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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Estórias de brinquedos e a dor de existir

Olá!

Os períodos de férias (1) são bastante previsíveis, ao menos para quem não é agraciado por fartas disponibilidades monetárias. A televisão brasileira invariavelmente resolve tirar a poeira de algumas “fitas”, e dá-lhe Casamento Grego, Conta Comigo, Curtindo a Vida Adoidado e assim sucessivamente. Um dos habituês dessa reciclagem é a série Toy Story, que em seus três episódios conta a história de alguns brinquedinhos e suas aventuras ocorridas na ausência de seu dono. É um desenho que fez parte da minha, digamos, infância paterna. Assisti a danada inúmeras vezes, em companhia das crianças, a ponto de praticamente decorá-la.

Se gosto ou não? Ah, é legalzinho, bem agitado. Tecnicamente não há nada a debater. A produção é primorosa e muitíssimo bem cuidada, como é costume da dupla Disney-Pixar. Cada detalhe é estudado à exaustão, e somente algum crítico muito chato pode contestar a sua qualidade. É também uma aventura alucinante, que prende a atenção ao máximo, com um roteiro bem criativo, é preciso admitir. Já com relação ao quesito “filosofia”, bem... Podemos discutir bastante seu valor, mas no caso em tela, há observações bastante interessantes a fazer. Seu foco central é uma cantilena sobre o valor da amizade, tudo senso comum. Dá muita agilidade e significado, mas não precisamos colocar o assunto sobre a mesa da maneira que foi tratado no desenho. Valor de amizade é algo muito mais complexo e espinhoso do que foi exposto. Passemos.

Onde a obra acerta em cheio é na maneira como lida com a passagem do tempo. Mas, para isso, é preciso ser vista em seu todo. Assistir as partes isoladamente não ajuda a chegar nesse nível de compreensão. E, apesar de se tratar de um desenho obviamente destinado ao público infantil, e por conta disso estar repleto de carapaças para aliviar a crueza que o assunto poderia atingir, o fato é que ele está salpicado de melancolia. Se essa foi a ideia dos realizadores, estão de parabéns.


Percebam que o pano de fundo da ação da aventura se dá nas transformações do menino Andy. Tudo começa na sua infância menor, no primeiro episódio, passando pela puberdade da segunda parte e chegando às portas da vida adulta, com sua ida para a faculdade. Essa transição, dado o fato de que não é o foco principal do filme, é bastante lenta, espraiada em alguns poucos pontos. Mas ela é bastante marcante porque, ao contrário do papo flácido sobre a amizade, coloca em evidência a mudança da relação que o protagonista tem com o mundo ao seu redor. Levando em conta que as crianças estadunidenses tem uma maneira um pouco mais individualista em suas brincadeiras, podemos achar um tanto estranho o apego tão forte com seus brinquedos, mas não podemos esquecer que nosso modus vivendi também vem se aproximando disso. É, talvez não estranhemos mais tanto assim. E a relação que o menino tem com os seus brinquedos são um espelho e uma alegoria do que ele terá com o outro, ou seja, dão a medida de qual será sua alteridade.

Em um determinado momento, vemos que os brinquedos estão guardados no sótão, o que é uma bela metáfora: a eterna existência através das recordações. Mas também representam a aposentadoria de um modo de ser específico, que é superado pelo aumento da idade. O que mantém os brinquedos guardados é o medo – medo da quebra de vínculo com o passado, com algo que ainda reside em nós, mas que já não nos serve. Não queremos limpar o sótão, mas temos a necessidade de fazê-lo, porque não há espaço suficiente para conservar nosso arsenal de experiência em nossa vida presente, e também não há conveniência social em se manter preso ao tempo em que éramos crianças. O passado precisa morrer para que tenhamos diante de nós a possibilidade de transformação. A vida é cíclica. Como o amor na bela música de Gilberto Gil que me aproprio e improviso nessa hora, a vida “tem que morrer prá germinar”.

