Já falei bastante sobre obras de arte neste espaço, mas nunca me referi à pintura, não é mesmo? Pois vou fazê-lo agora.
No sábado retrasado, estava fazendo uma costumeira
escavação em um sebo perto de casa, e acabei encontrando alguns livros de
arte a preços honestos. Como o dinheiro é pouco mas a vontade é
imperiosa, acabei por adquirir um catálogo de pranchas da coleção Taschen, com
algumas obras de meu pintor favorito: Henry de Toulouse-Lautrec. Acabei
encontrando também uma pequena biografia, e aumentei o rombo do orçamento.
Lautrec talvez não seja o máximo de talento técnico
que conheço. Caras como Velásquez, Renoir, Caravaggio, Monet e outros podem até
ser mais hábeis no trato com as tintas. Mas há dois grandes encantos na obra de
nosso querido anão: a capacidade de transformar anúncios em obras de arte e a
visão social sem preconceitos de um submundo que, se ainda hoje é um dos mais
excluídos, tanto mais não era em fins do século XIX: a prostituição.
É preciso contar algumas coisas da vida do baixinho.
Ele nasceu de família muito rica, mas tinha uma compleição frágil. Dois tombos
na puberdade fizeram com que suas pernas parassem de crescer e se deformassem.
Como isso o impediu de se lançar em aventuras mais ousadas, passou a se dedicar
mais profundamente aos seus dois maiores talentos: a pintura e a vida noturna,
com suas consequentes bebedeiras (sua aristocrática família nunca apreciou
muito este segundo dom).
Lautrec praticamente armou acampamento (e barracas!)
nos cabarés da região boêmia de Paris, um bairro chamado Montmartre. Lá, não
apenas fruiu, mas conviveu com as prostitutas, dançarinas, beberrões,
frequentadores e outros personagens deste mundo alternativo. O seu olhar agudo
e sua sensibilidade mostrou o quanto de humano existia não só no lado colorido
dos cabarés, suas danças e luzes, mulheres exuberantes e homens divertidos, mas
exibiu também o dia-a-dia comum dos bastidores.Lautrec só se colocou um limite, que no final das contas é a prova maior de sua consciência social: não retratou aquilo que mais caracteriza a prostituição em si mesma, que é o ato sexual. Suas telas retratam esse mundo e seus respectivos bastidores em sua plenitude, demonstrando a humanidade contida em seus personagens, incluindo alegria e decepção, performance e cansaço, realidade e ilusão, esbanjamento e mazela, tornando sua obra dialética e social.
É difícil enquadrar seu estilo. Certamente recebeu
influências do impressionismo, grande admirador que era de Monet, Renoir, Degas
e companhia bela. Também trafegou pelo expressionismo e fez uso das técnicas
orientais de contorno e cor. Suas telas reproduzem a luz viva dos ambientes
fechados, não se importando muito com técnicas de claro-escuro ou com nuances
ambientais. Seu interesse é mostrar os rostos da forma que efetivamente são,
sem disfarces. Empregou largamente a litografia, de onde extraía seus famosos
cartazes, e deu à publicidade um significado novo, misturando a idéia a ser
transmitida com arte.
Lautrec, apesar de sua origem aristocrática, cuidou
de espelhar uma Paris que, apesar de seus encantos, tinha também suas
periferias e excluídos. Vamos analisar brevemente alguns de seus trabalhos,
iniciando pela extraordinária tela La
Blanchisseuse, de 1887:
Partamos agora para o cabaré. Vamos analisar a cena
retratada em Au Bal du Moulin de la
Galette, de 1889:
Vamos agora para o lado de trás da cena. Vamos
observar a tela Rue des Moulins,
L’inspection médicale, de 1894:
Por fim, vamos observar as técnicas publicitárias de
nosso pequeno gênio. Vamos ver o que o cartaz Moulin Rouge – La Goulue, de 1891, tem a nos dizer:
Toulouse-Lautrec tem uma rara capacidade de
constituir imagens mentais e de conseguir reproduzi-las em seus trabalhos. Um
pequeno flash é suficiente para que o artista consiga transpor-nos para o
centro da cena. Somos partícipes do desenrolar da performance, também nós
estamos no palco, e com isso conseguimos deduzir precisamente o clima daquele
ambiente. Ao contrário da práxis publicitária de então, constatamos que as
palavras são poucas, limitando-se ao nome do cabaré e da atração. Elas são
desnecessárias, não podem informar mais do que já está exposto.
O que mais me causa admiração em nosso pequeno
francês é seu talento para retratar a alegria sem esquecer das misérias, ou,
invertendo a lógica, ser testemunha das mazelas sociais que compõem um mundo
exuberante. Nesse sentido, Lautrec consegue constituir uma sociologia dos
bordéis, onde um universo de aparências é exibido em todos os seus estratos , a
forma como é construído com tijolos moldados na dor de cada um.
O baixinho, ao mesmo tempo, denuncia e celebra a
vida. A sensibilidade dos artistas geralmente constitui armadilha contra si
mesmos, por conta do inconformismo e ausência de sentimento de pertença e lugar
no mundo. Van Gogh se matou, e Gauguin só não fez o mesmo porque a quantidade
de veneno que ingeriu foi tanta que o fez vomitar. Lautrec preferiu viver
intensamente a vida, o que ajudou em seu fim precoce aos 34 anos, mas, mesmo
tendo problemas físicos reais, que o fizeram andar apoiado a uma bengala desde
sua juventude e o impôs grandes limitações de acesso, resolveu que a existência
vale a pena, o que foi francamente demonstrado em sua obra.
Recomendações:
O MASP possui algumas obras de Toulouse-Lautrec. É
um programa que vale muito a pena, pela riqueza estética que se pode presenciar
em um dos cartões postais de nossa cidade. O endereço é o seguinte:
MASP – Museu de Arte de São Paulo. Avenida Paulista,
1578 – Bela Vista –São Paulo/SP
A coleção Taschen é um primor de capricho. Além das
belas pranchas reproduzidas em alta qualidade, os textos que as acompanham são
muito esclarecedores.
NERET, Gilles. Toulouse-Lautrec. Rio de Janeiro:
Taschen, 1990.
Também existe uma pequena biografia contendo algumas
pranchas em menor formato:
HENRI DE TOULOUSE-LAUTREC. Coleção Mestres da
Pintura. São Paulo: Abril, 1977.
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