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quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Sobre políticos e sofistas, com direito a um loooooongo voto de desagravo

Olá!

Já perceberam como nos tempos de eleição a guerra de argumentos segue em um crescente, até chegar ao ponto de causar náuseas? Esse é um dos principais motivos pelos quais é praticamente impossível manter a serenidade para fazer escolhas bem ponderadas. Isso porque se fala muito e diz-se muito pouco. Quem não gostaria de ouvir as propostas de governo e vê-las debatidas por especialistas de forma imparcial? Infelizmente, o que temos são propagandas eleitorais e debates em que mais se procura depreciar os adversários do que propriamente discutir propostas. Todos os candidatos de ponta fazem isso, insistentemente, por mais que digam o contrário. E, com honorabilíssimas exceções, são seguidos nessa conduta pela grande imprensa, que preferem esse ou aquele, e colaboram, subrepticiamente, em suas campanhas.
Esse é um dos usos mais perniciosos que se faz da linguagem, o de engabelar. Mentir com cara de verdade. Esse jogo retórico busca mais despistar do que propriamente esclarecer. Vou dar dois exemplinhos bem básicos, extraídos da última eleição presidencial (um da oposição, outro da situação, para que ninguém diga que eu mesmo estou aplicando a regra – aliás, como vocês podem bem perceber, esperei o sufrágio ocorrer para soltar este post).

O que temos aí em cima? Duas candidatas com calhamaços à sua frente e um terceiro, sem nenhum papel na mesa. O que isso quer dizer, a rigor? Nada, absolutamente nada. A ideia aqui é que o Aécio é tão bem preparado que não precisa do apoio de nenhum material para guiar seu discurso. Podemos fazer as mais variadas especulações: que ele não tem fontes para basear suas opiniões, que ele é soberbo, que ele não tem argumentos calcados em números, que ele os esqueceu e está tentando se arranjar, pode ser que ele tenha papéis mas não está utilizando-os no bloco, pode ser algo meramente proposital para sair bonito na foto, pode ser qualquer uma dessas hipóteses ou nenhuma delas. Bom discurso o Maluf tem, o Collor tem, o Lula tem, o Brizola tinha, o Quércia tinha... E normalmente dispensam ou dispensavam papéis. Será responsável falar de programa de governo sem tê-lo à sua frente? Quando vou a uma reunião, procuro levar todo o material necessário, para não ser pego de surpresa, para poder comprovar minhas afirmações. Não há absolutamente nada de errado nisso, mas o pessoal usa essa imagem como se demonstrasse alguma coisa. O que essa informação diz, além de ser um argumento de tiete? No máximo, que o Aécio é bem preparado para debates, e não obrigatoriamente para governar. Vamos para outra:

