possua mestrado na área de Ciências da Computação. Neste texto, ele faz interessantes observações sobre os limites existentes (ou não) entre "boa" e "má" arte. Sem mais delongas, demos voz e vez ao nobre escriba. Com vocês... Vitor Bertalan!
A
concepção de boa arte
Dedicado
à Erica Acevedo
Olá!
Creio que poucos dos leitores deste blog me conheçam. Meu nome
é Vitor Bertalan, colega de trabalho do Décio.
Há
tempos, eu havia combinado com o dono do blog que eu escolheria um
tema interessante para desenvolvê-lo com uma análise
filosófica. Este tema apareceu em uma conversa realizada entre
mim e a homenageada do post, na semana passada. Após intensos
desvarios, o grande cerne da questão foi as habilidades
musicais de Michel Teló e Beyoncé.
Uma
curiosidade inocente: o prefixo “telo”, utilizando em palavras no
português como as biológicas telófase
e telômero,
vem do grego telos,
que significa “fim”, “final”. Mera coincidência, ou
símbolo do apocalipse?
Voltando
ao busílis: podemos considerar Michel Teló, Beyoncé
e similar como bons artistas, na acepção formal do
termo?
Para
quem não os conhece, são brasileiro e estadunidense,
respectivamente, e ambos fenômenos recentes da música
pop internacional. Mantendo a tônica do pop das últimas
décadas, os dois seguem fórmulas musicais bem
parecidas: letras altamente repetitivas, batidas dançantes e
músicas raramente ultrapassando os 3 minutos de tortura (digo,
execução). Quando comparamos letras como Ai
Se Eu Te Pego
e Run
the World,
com letras de qualquer outro compositor que gasta um pouco mais de
tempo em suas criações, a pergunta inevitável
vem à tona: composições como estas podem ser
colocadas no mesmo patamar da Nona Sinfonia, de Bohemian
Rhapsody
ou de Águas
de Março?
Esta
análise, por ser de cunho altamente polêmico, deve ser
feita de forma livre de preconceitos. Meus únicos desvios
foram o tortura/execução e a coincidência de
prefixos dos parágrafos anterior, e prometo que não se
repetirão. Logo, peço também ao leitor que por
alguns minutos de leitura oculte suas concepções
prévias do que é um bom artista ou de que é boa
arte. Veremos, no seguimento da leitura, que este próprio
conceito que temos pode ser uma armadilha.
Comecemos
pelo começo. Antes de entendermos o que é boa arte,
precisamos entender o que é arte.
Para o filósofo grego Platão, a arte é mimesis,
ou seja, mimese (imitação) da realidade. No entanto,
Platão via a arte com ressalvas, pois considerava que a arte
era antes de tudo uma forma de enganação, um meio pelo
qual alguém poderia desviar outrem do que realmente era
necessário saber. A arte então deveria ser substituída
ou submetida às regras da filosofia, a forma mais efetiva de
se alcançar o verdadeiro conhecimento.
Aristóteles
segue a ideia mimética da arte derivada de seu orientador
Platão, mas considera que a arte é a representação
da pura verdade. Seu livro Poética
ainda é hoje muito estudado em escolas artísticas ao
redor do mundo. Para Aristóteles, o artista tem então a
posse de uma ferramenta com a qual pode divulgar seu conhecimento
para o público. O filósofo também defende a
arte, especialmente a representação da tragédia
(que viríamos mais tarde a conhecer como teatro), como forma
de purificação da alma e de exaltação dos
sentidos e emoções das pessoas: o conceito de katarsis.
Este
conceito é facilmente reconhecível. Creio que todos já
passaram por uma situação em que uma música, um
capítulo de um livro ou uma cena de um filme nos provoca
profundas sensações, frequentemente de forma
inesperada. As catarses artísticas seriam então formas
de aliviar ou extirpar sentimentos indesejados. É uma ideia
diferente da platônica: se para Platão a arte era um
desvio do racional, para Aristóteles, é um remédio
para a alma.
Avancemos
agora 23 séculos. Na França, no século XIX,
começava a surgir o movimento do parnasianismo, que defendia a
arte
pela arte.
Os parnasianos buscavam o retorno à Antiguidade Clássica
de Platão e Aristóteles, mas apenas em sua forma
estética. Ou seja: uma peça de arte deveria ser
autossuficiente, não buscando impor valor morais ou
filosóficos.
