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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A concepção de boa arte

Olá!

Deixem-me fazer um breve comentário antes de disponibilizar este espaço ao meu amigo Vitor, de quem já falei nestas mal digitadas linhas. É com muita alegria que recebo a primeira colaboração direta ao conteúdo deste blog. O Vitor é meu colega de trabalho, um jovem bastante interessado em assuntos ligados à Filosofia, embora possua mestrado na área de Ciências da Computação. Neste texto, ele faz interessantes observações sobre os limites existentes (ou não) entre "boa" e "má" arte. Sem mais delongas, demos voz e vez ao nobre escriba. Com vocês... Vitor Bertalan!





A concepção de boa arte


Dedicado à Erica Acevedo

Olá! Creio que poucos dos leitores deste blog me conheçam. Meu nome é Vitor Bertalan, colega de trabalho do Décio.

Há tempos, eu havia combinado com o dono do blog que eu escolheria um tema interessante para desenvolvê-lo com uma análise filosófica. Este tema apareceu em uma conversa realizada entre mim e a homenageada do post, na semana passada. Após intensos desvarios, o grande cerne da questão foi as habilidades musicais de Michel Teló e Beyoncé.

Uma curiosidade inocente: o prefixo “telo”, utilizando em palavras no português como as biológicas telófase e telômero, vem do grego telos, que significa “fim”, “final”. Mera coincidência, ou símbolo do apocalipse?

Voltando ao busílis: podemos considerar Michel Teló, Beyoncé e similar como bons artistas, na acepção formal do termo?

Para quem não os conhece, são brasileiro e estadunidense, respectivamente, e ambos fenômenos recentes da música pop internacional. Mantendo a tônica do pop das últimas décadas, os dois seguem fórmulas musicais bem parecidas: letras altamente repetitivas, batidas dançantes e músicas raramente ultrapassando os 3 minutos de tortura (digo, execução). Quando comparamos letras como Ai Se Eu Te Pego e Run the World, com letras de qualquer outro compositor que gasta um pouco mais de tempo em suas criações, a pergunta inevitável vem à tona: composições como estas podem ser colocadas no mesmo patamar da Nona Sinfonia, de Bohemian Rhapsody ou de Águas de Março?

Esta análise, por ser de cunho altamente polêmico, deve ser feita de forma livre de preconceitos. Meus únicos desvios foram o tortura/execução e a coincidência de prefixos dos parágrafos anterior, e prometo que não se repetirão. Logo, peço também ao leitor que por alguns minutos de leitura oculte suas concepções prévias do que é um bom artista ou de que é boa arte. Veremos, no seguimento da leitura, que este próprio conceito que temos pode ser uma armadilha.

Comecemos pelo começo. Antes de entendermos o que é boa arte, precisamos entender o que é arte. Para o filósofo grego Platão, a arte é mimesis, ou seja, mimese (imitação) da realidade. No entanto, Platão via a arte com ressalvas, pois considerava que a arte era antes de tudo uma forma de enganação, um meio pelo qual alguém poderia desviar outrem do que realmente era necessário saber. A arte então deveria ser substituída ou submetida às regras da filosofia, a forma mais efetiva de se alcançar o verdadeiro conhecimento.

Aristóteles segue a ideia mimética da arte derivada de seu orientador Platão, mas considera que a arte é a representação da pura verdade. Seu livro Poética ainda é hoje muito estudado em escolas artísticas ao redor do mundo. Para Aristóteles, o artista tem então a posse de uma ferramenta com a qual pode divulgar seu conhecimento para o público. O filósofo também defende a arte, especialmente a representação da tragédia (que viríamos mais tarde a conhecer como teatro), como forma de purificação da alma e de exaltação dos sentidos e emoções das pessoas: o conceito de katarsis.

Este conceito é facilmente reconhecível. Creio que todos já passaram por uma situação em que uma música, um capítulo de um livro ou uma cena de um filme nos provoca profundas sensações, frequentemente de forma inesperada. As catarses artísticas seriam então formas de aliviar ou extirpar sentimentos indesejados. É uma ideia diferente da platônica: se para Platão a arte era um desvio do racional, para Aristóteles, é um remédio para a alma.

Avancemos agora 23 séculos. Na França, no século XIX, começava a surgir o movimento do parnasianismo, que defendia a arte pela arte. Os parnasianos buscavam o retorno à Antiguidade Clássica de Platão e Aristóteles, mas apenas em sua forma estética. Ou seja: uma peça de arte deveria ser autossuficiente, não buscando impor valor morais ou filosóficos.