O que temos aqui é um pouco diferente: uma grande dose de maldade. Isso tudo porque sabemos que há uma polêmica sobre uma suposta agressão feita a uma namorada pelo Aécio. Não há nenhuma comprovação deste fato, mas a pergunta é perniciosa. Ela não serve propriamente para acusar ou para conhecer a posição do adversário. A Dilma fez essa pergunta para lembrar à audiência da acusação que pesa contra seu oponente. É uma tática em que se causa o embaraçamento do contendor, seja ele culpado ou inocente, porque é um assunto delicado, que aflige muita gente no país e que torna sua imagem absolutamente antipática, justamente em cima de um fato não provado. A pergunta poderia sido formulada de uma forma diferente, menos irônica, mais direta, mas isso tiraria o efeito descrito acima.
Por fim, pincei uma frase dita pela candidata Dilma ao candidato Aécio no primeiro debate do segundo turno, feito na Rede Bandeirantes. Não há aqui nenhum juízo de valor, uso a frase apenas para fins didáticos. Ela diz o que segue:
“O senhor perdeu as eleições em Minas Gerais. Pode fazer qualquer outro sofisma, mas perdeu. Isso é inconteste.”
Vejam que eu frisei muito a palavra sofisma. Esta palavra significa dar uma chicana no tema, uma contornada, uma manipulada nas palavras para tentar justificar algo através de argumentos que não se calcam em fatos. Sofismas são usados à beça em campanhas eleitorais, mas não só nelas. Utilizamos sofismas sempre que precisamos aplicar aquele famoso “veja bem” no atraso de entrega de um relatório, no “perdido” que demos no boteco com os amigos, na louça que não lavamos para a patroa, e via discorrendo. Ou seja, é a linguagem utilizada a serviço da falsidade.
A palavra deriva diretamente dos sofistas, a quem me referi e prometi trazer mais elucidações neste texto aqui. Até o século XX, esta palavra era praticamente sempre tomada no sentido de enganador, de vigarista ou de mercenário. Culpa da tríade Sócrates-Platão-Aristóteles, que falava muito mal deles. Somente com estudos mais específicos foi possível desmistificar essa imagem negativa, e colocar os filósofos sofistas no lugar merecido, contrabalançando seus defeitos com suas contribuições.
Para entendermos como foi possível o surgimento dos sofistas, precisamos lembrar, em primeiro lugar, que o primeiro pensamento de cunho filosófico tinha a preocupação de explicar os substratos materiais da composição do universo, ou seja, tentar compreender do que o cosmos é feito. Por isso mesmo, quase todos os grandes filósofos pré-socráticos escreveram tratados De Natura, cada um com sua tese consubstanciada sobre a natureza.  Outro questionamento dizia respeito à dúvida sobre a mutabilidade dos seres. Quem estaria correto: Heráclito e seu eterno fluxo ou Parmênides e seu Ser uno e mutável apenas nas aparências?
O problema é que esse divagar todo já não tinha paralelo com a sociedade grega da forma com a qual esta vinha se desenvolvendo. Depois de todas as observações dos filósofos naturalistas, especialmente após as definições atomísticas de Lêucipo e Demócrito, as fontes de conhecimento passaram a ser associadas à razão, perdendo seu caráter místico e sacralizado. Já não era o sacerdote ou o poeta cantado por seus aedos que eram os sábios, mas aquele que procurava na própria Terra as explicações para suas aporias. Além disso, as soluções propostas pelos naturalistas poderiam ser geniais, mas não eram suficientes, e muitas vezes eram contraditórias entre si. Vejam o próprio átomo pensado pelos mestres de Abdera: a conclusão a que chegaram era tão boa que vale, com as devidas reservas, até os dias de hoje, mas essas mínimas partículas são frutos unicamente do pensamento, e não havia campo teórico ou experimental suficiente para demonstrá-las. Com isso, encontramos neste período uma posição cada vez mais afastada das certezas por parte dos pensadores.
Mais ainda. A Grécia vivia o período de ascensão da democracia, e os cidadãos já não tinham necessidade de olhar para o céu e se perguntar o porquê das estrelas. Precisavam pensar menos no universo e mais no seu lugar no universo.
A democracia grega não se assemelhava ao que hoje conhecemos e adotamos como sistema político. Hoje em dia, temos a democracia representativa, que consiste em eleger representantes que saibam traduzir nossos anseios. São os deputados, senadores e etc. No sistema democrático grego, tínhamos a modalidade direta, que era traduzida por reuniões na ágora, a praça central das cidades, onde os cidadãos manifestavam seus interesses e tratavam de defendê-los, para que a maioria acolhesse suas propostas – algumas vezes no grito e na porrada. Isso significava que a capacidade de argumentação era uma qualidade basilar.
(Abrindo parênteses. A democracia direta grega era meia-boquíssima, se pensarmos em termos de poder popular e à maneira como ela é exercida nos dias de hoje. Apenas os chamados “cidadãos” tinham o direito de se manifestar. Desta forma, as mulheres, os escravos, os mestiços, os estrangeiros e seus descendentes não tinham direito a participar da assembleia da ágora. Fecha parênteses).
Neste contexto, surgem profissionais que se especializaram em absorver conhecimento enciclopédico e traduzi-los em argumentos eloquentes, os mais irrefutáveis possíveis. Essa mescla de conteúdo e uso da palavra era absolutamente necessária para quem precisava viver e impor vontades na Ágora. O poder de convencimento, portanto, era mais importante que a veracidade dos argumentos. E mais ainda: esse saber era vendido a quem quisesse e pudesse pagá-lo.
Dá a impressão que nossos amigos eram meros mercenários que viviam de ensinar a produzir mentiras, mas vamos com calma, porque a coisa não era bem assim. Vamos desossar esse frango.
Quando eu era pequeno, certa vez meu pai me desafiou a produzir o desenho de um dado em que fosse possível enxergar mais de três lados de uma só vez. Não valia, evidentemente, distorcer o cubo para forçar a barra. Depois de algumas horas tentando e não convencendo, fiz o que deveria fazer desde o começo: cacei um dado pelas minhas bagunças e verifiquei a impossibilidade.
Muito bem. Vamos imaginar um desenho simples. Um dado igual ao que eu me referi, visto por duas pessoas em ângulos diferentes.

