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quinta-feira, 2 de maio de 2013

A alegria e a exclusão na obra de Toulouse-Lautrec

Olá!

Já falei bastante sobre obras de arte neste espaço, mas nunca me referi à pintura, não é mesmo? Pois vou fazê-lo agora.

No sábado retrasado, estava fazendo uma costumeira escavação em um sebo perto de casa, e acabei encontrando alguns livros de arte a preços honestos. Como o dinheiro é pouco mas a vontade é imperiosa, acabei por adquirir um catálogo de pranchas da coleção Taschen, com algumas obras de meu pintor favorito: Henry de Toulouse-Lautrec. Acabei encontrando também uma pequena biografia, e aumentei o rombo do orçamento.

Lautrec talvez não seja o máximo de talento técnico que conheço. Caras como Velásquez, Renoir, Caravaggio, Monet e outros podem até ser mais hábeis no trato com as tintas. Mas há dois grandes encantos na obra de nosso querido anão: a capacidade de transformar anúncios em obras de arte e a visão social sem preconceitos de um submundo que, se ainda hoje é um dos mais excluídos, tanto mais não era em fins do século XIX: a prostituição.

É preciso contar algumas coisas da vida do baixinho. Ele nasceu de família muito rica, mas tinha uma compleição frágil. Dois tombos na puberdade fizeram com que suas pernas parassem de crescer e se deformassem. Como isso o impediu de se lançar em aventuras mais ousadas, passou a se dedicar mais profundamente aos seus dois maiores talentos: a pintura e a vida noturna, com suas consequentes bebedeiras (sua aristocrática família nunca apreciou muito este segundo dom).
Lautrec praticamente armou acampamento (e barracas!) nos cabarés da região boêmia de Paris, um bairro chamado Montmartre. Lá, não apenas fruiu, mas conviveu com as prostitutas, dançarinas, beberrões, frequentadores e outros personagens deste mundo alternativo. O seu olhar agudo e sua sensibilidade mostrou o quanto de humano existia não só no lado colorido dos cabarés, suas danças e luzes, mulheres exuberantes e homens divertidos, mas exibiu também o dia-a-dia comum dos bastidores.

Lautrec só se colocou um limite, que no final das contas é a prova maior de sua consciência social: não retratou aquilo que mais caracteriza a prostituição em si mesma, que é o ato sexual. Suas telas retratam esse mundo e seus respectivos bastidores em sua plenitude, demonstrando a humanidade contida em seus personagens, incluindo alegria e decepção, performance e cansaço, realidade e ilusão, esbanjamento e mazela, tornando sua obra dialética e social.

É difícil enquadrar seu estilo. Certamente recebeu influências do impressionismo, grande admirador que era de Monet, Renoir, Degas e companhia bela. Também trafegou pelo expressionismo e fez uso das técnicas orientais de contorno e cor. Suas telas reproduzem a luz viva dos ambientes fechados, não se importando muito com técnicas de claro-escuro ou com nuances ambientais. Seu interesse é mostrar os rostos da forma que efetivamente são, sem disfarces. Empregou largamente a litografia, de onde extraía seus famosos cartazes, e deu à publicidade um significado novo, misturando a idéia a ser transmitida com arte.
Lautrec, apesar de sua origem aristocrática, cuidou de espelhar uma Paris que, apesar de seus encantos, tinha também suas periferias e excluídos. Vamos analisar brevemente alguns de seus trabalhos, iniciando pela extraordinária tela La Blanchisseuse, de 1887:

Nesta obra, de traço eminentemente impressionista, Lautrec retrata uma engomadeira no transcurso de seu trabalho. Pela sua posição, não conseguimos focar diretamente o rosto da moça em questão, mas é possível perceber sua beleza. No entanto, notamos toda a sua exaustão, derivada de um trabalho extenuante a que eram submetidas as classes mais humildes. Seu olhar se volta para a luminosidade vinda da janela, mas suas mãos desgastadas e sua roupa em flagrante desalinho denunciam que essa luz não lhe traz esperança, mas apenas a consciência de sua pouca liberdade. Os móveis toscos e o aspecto de caverna que possui o cômodo onde exerce seu ofício emolduram esse aspecto pobre e seus parcos recursos. Os cabelos da engomadeira velam seu rosto. Há uma intenção em demonstrar um muro entre a menina retratada e a pessoa que a observa. Esse muro é social e psicológico; não há possibilidade de desvelar seus pensamentos nem de decifrar o quanto sua pobreza afeta seu caráter, mas percebe-se com evidência o exaurimento de sua vontade.

Partamos agora para o cabaré. Vamos analisar a cena retratada em Au Bal du Moulin de la Galette, de 1889:

Aqui vemos um Lautrec amadurecido em sua técnica de dupla perspectiva. A direção em que foi observado o balcão e as linhas do assoalho constituem na tela dois pontos de fuga, que delineiam a multidão dançante no fundo do cenário, gerando um enquadramento compacto. No primeiro plano, logo atrás do balcão, podemos focar o rosto das personagens que optaram por beber ou repousar. Em cada um deles, uma história diferente para contar. Alguns dirigem sua atenção para o baile, enquanto uma mulher lança seu olhar para fora da cena principal, ou mesmo do quadro. Estão claramente na posição de observadores, e formam a primeira fila de quem aprecia a obra em questão, propondo uma interação com quem está do lado de fora – no caso, nós.

