Percebam que o pano de fundo da ação da aventura se dá nas transformações do menino Andy. Tudo começa na sua infância menor, no primeiro episódio, passando pela puberdade da segunda parte e chegando às portas da vida adulta, com sua ida para a faculdade. Essa transição, dado o fato de que não é o foco principal do filme, é bastante lenta, espraiada em alguns poucos pontos. Mas ela é bastante marcante porque, ao contrário do papo flácido sobre a amizade, coloca em evidência a mudança da relação que o protagonista tem com o mundo ao seu redor. Levando em conta que as crianças estadunidenses tem uma maneira um pouco mais individualista em suas brincadeiras, podemos achar um tanto estranho o apego tão forte com seus brinquedos, mas não podemos esquecer que nosso modus vivendi também vem se aproximando disso. É, talvez não estranhemos mais tanto assim. E a relação que o menino tem com os seus brinquedos são um espelho e uma alegoria do que ele terá com o outro, ou seja, dão a medida de qual será sua alteridade.
Essa alternância em que percebemos os ciclos de morte e novo
nascimento é uma constante especialmente rica a partir da juventude, e por isso
é possível perceber o porquê da inconstância e rebeldia tão típicas desta fase.
É a descoberta e a tentativa de afirmação como adultos, constituindo um
conjunto de mudanças e retornos de rumo, uma coisa profundamente angustiante de
fins e começos. Cada contingência é elemento motivador para que se vislumbre
uma nova vida, que nem sempre pode ser elevada aos patamares da felicidade, às
vezes muito pelo contrário. Afinal de contas, costumamos associar a morte à
tristeza e o nascimento à alegria, à esperança, à renovação e etc., mas há
momentos em que é preciso deixar o romantismo um pouco de lado, e perceber que
o parto efetivamente é dor.
Quando digo isso, não penso exclusivamente na mãe, que passa
por cólicas poderosas e tem suas carnes rasgadas para a passagem do neófito
contribuinte. Esse é o ponto mais óbvio. Mas, para a criança que nasce, imagino
que seja o rito de passagem mais dolorido de todos, e é justamente o primeiro.
O nascituro está lá, quietinho, quentinho, envolto por água, escuridão e
silêncio, quando, não mais que de repente, uma série de eventos sem explicação
passa a se suceder. Ele já não é um hóspede, é um corpo estranho. E, como tal,
deve ser expulso. Passa a ser comprimido, cada vez mais, até ser embocado em um
canal apertadíssimo, que tenta esmagar sua cabeça. É despejado em um ambiente
frio, sob uma luz cegante, todo melecado de sangue de sua própria mãe (bem, ele
ainda nem sabe disso), já distanciado de todo seu ambiente de proteção
anterior. Seu primeiro sinal efetivo de vida não é um sorriso, um olhar de
ternura, um gesto de carinho, nada disso. O que indica que uma criança está
viva é seu choro. Um esgar espasmódico, extremamente dolorido, das paredes dos
pulmões que se descolam, como se fosse fita velcro. A vida começa e acaba com
as lágrimas, com o ruído desesperado do próprio choro no princípio, com o ruído
desesperado do choro alheio no derradeiro. A experiência do parto só pode ser
suportada porque é esquecida, ao menos conscientemente.
Carreguei propositalmente nas tintas para dar mais
dramaticidade ao texto, mas o fato é que, ao associar a alegoria do parto e da
morte aos diferentes ciclos da vida, que ocorrem em grande quantidade na fase
da adolescência, devemos reconhecer que algumas dessas viradas podem ser muito
dolorosas, ainda que canalizadas para algum símbolo, como o boneco que se
reluta em abandonar.
Explicando melhor. Quando o jovem Andy se vê indeciso em se
separar do seu boneco de cowboy, não
está preocupado com algum tipo de “ingratidão”, mas com a quebra de vínculos
com seu passado. Teme a morte definitiva de sua infância e, principalmente, a incerteza
de seu novo parto rumo à vida adulta. Na prática, ele não brinca mais com o
personagem Woody. Ele não sonha mais com aventuras montadas a cavalo. Apenas o
mantém como mantemos retratos na parede, para que tenhamos uma sensação de
pertença universal no tempo, e para que, de alguma forma, o novo parto não
represente uma morte completa. Temos medo demais da morte para que tenhamos
tantas delas durante a vida.
Temos a ferramenta da memória, mas não a julgamos
suficiente. Ela não é concrescível, materializável. Olhar uma foto ou um objeto
é apenas uma celebração do resgate do passado, não de sua nova existência.
Podemos comemorar uma data importante, um aniversário, um centenário, mas o
fato é que o objeto rememorado não está mais presente. O tempo passou e já não
somos crianças, já não somos jovens, somos velhos. Isso nos enche de pavor, e
por isso é complicado jogar fora as coisas que nos são caras.