A primeira pessoa terá a seguinte visão:

A segunda verá o que segue:

Agora peça para cada um dos interlocutores somar a quantidade total de pontos visível. Você perceberá, através de exemplo boçal, que este total será diferente porque cada um dos pontos de vista é diferente. Nenhum dos dois é errado, mas nenhum dos dois é completo. Daí nasce o relativismo.
Essa visão relativa, para os sofistas, mata a possibilidade de obter conhecimento seguro. Se um ponto de vista é sempre parcial, torna-se impossível evitar que ele se torne uma mera opinião. O universal é uma lenda para o sofista, portanto. Isso se aplica não só à observação física, como mostrei anteriormente com o exemplo dos dados, mas também, e principalmente, sob o prisma moral. Cada povo tem seu conjunto de costumes que não se conciliam com os dos outros povos, e, mesmo individualmente, o que um indivíduo pensa não coaduna NUNCA em 100% com o que pensa outro cidadão. Temos então que cada indivíduo vê e pensa seu próprio mundo, e cria sua própria verdade. E então chegamos a Protágoras de Abdera.
Este filósofo soltou a frase mais célebre de todo o movimento sofístico: “O homem é a medida de todas as coisas”. Com isso, ele quer dizer que todo o conhecimento é oriundo do pensamento humano. Nada brota como conhecimento sem que exista um homem para interpretá-lo, com toda a sua visão parcial e relativa. Se todo o conhecimento parte do homem, então ele deve ser o centro da Filosofia.
Sua descoberta é chamada de antilogia. Todas as pessoas que observarem um determinado fenômeno terão uma interpretação própria. Cada uma destas interpretações contém uma parte da verdade sobre o fenômeno, e também há que se perceber que há ângulos que não são considerados, por não terem sido observados ou levados em conta. Com isso, há sempre um certo grau de contraposição entre um raciocínio e outro e, com isso, sempre é possível colocar os discursos em confronto. Disso nasce a arte da retórica, cujo objetivo é adotar e defender o melhor discurso. A antilogia redunda em um exercício de crítica e debate de razões.
Pois bem. Derivando da posição relativista de Protágoras, chegamos ao segundo pilar da escola sofista, o ceticismo. É simples de fazer a correlação: se todo o conhecimento é relativo, se depende não apenas do objeto, mas do sujeito que o observa, e se podemos duvidar de qualquer conhecimento disponível, podemos duvidar, também e por consequência, de nossa própria capacidade de conhecer, o que nos coloca na posição de seres ineptos à verdade. Quem fala com propriedade sobre o assunto é Górgias de Leontino.
Esse filósofo era siciliano, região hoje em dia pertencente à Itália, mas que na ocasião fazia parte da Magna Grécia. A sua frase mais célebre, e que sintetiza seu pensamento, nos diz que “Nada existe. E ainda que existisse, não poderia ser conhecido. E ainda que pudesse ser conhecido, não poderia ser transmitido a ninguém”.
Em um único raciocínio encadeado, Górgias nos faz três desafios filosóficos: o primeiro é metafísico, o segundo é epistemológico e o último é linguístico.
Nada existe” parece ser a assertiva mais provocativa de todas. De fato, podemos observar e apalpar todo o cosmos ao nosso redor: os astros, as plantas, os animais, os outros humanos, nós mesmos. Como será possível compreender o niilismo de Górgias?
Na verdade, toda a Filosofia se voltava para a análise do Ser como um todo, não só em suas aparências, mas também e principalmente em suas essências. Esse era o substrato do pensamento filosófico de então, com um espectro que transitava da total mutabilidade heraclitiana à total imobilidade parmenidesiana. Para Górgias, tanto um quanto o outro se equivocavam, levando consigo qualquer tipo de solução intermediária.
Parece óbvio que a afirmação de Górgias é mais radical do que seu pensamento em si. O seu real sentido é evidenciar o quanto a discussão acerca do Ser é vã. E, para compreender bem, necessitamos passar ao próximo tópico.
“... e ainda que existisse, não poderia ser conhecido” faz remissão direta à questão do ceticismo como derivação direta do relativismo, na qual se cristaliza – como há a impossibilidade de se obter a verdade, abre-se mão de prosseguir em suas tentativas. A única possibilidade de mitigar a limitação que a visão relativa coloca no objeto do conhecimento é justamente reconhecê-la. Dessa forma, o bom conhecimento será aquele desvencilhado de todos os penduricalhos que só servem para obnubilá-lo, torná-lo complexo e arrastá-lo. Conhecimento bom é conhecimento útil. Já ouviram falar nisso? Sim, é o atualíssimo pragmatismo.