Essa alternância em que percebemos os ciclos de morte e novo nascimento é uma constante especialmente rica a partir da juventude, e por isso é possível perceber o porquê da inconstância e rebeldia tão típicas desta fase. É a descoberta e a tentativa de afirmação como adultos, constituindo um conjunto de mudanças e retornos de rumo, uma coisa profundamente angustiante de fins e começos. Cada contingência é elemento motivador para que se vislumbre uma nova vida, que nem sempre pode ser elevada aos patamares da felicidade, às vezes muito pelo contrário. Afinal de contas, costumamos associar a morte à tristeza e o nascimento à alegria, à esperança, à renovação e etc., mas há momentos em que é preciso deixar o romantismo um pouco de lado, e perceber que o parto efetivamente é dor.
Quando digo isso, não penso exclusivamente na mãe, que passa por cólicas poderosas e tem suas carnes rasgadas para a passagem do neófito contribuinte. Esse é o ponto mais óbvio. Mas, para a criança que nasce, imagino que seja o rito de passagem mais dolorido de todos, e é justamente o primeiro. O nascituro está lá, quietinho, quentinho, envolto por água, escuridão e silêncio, quando, não mais que de repente, uma série de eventos sem explicação passa a se suceder. Ele já não é um hóspede, é um corpo estranho. E, como tal, deve ser expulso. Passa a ser comprimido, cada vez mais, até ser embocado em um canal apertadíssimo, que tenta esmagar sua cabeça. É despejado em um ambiente frio, sob uma luz cegante, todo melecado de sangue de sua própria mãe (bem, ele ainda nem sabe disso), já distanciado de todo seu ambiente de proteção anterior. Seu primeiro sinal efetivo de vida não é um sorriso, um olhar de ternura, um gesto de carinho, nada disso. O que indica que uma criança está viva é seu choro. Um esgar espasmódico, extremamente dolorido, das paredes dos pulmões que se descolam, como se fosse fita velcro. A vida começa e acaba com as lágrimas, com o ruído desesperado do próprio choro no princípio, com o ruído desesperado do choro alheio no derradeiro. A experiência do parto só pode ser suportada porque é esquecida, ao menos conscientemente.

Carreguei propositalmente nas tintas para dar mais dramaticidade ao texto, mas o fato é que, ao associar a alegoria do parto e da morte aos diferentes ciclos da vida, que ocorrem em grande quantidade na fase da adolescência, devemos reconhecer que algumas dessas viradas podem ser muito dolorosas, ainda que canalizadas para algum símbolo, como o boneco que se reluta em abandonar.
Explicando melhor. Quando o jovem Andy se vê indeciso em se separar do seu boneco de cowboy, não está preocupado com algum tipo de “ingratidão”, mas com a quebra de vínculos com seu passado. Teme a morte definitiva de sua infância e, principalmente, a incerteza de seu novo parto rumo à vida adulta. Na prática, ele não brinca mais com o personagem Woody. Ele não sonha mais com aventuras montadas a cavalo. Apenas o mantém como mantemos retratos na parede, para que tenhamos uma sensação de pertença universal no tempo, e para que, de alguma forma, o novo parto não represente uma morte completa. Temos medo demais da morte para que tenhamos tantas delas durante a vida.

Temos a ferramenta da memória, mas não a julgamos suficiente. Ela não é concrescível, materializável. Olhar uma foto ou um objeto é apenas uma celebração do resgate do passado, não de sua nova existência. Podemos comemorar uma data importante, um aniversário, um centenário, mas o fato é que o objeto rememorado não está mais presente. O tempo passou e já não somos crianças, já não somos jovens, somos velhos. Isso nos enche de pavor, e por isso é complicado jogar fora as coisas que nos são caras.
Olhando por outro viés, não estou aqui defendendo nenhuma desvinculação, pelo contrário. Adoro fotografias, tenho vááááários livros de memória paulistana, gosto de biografias, tenho alguns objetos meus da época de bebê, bem como de meus filhos e de minha esposa. Sou capaz de ficar horas e horas contando histórias da minha vida, da minha infância e juventude, meus afilhados sabem muito bem disso. É que o diabo da desvinculação já está escrito no momento mesmo em que temos dó de jogar qualquer porcaria fora. É uma dor interior, de não sermos mais o que éramos, e de termos muitas dúvidas do que ainda vamos ser.

E aí temos o grande problema da velhice. Temos um milhão de subterfúgios para renegar o fato de que estamos envelhecendo. Eufemismos como “terceira idade”, “era da experiência”, o horroroso termo “melhor idade” servem para disfarçar as rugas inevitáveis. Temos botox, peeling, plásticas. A vida que era compactada em 50 ou 60 anos está alastrada para 80, 90. Isso é bom enquanto há qualidade de vida, mas, ao contrário do que nos mostra a publicidade, é algo muito raro de acontecer.
A vida hoje em dia é mais longa. O que preencheu mais esse espaço? O tédio. Aumentou o tempo em que ficamos velhos. Não só fisicamente, mas espiritualmente também.  Por isso mesmo afirmamos que a rapaziada parece mais envelhecida, já que temos muito tempo e pouca coisa a fazer.