Este
foi um conceito polêmico para a época, que acreditava
piamente que as formas de arte eram mecanismos de divulgação
pedagógica e política. Uma pintura, apesar da abertura
filosófica da época, deveria ter cunho sacro,
divulgando valores religiosos. Uma canção deveria
exaltar os valores burgueses liberais. Um livro deveria instruir o
leitor com os ideais iluministas. Cito um exemplo: um dos maiores
livros (talvez o maior) do século XVIII é Do
Contrato Social,
de Rousseau, que versa sobre as teorias sociais de poder no
estabelecimento de um Estado. Algo ferozmente repelido pelos
parnasianos, que acreditavam que a arte não necessariamente
precisava transmitir uma mensagem, tendo o objetivo somente de
existir, distrair e elevar seu espectador.
Mais
um pulo: estamos no século XX. O teórico de cinema
italiano Ricciotto Canudo estende um trabalho feito por Hegel feito
no século anterior, e escreve em 1912 o Manifesto
das Sete Artes,
que podemos ver abaixo:
1ª
Arte - Arquitetura
2ª
Arte - Escultura
3ª
Arte - Pintura
4ª
Arte - Música
5ª
Arte - Dança
6ª
Arte - Poesia
7ª
Arte - Cinema
Atualmente,
esta lista, via de regra, é analisada com algumas alterações:
a Arquitetura sai para dar espaço ao Teatro, a Literatura
engloba a Poesia na 6ª casa, e a Coreografia é unida à
Dança.
Mas
não paremos no tempo. Ainda no século XX, voltemo-nos à
terras tupiniquins. Como bem lembrado pela homenageada do post, em
2012 completamos o nonagésimo aniversário do maior
evento cultural da história deste país: a Semana da
Arte Moderna de 1922.
Para
que não se lembra, farei um resumo fácil da Semana de
22. Era uma vez cinco amigos, três homens e duas mulheres,
trintanistas, de famílias da alta elite paulista: Mário,
Oswald, Menotti, Anita e Tarsila. Eram todos aspirantes a artistas,
com nenhuma ou poucas obras em circulação antes da
Semana. Em um belo dia, como estavam se sentindo muito entediados, os
cinco amigos decidem mudar completamente a forma como se escrevia,
pintava, desenhava, cantava, tocava, compunha, esculpia (insira aqui
o verbo artístico de sua preferência) no Brasil.
Ok,
ok... a Semana não nasceu de um mero momento de tédio,
foi muito bem planejada. Mas seu efeito foi duradouro e espetacular.
Colocando-se de encontro às correntes anteriores, os
modernistas da Semana abriram a arte brasileira para a experimentação
e para o novo. Agora, no Brasil, não era mais necessária
a adesão a um movimento ou a preceitos vigentes. Ela tanto
poderia carregar mensagens implícitas (como muitas das poesias
de Mário de Andrade ou das pinturas de Tarsila do Amaral),
como existir sem uma razão pré-determinada.
Agora,
ao foco do problema. O que é boa arte? Para nos ajudar a
entender, usarei os trabalhos do sociólogo francês
Pierre Bourdieu. Bourdieu construiu uma teoria extremamente
interessante e versátil, a teoria dos campos
sociais.
Não satisfeito com a sociologia pura e teórica feita em
seu tempo, seus livros são frequentemente povoados com
exemplos da vida real, a fim de contextualizar suas propostas. Ao
longo de sua vida, Bourdieu usou os campos sociais para estudar áreas
tão díspares como a influência da religião,
o sistema educacional, o mercado imobiliário, os jogos
olímpicos e o mercado de alta-costura francês.
E,
é claro, Bourdieu estudou a arte. Para começar a
análise, o sociólogo repudia veementemente a noção
do “dom” na arte – conceito pelo qual alguns seres humanos
nascem com maior tendência a se direcionar para as artes que
outros, criando obras de primeira linha somente por condições
genotípicas. Bourdieu diz que um artista se forma por suas
condições familiares, socioeconômicas e
educacionais.
Um
campo
social,
para Bourdieu, é um cenário antropomórfico em
que os agentes constantemente buscam melhores posições
através da utilização de seus capitais.
Traduzindo do sociologiquês para o português: todos nós,
não importando onde estivermos, sempre buscamos uma melhor
condição. É importante mencionar que esta melhor
condição não é necessariamente econômica
– em um campo religioso, uma melhor condição seria
uma vida com maior expiação dos pecados; em um campo
educacional, uma melhor formação intelectual; em um
campo profissional, uma posição com maior
reconhecimento dentro de uma empresa. Há vários
exemplos, mas o mais importante é entender que o ser humano
está sempre tentando atingir um nível superior ao
anterior em seus campos de atuação.
Bourdieu
argumenta que as principais formas de alcançar estes níveis
superiores são os capitais.
Capital financeiro para adquirir mais bens e formações
educacionais melhores, capital social para articular os contatos
necessários para uma determinada posição,
capital intelectual para saber se expressar e se comunicar com mais
eficácia... Os exemplos são vários.