Este foi um conceito polêmico para a época, que acreditava piamente que as formas de arte eram mecanismos de divulgação pedagógica e política. Uma pintura, apesar da abertura filosófica da época, deveria ter cunho sacro, divulgando valores religiosos. Uma canção deveria exaltar os valores burgueses liberais. Um livro deveria instruir o leitor com os ideais iluministas. Cito um exemplo: um dos maiores livros (talvez o maior) do século XVIII é Do Contrato Social, de Rousseau, que versa sobre as teorias sociais de poder no estabelecimento de um Estado. Algo ferozmente repelido pelos parnasianos, que acreditavam que a arte não necessariamente precisava transmitir uma mensagem, tendo o objetivo somente de existir, distrair e elevar seu espectador.

Mais um pulo: estamos no século XX. O teórico de cinema italiano Ricciotto Canudo estende um trabalho feito por Hegel feito no século anterior, e escreve em 1912 o Manifesto das Sete Artes, que podemos ver abaixo:

1ª Arte - Arquitetura
2ª Arte - Escultura
3ª Arte - Pintura
4ª Arte - Música
5ª Arte - Dança
6ª Arte - Poesia
7ª Arte - Cinema

Atualmente, esta lista, via de regra, é analisada com algumas alterações: a Arquitetura sai para dar espaço ao Teatro, a Literatura engloba a Poesia na 6ª casa, e a Coreografia é unida à Dança.

Mas não paremos no tempo. Ainda no século XX, voltemo-nos à terras tupiniquins. Como bem lembrado pela homenageada do post, em 2012 completamos o nonagésimo aniversário do maior evento cultural da história deste país: a Semana da Arte Moderna de 1922.

Para que não se lembra, farei um resumo fácil da Semana de 22. Era uma vez cinco amigos, três homens e duas mulheres, trintanistas, de famílias da alta elite paulista: Mário, Oswald, Menotti, Anita e Tarsila. Eram todos aspirantes a artistas, com nenhuma ou poucas obras em circulação antes da Semana. Em um belo dia, como estavam se sentindo muito entediados, os cinco amigos decidem mudar completamente a forma como se escrevia, pintava, desenhava, cantava, tocava, compunha, esculpia (insira aqui o verbo artístico de sua preferência) no Brasil.

Ok, ok... a Semana não nasceu de um mero momento de tédio, foi muito bem planejada. Mas seu efeito foi duradouro e espetacular. Colocando-se de encontro às correntes anteriores, os modernistas da Semana abriram a arte brasileira para a experimentação e para o novo. Agora, no Brasil, não era mais necessária a adesão a um movimento ou a preceitos vigentes. Ela tanto poderia carregar mensagens implícitas (como muitas das poesias de Mário de Andrade ou das pinturas de Tarsila do Amaral), como existir sem uma razão pré-determinada.

Agora, ao foco do problema. O que é boa arte? Para nos ajudar a entender, usarei os trabalhos do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Bourdieu construiu uma teoria extremamente interessante e versátil, a teoria dos campos sociais. Não satisfeito com a sociologia pura e teórica feita em seu tempo, seus livros são frequentemente povoados com exemplos da vida real, a fim de contextualizar suas propostas. Ao longo de sua vida, Bourdieu usou os campos sociais para estudar áreas tão díspares como a influência da religião, o sistema educacional, o mercado imobiliário, os jogos olímpicos e o mercado de alta-costura francês.

E, é claro, Bourdieu estudou a arte. Para começar a análise, o sociólogo repudia veementemente a noção do “dom” na arte – conceito pelo qual alguns seres humanos nascem com maior tendência a se direcionar para as artes que outros, criando obras de primeira linha somente por condições genotípicas. Bourdieu diz que um artista se forma por suas condições familiares, socioeconômicas e educacionais.

Um campo social, para Bourdieu, é um cenário antropomórfico em que os agentes constantemente buscam melhores posições através da utilização de seus capitais. Traduzindo do sociologiquês para o português: todos nós, não importando onde estivermos, sempre buscamos uma melhor condição. É importante mencionar que esta melhor condição não é necessariamente econômica – em um campo religioso, uma melhor condição seria uma vida com maior expiação dos pecados; em um campo educacional, uma melhor formação intelectual; em um campo profissional, uma posição com maior reconhecimento dentro de uma empresa. Há vários exemplos, mas o mais importante é entender que o ser humano está sempre tentando atingir um nível superior ao anterior em seus campos de atuação.

Bourdieu argumenta que as principais formas de alcançar estes níveis superiores são os capitais. Capital financeiro para adquirir mais bens e formações educacionais melhores, capital social para articular os contatos necessários para uma determinada posição, capital intelectual para saber se expressar e se comunicar com mais eficácia... Os exemplos são vários.