Eu tenho a esperança, mas também tenho o cansaço. Qual vai prevalecer, na medida em que me torno cada vez mais experiente e, consequentemente, racional?
Temos hoje uma guerra dialética, que, do lado da tese nos obriga a esquecer que somos velhos; e do lado da antítese, que devemos nos cuidar intensamente para viver bem na velhice. O grande problema é que a síntese é quase impossível. A construção social do “novo velho” quer vê-lo eternamente produtivo, cheio de expectativas e projetos, mas não pode deixar de reconhecê-lo como um ser limitado, cheio de necessidades especiais. E temos, dentre outras coisas, o estereótipo de velho ranzinza. Nem sempre a chatice que costumamos atribuir aos velhos significa uma característica que todos terão no futuro. Pode ser uma dor, um incômodo ou simplesmente a sensação de que a morte se aproxima, sem muitos instrumentos para evitá-lo, a não ser cápsulas, comprimidos, pílulas, drágeas, ampolas... E mesmo isso tudo não combate a sensação de ser imprestável, de se tornar um incômodo, um peso a ser carregado. Está aí o medo dos brinquedos de serem abandonados, de não servir mais justamente para aquilo que foram feitos. Haverá sofrimento pior?

É neste sentido que podemos encaixar nosso pensamento ao de Miguel de Unamuno, filósofo, poeta e romancista espanhol que viveu na transição do século XIX para o século XX. De tendência claramente existencialista, Unamuno entendia que a característica mais própria do ser humano é a dor. Essa dor não é meramente física, porque os animais também a sentem, mas uma dor que reside na alma. O homem é o único ser que tem consciência de sua finitude, aliada à incerteza de quando ela se dará. O animal se impacienta pela falta de comida, pelo desconforto da temperatura, e por qualquer outro fator extrínseco. Sem estes, não há dor. Já o homem tem o sofrimento a lhe permear a existência, ainda que nenhum fator externo esteja presente para lhe aborrecer. E, com isso, o homem nunca é completamente feliz. 
Mas esta conclusão não é apenas ontológica. O sofrimento nos humaniza porque ele tem também uma dimensão ética. E isso reside no fato de reconhecermos que o mesmo sofrimento e noção de finitude estão no outro, e não somente em nós. O que nos solidariza é esse objeto de irmandade. Somos iguais na morte e no caminho a ela. Esse movimento fica claro no final da trilogia (que, espero, conclua-se por aí – não entendo que haja mais a ser dito), quando, ainda relutante, Andy entrega seu boneco à menina da instituição. Neste momento, ele vê na menina o ponto em comum que há entre os dois. Também ela crescerá, também ela morrerá e renascerá outras vezes, sentindo todos os problemas de cada mudança de fase na vida, e também ela sofrerá, assim como todo o restante da humanidade, em todos os seus dias.

Cinquentinha tá bom demais, né? Sessenta, no máximo.

(1) Comecei a escrever este texto no verão de 2012!!! Foi ficando, ficando, ficando... e só nos últimos dias resolvi olhar para ele, adormecido que estava em um canto esquecido do meu pen drive. Faz parte. Mas, desde já, informo que é o texto que ficou mais tempo mofando para publicar.

Recomendações diversas:

Obviamente, todos os filmes da trilogia:
GUGGENHEIM, Ralph; ARNOLD, Bonnie; LASSETER, John. Toy Story – Um mundo de aventuras. Filme. São Paulo: Disney Pixar Brasil, 1995. 81 min. Colorido.
JACKSON, Karen; PLOTKIN, Helene; LASSETER, John. Toy Story 2. Filme. São Paulo: Disney Pixar Brasil, 1999. 92 min. Colorido.

LASSETER, John; UNKRICH, Lee. Toy Story 3. Filme. São Paulo: Disney Pixar Brasil, 2010. 103 min. Colorido.

E também o capolavoro de Unamuno, muito bom de se ler, apesar de não ser bom fazê-lo em momentos de baixo astral:

UNAMUNO, Miguel de. Do sentimento trágico da vida. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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