No
campo artístico, o capital mais importante é o capital
cultural.
Sendo assim, um artista não é conceituado por seu dom,
mas por uma utilização efetiva de seu capital cultural
para atingir uma melhor posição no campo. O sociólogo
também argumenta que o capital cultural é utilizado em
praticamente todos os outros campos. Alguém com alto capital
cultural não tem mais condições para brigar
somente no campo artístico, mas como em qualquer outro que
esteja disputando.
Em
seu fantástico livro A
Distinção,
Bourdieu propõe que o capital cultural é transmitido
entre gerações. Um filho de apaixonados por literatura,
música ou escultura tenderá assim a nascer com mais
capital cultural que seus amiguinhos, podendo atingir melhores
posições no campo devido ao caráter atávico
de sua vocação.
Mas
a herança não é o fator preponderante: para o
autor, há três outras formas de se adquirir capital
cultural: pela socialização
prolongada,
em que o agente é colocado em situações
artísticas em várias ocasiões (como pais ricos
que levam seus filhos a óperas – uma criança pobre
saberia se portar em tal situação? E se não
souber, não se afastará de óperas em sua vida
adulta?), por forma
objetivada
(a exposição a objetos artísticos, como
pinturas, livros ou filmes), ou por forma
institucionalizada
(por cursos, aulas ou aquisição de títulos
culturais).
Lembremos
que o capital cultural, como dito por Bourdieu, é uma das
principais armas que os agentes possuem para brigar por posições
em seus campos. Uma das principais lições que o autor
passa é que pais que não possuem o capital financeiro
para dar a seus filhos uma educação de elite nos
melhores colégios ou a formação em diversas
línguas estrangeiras podem escolher as formas citadas no
parágrafo anterior para fortalecer o capital cultural de seus
rebentos, deixando-os em situações mais confortáveis
em seus campos.
Entretanto,
este mecanismo, por proporcionar uma alternativa a agentes que não
tenham capital financeiro suficiente, obviamente não vai ao
encontro das expectativas das elites. Os detentores do poder então
estabelecem, na visão de Bourdieu, um uso estratégico e
político da arte, estabelecendo distinções entre
a “boa arte” e a “não tão boa arte”, ou entre o
“bom gosto” e o “mau gosto”, conforme o gosto do freguês.
E
é aqui que o discurso de Bourdieu se coaduna com a questão
principal, e que a teoria se mescla com minha visão pessoal.
Em que ponto, exatamente, foi decidido que a música pop, ou
qualquer outro estilo aleatório de arte, seria classificada
como mau gosto?
Sem
percebermos, estamos estimulando uma rédea intelectual
promulgada pelas elites. Apesar de parecer óbvio que a
complexidade artística do mais novo hit
tocado nas paradas internacionais é infinitamente menor que
música erudita, que Cinquenta Tons de Cinza não é
Madame Bovary, ou que grafites nunca serão pinturas
impressionistas, não devemos nos esquecer que o mais
importante é seu alcance massivo.
Artistas
de alcance popular, como Michel Teló e Beyoncé,
conseguem atingir um número bem maior de pessoas que outras
formas de arte mais restritivas. E concluo que é sempre bom
que a arte esteja presente na vida de todos, mesmo que seja através
de formas estética e ideologicamente mais pobres. Quem sabe
estas formas mais simples não possam até mesmo servir
de porta de entrada para outras formas mais elaboradas de arte? A
divisão de “boa arte” e “arte ruim” nada mais é
que uma classificação instalada para ratificar uma
segmentação social em que determinados grupos sociais
se auto-afirmam por meio de seus gostos e hábitos. A
verdadeira democratização dos meios culturais não
se fará presente somente no dia em que elites fizerem uma
feijoada com pagode, e que as classes baixas visitem a Pinacoteca?
Cenário improvável, ou impossível?
Afinal,
a catarse aristotélica, a estética parnasiana ou a
ruptura modernista precisam ser instadas necessariamente por música
barroca, quadros renascentistas ou pelos textos de Proust? Uma forma
mais simples ou rudimentar de arte também não poderia
servir para cumprir seus propósitos? Termino o texto pedindo
desculpas pela minha nativa prolixidade, e citando novamente
Aristóteles: “deixe que cada um exercite a arte que
conhece”.
Sugestão
de leitura:
BOURDIEU,
Pierre. A distinção: crítica social do
julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.
Livro
em que Bourdieu tenta analisar o que motiva as escolhas dos seres
humanos – fatores econômicos, sociais, intelectuais, ou uma
mistura de todos? Leitura interessantíssima para romper alguns
preconceitos que nem percebemos que existem.
"...minha nativa prolixidade". É claro que este texto não é do Professor Décio. Conclusão?
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