Olhando por outro viés, não estou aqui defendendo nenhuma
desvinculação, pelo contrário. Adoro fotografias, tenho vááááários livros de
memória paulistana, gosto de biografias, tenho alguns objetos meus da época de
bebê, bem como de meus filhos e de minha esposa. Sou capaz de ficar horas e
horas contando histórias da minha vida, da minha infância e juventude, meus
afilhados sabem muito bem disso. É que o diabo da desvinculação já está escrito
no momento mesmo em que temos dó de jogar qualquer porcaria fora. É uma dor
interior, de não sermos mais o que éramos, e de termos muitas dúvidas do que
ainda vamos ser.
E aí temos o grande problema da velhice. Temos um milhão de
subterfúgios para renegar o fato de que estamos envelhecendo. Eufemismos como
“terceira idade”, “era da experiência”, o horroroso termo “melhor idade” servem
para disfarçar as rugas inevitáveis. Temos botox, peeling, plásticas. A vida que era compactada em 50 ou 60 anos
está alastrada para 80, 90. Isso é bom enquanto há qualidade de vida, mas, ao
contrário do que nos mostra a publicidade, é algo muito raro de acontecer.
A vida hoje em dia é mais longa. O que preencheu mais esse
espaço? O tédio. Aumentou o tempo em que ficamos velhos. Não só fisicamente,
mas espiritualmente também. Por isso
mesmo afirmamos que a rapaziada parece mais envelhecida, já que temos muito
tempo e pouca coisa a fazer.
Eu tenho a esperança, mas também tenho o cansaço. Qual vai
prevalecer, na medida em que me torno cada vez mais experiente e,
consequentemente, racional?
Temos hoje uma guerra dialética, que, do lado da tese nos obriga a
esquecer que somos velhos; e do lado da antítese, que devemos nos cuidar intensamente
para viver bem na velhice. O grande problema é que a síntese é quase
impossível. A construção social do “novo velho” quer vê-lo eternamente
produtivo, cheio de expectativas e projetos, mas não pode deixar de
reconhecê-lo como um ser limitado, cheio de necessidades especiais. E temos,
dentre outras coisas, o estereótipo de velho ranzinza. Nem sempre a chatice que costumamos atribuir aos
velhos significa uma característica que todos terão no futuro. Pode ser uma
dor, um incômodo ou simplesmente a sensação de que a morte se aproxima, sem muitos
instrumentos para evitá-lo, a não ser cápsulas, comprimidos, pílulas, drágeas,
ampolas... E mesmo isso tudo não combate a sensação de ser imprestável, de se
tornar um incômodo, um peso a ser carregado. Está aí o medo dos brinquedos de
serem abandonados, de não servir mais justamente para aquilo que foram feitos.
Haverá sofrimento pior?
É neste
sentido que podemos encaixar nosso pensamento ao de Miguel de Unamuno,
filósofo, poeta e romancista espanhol que viveu na transição do século XIX para
o século XX. De tendência claramente existencialista, Unamuno entendia que a
característica mais própria do ser humano é a dor. Essa dor não é meramente
física, porque os animais também a sentem, mas uma dor que reside na alma. O
homem é o único ser que tem consciência de sua finitude, aliada à incerteza de
quando ela se dará. O animal se impacienta pela falta de comida, pelo
desconforto da temperatura, e por qualquer outro fator extrínseco. Sem estes,
não há dor. Já o homem tem o sofrimento a lhe permear a existência, ainda que
nenhum fator externo esteja presente para lhe aborrecer. E, com isso, o homem
nunca é completamente feliz.
Mas esta
conclusão não é apenas ontológica. O sofrimento nos humaniza porque ele tem
também uma dimensão ética. E isso reside no fato de reconhecermos que o mesmo
sofrimento e noção de finitude estão no outro, e não somente em nós. O que nos
solidariza é esse objeto de irmandade. Somos iguais na morte e no caminho a
ela. Esse movimento fica claro no final da trilogia (que, espero, conclua-se
por aí – não entendo que haja mais a ser dito), quando, ainda relutante, Andy
entrega seu boneco à menina da instituição. Neste momento, ele vê na menina o
ponto em comum que há entre os dois. Também ela crescerá, também ela morrerá e
renascerá outras vezes, sentindo todos os problemas de cada mudança de fase na
vida, e também ela sofrerá, assim como todo o restante da humanidade, em todos
os seus dias.
Recomendações diversas:
Obviamente, todos os filmes da trilogia:
GUGGENHEIM,
Ralph; ARNOLD, Bonnie; LASSETER, John. Toy Story – Um mundo de aventuras. Filme. São Paulo: Disney Pixar
Brasil, 1995. 81 min. Colorido.JACKSON, Karen; PLOTKIN, Helene; LASSETER, John. Toy Story 2. Filme. São Paulo: Disney Pixar Brasil, 1999. 92 min. Colorido.
LASSETER,
John; UNKRICH, Lee. Toy Story 3. Filme.
São Paulo: Disney Pixar Brasil, 2010. 103 min. Colorido.
E também o capolavoro
de Unamuno, muito bom de se ler, apesar de não ser bom fazê-lo em momentos de
baixo astral:UNAMUNO, Miguel de. Do sentimento trágico da vida. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
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