Vamos agora para o lado de trás da cena. Vamos observar a tela Rue des Moulins, L’inspection médicale, de 1894:

Aqui podemos analisar uma cena comum que insere firmemente as prostitutas em um submundo.  As visitas de inspeção sanitária eram tremendamente comuns e invasivas, e o principal objetivo desta rotina era mais verificar a saúde genital das prostitutas do que propriamente as instalações físicas dos estabelecimentos. Desta forma, flagrantemente vemos as mulheres colocadas na condição de objetos. Lautrec toma partido desta condição ao retratar a situação humilhante a que eram submetidas essas pessoas, ao verem suas intimidades devassadas. Perceba-se como a tela é estruturada a denunciar uma cena que se assemelha à uma operação de fiscalização de rebanho, com as meretrizes alinhadas em filas, de saias já devidamente erguidas. Apesar disso, seus rostos transparecem um certa altivez, como que já endurecidas pelo hábito. Esta é a prova do lado cínico da sociedade (que eu já havia observado neste post). A inspeção não levava em conta as necessidades das meretrizes, mas apenas garantir a boa saúde de seus frequentadores, em geral membros da classe média.

Por fim, vamos observar as técnicas publicitárias de nosso pequeno gênio. Vamos ver o que o cartaz Moulin Rouge – La Goulue, de 1891, tem a nos dizer:

Em um primeiro olhar, é uma composição aparentemente simples, onde vemos três elementos básicos: a jovem vedete Louise Weber, conhecida como La Goulue (jovem mesmo – tinha 16 anos à época!), está no centro do cartaz, em pleno desenvolvimento de sua performance. Em papel coadjuvante, temos em primeiro plano a figura quase fantasmagórica de Valentin, le Désossé, um dos melhores bailarinos de Montmartre. Ao fundo, a turba de anônimos representados pelas suas silhuetas, assistindo atentamente o desenrolar da apresentação. Lautrec usa e abusa das técnicas de contorno oriental e da luz chapada. O cartaz foi desenvolvido em suporte litográfico, de modo a permitir várias reimpressões (vejam os pulos que o artista precisava dar para levar a cabo seu trabalho naqueles tempos). Essa simplicidade de composição ocultava uma nova teoria publicitária, que é utilizada largamente nos dias de hoje: uma imagem fala mais do que mil palavras.

Toulouse-Lautrec tem uma rara capacidade de constituir imagens mentais e de conseguir reproduzi-las em seus trabalhos. Um pequeno flash é suficiente para que o artista consiga transpor-nos para o centro da cena. Somos partícipes do desenrolar da performance, também nós estamos no palco, e com isso conseguimos deduzir precisamente o clima daquele ambiente. Ao contrário da práxis publicitária de então, constatamos que as palavras são poucas, limitando-se ao nome do cabaré e da atração. Elas são desnecessárias, não podem informar mais do que já está exposto.
O que mais me causa admiração em nosso pequeno francês é seu talento para retratar a alegria sem esquecer das misérias, ou, invertendo a lógica, ser testemunha das mazelas sociais que compõem um mundo exuberante. Nesse sentido, Lautrec consegue constituir uma sociologia dos bordéis, onde um universo de aparências é exibido em todos os seus estratos , a forma como é construído com tijolos moldados na dor de cada um.

O baixinho, ao mesmo tempo, denuncia e celebra a vida. A sensibilidade dos artistas geralmente constitui armadilha contra si mesmos, por conta do inconformismo e ausência de sentimento de pertença e lugar no mundo. Van Gogh se matou, e Gauguin só não fez o mesmo porque a quantidade de veneno que ingeriu foi tanta que o fez vomitar. Lautrec preferiu viver intensamente a vida, o que ajudou em seu fim precoce aos 34 anos, mas, mesmo tendo problemas físicos reais, que o fizeram andar apoiado a uma bengala desde sua juventude e o impôs grandes limitações de acesso, resolveu que a existência vale a pena, o que foi francamente demonstrado em sua obra.
Recomendações:
O MASP possui algumas obras de Toulouse-Lautrec. É um programa que vale muito a pena, pela riqueza estética que se pode presenciar em um dos cartões postais de nossa cidade. O endereço é o seguinte:
MASP – Museu de Arte de São Paulo. Avenida Paulista, 1578 – Bela Vista –São Paulo/SP

A coleção Taschen é um primor de capricho. Além das belas pranchas reproduzidas em alta qualidade, os textos que as acompanham são muito esclarecedores.
NERET, Gilles. Toulouse-Lautrec. Rio de Janeiro: Taschen, 1990.

Também existe uma pequena biografia contendo algumas pranchas em menor formato:
HENRI DE TOULOUSE-LAUTREC. Coleção Mestres da Pintura. São Paulo: Abril, 1977.

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