“... e ainda que pudesse ser conhecido, não poderia ser transmitido a ninguém” toca na questão da linguagem e sua capacidade de ser suporte ao conhecimento. O grande problema é o seguinte: o conhecimento já é dúbio e inseguro. A tarefa de transmiti-lo é feita por uma ferramenta claudicante, que tira o objeto em si da frente do observador e a arremessa a um meio distinto, e, desta vez, abstrato e cheio de símbolos. Agrava ainda mais a questão o fato de que a visão que temos da própria linguagem é parcial, da mesma maneira que acontece com o objeto que ela tenta representar. Ou seja, para Górgias, a linguagem não tem capacidade de transmitir conhecimento, ainda mais porque piora o que já era ruim.
Ora, o pragmatismo citado no item anterior aplicado à linguagem dá a sua verdadeira utilidade: a persuasão, conquistada através de uma retórica bem treinada. A linguagem vale exatamente, portanto, pelo o que ela tem de útil – se ela não consegue transmitir a verdade, que consiga exercer o convencimento.
Percebem como o relativismo, o ceticismo e o pragmatismo são assuntos muito relevantes até os dias de hoje? Este simples fato é suficiente para que percebamos o valor do pensamento sofista. Pensem quantos filósofos mais recentes que admiramos beberam nessas fontes, ainda que indiretamente. E as principais críticas que se fazem aos sofistas podem, hoje em dia, ser facilmente rebatidas.
Em primeiro lugar, é preciso saber que, sendo verdade que os sofistas vendiam seus saberes e técnicas, não há mais nenhuma estranheza nisso, já que o ensino é comerciado sem contestações nas escolas particulares – e mesmo públicas, já que os professores trabalham em troca de salários. No fundo, os sofistas eram mais democráticos do que parecem. É fato que para pagá-los, já era preciso ter dinheiro, mas seus préstimos não dependiam da posição social de quem os contratava, e sim da sua possibilidade de remunerar. Desta forma, sai-se de uma elite de berço para uma elite financeira, o que, mesmo ainda limitante, ampliava muito o alcance da educação.
Outra coisa que não se pode negar aos sofistas é o mérito de fornecer ferramentas para o exercício da cidadania, pelo motivo já exposto da necessidade de bom desempenho na ágora. Era algo semelhante aos ensinos de “ética e cidadania” que vemos ministrados em nossas escolas modernas.
E o melhor de tudo: não é com os festejados socráticos, mas com os detonados sofistas que nasce o conceito de paideia, que se trata da formação global do homem. Os sofistas educavam nas mais diversas áreas, incluindo não só a questão política, mas conhecimento referente à natureza, aos costumes, ao funcionamento da ética e das religiões, e, no final, a virtude (que os gregos chamavam de areté). Hoje reconhecemos a importância primordial da educação para a formação das gerações, e os sofistas já se ocupavam dessa difusão do saber.
Talvez a maior crítica que se voltou aos sofistas se deva à existência de uma corrente radical, denominada erísticos. Estes últimos transformaram a arte da retórica em jogo, onde nenhum raciocínio poderia ser tornado definitivo; sempre havia uma contraposição possível, e, com isso, os debates eram levados ao infinito. Desses nós linguísticos, improdutivos e sem o aspecto primordial na senda sofística de utilidade, nasceram a capciosidade e empulhação (esta, talvez, seja a escola mais utilizada pelos políticos), tão bem explanadas principalmente por Platão em seu livro Eutidemo.
É isso. Tenho uma boa notícia: a partir deste post, sem seguir uma lógica temporal ou sequencial, vou elaborar textos que falarão sobre as principais falácias que detectamos (às vezes sem facilidade alguma) em nossos discursos. Vão ser textos curtos, em que vou nominar a falácia, falar um pouco sobre sua origem, como são utilizadas e onde podemos localizar utilização prática. Vai ser legal. Caso queiram, sugiram alguma falácia que vocês queiram saber mais nos comentários. A quem é meu amigo nas redes sociais, podem fazê-lo por lá também.
Recomendações de leitura:
Como os sofistas, apesar de terem escrito muito, tiveram todos os seus registros perdidos, não tenho um livro de autoria deles para recomendar. Mas Platão falou um bocado deles, mesmo que por um viés crítico. São estes livros:
PLATÃO. Eutidemo. São Paulo: Loyola, 2011
PLATÃO. O Sofista. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Col. Os Pensadores)

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