No campo artístico, o capital mais importante é o capital cultural. Sendo assim, um artista não é conceituado por seu dom, mas por uma utilização efetiva de seu capital cultural para atingir uma melhor posição no campo. O sociólogo também argumenta que o capital cultural é utilizado em praticamente todos os outros campos. Alguém com alto capital cultural não tem mais condições para brigar somente no campo artístico, mas como em qualquer outro que esteja disputando.

Em seu fantástico livro A Distinção, Bourdieu propõe que o capital cultural é transmitido entre gerações. Um filho de apaixonados por literatura, música ou escultura tenderá assim a nascer com mais capital cultural que seus amiguinhos, podendo atingir melhores posições no campo devido ao caráter atávico de sua vocação.

Mas a herança não é o fator preponderante: para o autor, há três outras formas de se adquirir capital cultural: pela socialização prolongada, em que o agente é colocado em situações artísticas em várias ocasiões (como pais ricos que levam seus filhos a óperas – uma criança pobre saberia se portar em tal situação? E se não souber, não se afastará de óperas em sua vida adulta?), por forma objetivada (a exposição a objetos artísticos, como pinturas, livros ou filmes), ou por forma institucionalizada (por cursos, aulas ou aquisição de títulos culturais).

Lembremos que o capital cultural, como dito por Bourdieu, é uma das principais armas que os agentes possuem para brigar por posições em seus campos. Uma das principais lições que o autor passa é que pais que não possuem o capital financeiro para dar a seus filhos uma educação de elite nos melhores colégios ou a formação em diversas línguas estrangeiras podem escolher as formas citadas no parágrafo anterior para fortalecer o capital cultural de seus rebentos, deixando-os em situações mais confortáveis em seus campos.

Entretanto, este mecanismo, por proporcionar uma alternativa a agentes que não tenham capital financeiro suficiente, obviamente não vai ao encontro das expectativas das elites. Os detentores do poder então estabelecem, na visão de Bourdieu, um uso estratégico e político da arte, estabelecendo distinções entre a “boa arte” e a “não tão boa arte”, ou entre o “bom gosto” e o “mau gosto”, conforme o gosto do freguês.

E é aqui que o discurso de Bourdieu se coaduna com a questão principal, e que a teoria se mescla com minha visão pessoal. Em que ponto, exatamente, foi decidido que a música pop, ou qualquer outro estilo aleatório de arte, seria classificada como mau gosto?

Sem percebermos, estamos estimulando uma rédea intelectual promulgada pelas elites. Apesar de parecer óbvio que a complexidade artística do mais novo hit tocado nas paradas internacionais é infinitamente menor que música erudita, que Cinquenta Tons de Cinza não é Madame Bovary, ou que grafites nunca serão pinturas impressionistas, não devemos nos esquecer que o mais importante é seu alcance massivo.

Artistas de alcance popular, como Michel Teló e Beyoncé, conseguem atingir um número bem maior de pessoas que outras formas de arte mais restritivas. E concluo que é sempre bom que a arte esteja presente na vida de todos, mesmo que seja através de formas estética e ideologicamente mais pobres. Quem sabe estas formas mais simples não possam até mesmo servir de porta de entrada para outras formas mais elaboradas de arte? A divisão de “boa arte” e “arte ruim” nada mais é que uma classificação instalada para ratificar uma segmentação social em que determinados grupos sociais se auto-afirmam por meio de seus gostos e hábitos. A verdadeira democratização dos meios culturais não se fará presente somente no dia em que elites fizerem uma feijoada com pagode, e que as classes baixas visitem a Pinacoteca? Cenário improvável, ou impossível?

Afinal, a catarse aristotélica, a estética parnasiana ou a ruptura modernista precisam ser instadas necessariamente por música barroca, quadros renascentistas ou pelos textos de Proust? Uma forma mais simples ou rudimentar de arte também não poderia servir para cumprir seus propósitos? Termino o texto pedindo desculpas pela minha nativa prolixidade, e citando novamente Aristóteles: “deixe que cada um exercite a arte que conhece”.

Sugestão de leitura:

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.

Livro em que Bourdieu tenta analisar o que motiva as escolhas dos seres humanos – fatores econômicos, sociais, intelectuais, ou uma mistura de todos? Leitura interessantíssima para romper alguns preconceitos que nem percebemos que existem.

Um comentário:

  1. "...minha nativa prolixidade". É claro que este texto não é do Professor Décio. Conclusão?

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