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sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Sobre a ética da eutanásia

Olá!

Há uns dois meses atrás, a avó de uma amiga minha, a Natasha, veio a falecer. Foi vítima de um problema chato, que começou como uma aparente bobagem, mas que com uma cirurgia mal-sucedida, seguida de uma série de infecções, que acabaram por se transformar em uma septicemia, fizeram-na não resistir. Quando seu fim já estava evidente, a Rosi (mãe da Nash) já pedia a Deus para levá-la de uma vez, em desespero por ver sua situação. Pois é, a morte é um negócio incômodo, mas tem hora em que ela é tudo o que nos resta.



O que fazer quando a vida já não vale mais a pena? É-nos lícito decidir sobre a continuidade de nossa própria vida ou de pessoas próximas?

Não vou aqui caminhar novamente nas sendas do suicídio, como já fiz neste post. Vou tocar mais de perto a aporia da eutanásia.

A Filosofia enxerga a questão da eutanásia pelo foco da ética, ou, para utilizar um termo contemporâneo, da bioética. Está, de certa forma, relacionada à questão do suicídio, de quem pode ser considerado uma modalidade (especificamente quando é motivado pela necessidade de supressão do sofrimento físico insanável). Sendo assim, a eutanásia enquadra-se no contexto da máxima famosa de Albert Camus: "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo; decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da Filosofia".

A extensão desta pergunta ética se dá na possibilidade de encarar a vida como uma condição disponível à nossa vontade. A vida é um direito, isto é certo. Mas será também um dever? Até que ponto é admissível abrir mão da responsabilidade pela própria existência? Colocando a questão da doença incurável e do sofrimento físico é possível mudar a forma de encarar o suicídio, tornando-o admissível e até mesmo desejado?

Muitos povos, dentre eles os hindus e os celtas, eram praticantes da eutanásia, especialmente para propiciar mortes rápidas aos velhos e deficientes. Com o advento do Cristianismo, a vida ganha um aspecto de santidade, o que a torna indisponível para a vontade de quem a possui: ela não pertence ao indivíduo, mas é uma concessão de Deus.

Esta visão fundada na religião se mantém de modo pouco mutável, e, curiosamente, só é colocada em polêmica pelo filósofo católico Thomas More, que afirma que "se a doença é incurável e faz-se acompanhar de dores agudas e contínuas angústias, os sacerdotes e magistrados devem ser os primeiros a exortar os infelizes a decidirem-se a morrer". More faz estas observações em seu livro Utopia, onde descreve uma comunidade que vive de forma ideal, sem jogos de prestígios e sem privilégios entre classes, que, aliás, não existem. Mesmo convencido de que tais práticas nunca seriam adotadas na Europa, More dá sua concepção de sociedade justa, muito próxima ao que foi posteriormente sistematizado com o nome de socialismo. Percebam portanto, jovens, que More inclui a eutanásia entre os mecanismos do que reputa como uma sociedade em perfeito funcionamento. A noção cristã de piedade muda de lado, e passa a observar uma condição de sofrimento inútil, que se torna um fardo impossível e desnecessário.

Essa visão ficou isolada ainda por um bom tempo, mas podemos aplicar as ideias de outros filósofos por correlação. Vamos então fazer um exercício. Kant não falou diretamente sobre o assunto, mas baseia sua ética no imperativo categórico, cujo principal axioma diz que devemos agir como se cada atitude pudesse ser tomada por uma lei universal. Pensando neste aspecto, Kant diria que a eutanásia é uma atitude ética? Parece-me que não. Vamos ver o porquê.

Lei universal, portanto, aplicável em qualquer tempo e em qualquer lugar. Sendo assim, se a atitude tomada diante da hipótese da eutanásia, seja ela favorável ou contrária, fosse tomada como verdadeira, anularia a validade de sua oposta. Assim, caso eu queira ser favorecido com uma morte digna em minha doença irreversível, não poderei considerar ética a atitude de quem quer continuar vivendo independentemente de seu sofrimento. Ora, isso não pode ser considerado verdadeiro. Essa preferência é individual, porque depende de uma série infindável de contingências: a capacidade de resistir à dor, as convicções religiosas, o tanto de sofrimento e incômodo causado às pessoas ao meu redor, a possibilidade de manter um tratamento que, no final das contas, não trará efeitos. Se esse exercício é individual, regido pelas circunstâncias, qualquer ação diante da eutanásia não pode ter valor universal, e não poderá ser considerada uma atitude ética, ao menos no sentido kantiano, em voga até o século XIX.

Hoje, permanecemos na mesma encruzilhada ética. A eutanásia, como é colocada modernamente, pressupõe uma ação que possui dois polos, um que requer e que deve receber os procedimentos, e outros que é requerido e que deve executar os procedimentos. Ou seja, o paciente é ativo no desejo e passivo na recepção da própria morte, enquanto o médico é passivo na esfera do desejo e ativo na efetiva realização da eutanásia. A relação é então bilateral, há dois lados a serem considerados. Se a eutanásia é socialmente aceita, então temos apenas um acordo entre duas partes, como se fosse um contrato de compra e venda; do contrário, a visão muda para um assassinato consentido: temos um suicida e um homicida, o que muda sensivelmente o modo com o qual devemos encarar questão. É necessário analisar, por conseguinte, não apenas o lado do paciente que sofre inesgotavelmente, mas também a da ética médica, quem tem por dever último a manutenção da vida.

A decisão é extremamente difícil, sempre. Principalmente quando a tomamos por outrem. Vejam só o caso da médica Geertruida Postma, que decidiu praticar a eutanásia em sua própria mãe, doente terminal, injetando-lhe morfina suficiente para ocasionar uma overdose. Para a lei, não havia que se falar em misericórdia, mas em homicídio, e ela ficou presa por um bom tempo. Mas sua atitude (tal fato se deu em 1973) disparou a discussão ética que levou o parlamento holandês a regulamentar as situações em que esta prática é admissível.

Alguns apontamentos, portanto, são necessários, para que o debate siga em uma estrada segura: quem pode decidir sobre a eutanásia, sob quais critérios e condições, sobre a segurança de que as condições são irreversíveis, e sobre a verdadeira capacidade das pessoas envolvidas em decidir. Essas premissas são absolutamente mínimas.

Recomendações:

Há dois filmes absolutamente indispensáveis para a discussão sobre a eutanásia. Vamos a eles:

AMENÁBAR, Alejandro. Mar adentro. Filme. Espanha, 2004. 125 min. Colorido.

EASTWOOD, Clint. Menina de Ouro. Filme. Estados Unidos, 2004. 137 min. Colorido.


A obra de Thomas More é essencial para que se conheçam as raízes do socialismo (já ouviram falar de socialismo utópico? Vem daí!), conciliando a vida ideal de uma sociedade justa com os ideais de igualdade do cristianismo.

MORE, Thomas. Utopia. Brasília: IPRI, 2004.


E já que citei Kant...

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. São Paulo: Martin Claret: 2004.

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