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sábado, 20 de outubro de 2012

Entre o adulto infantil e a criança erótica

Olá!

Estamos no mês das crianças. Engraçado como esse evento cresceu de uns vinte ou vinte e cinco anos para cá. Lembro que, em minha infância, as comemorações do dia das crianças eram menos importantes que as da padroeira, ocorridas concomitantemente, e qualquer porcariazinha de feira acompanhada de ki-suco jarrão eram o suficiente para alegrar a data. Era um dia mais de ir para a igreja do que para distribuir presentes. Hoje em dia, a coisa é um pouco mais cara, como bem sabemos.

A data me traz uma ponta de melancolia, porque me lembro de meu menino que se foi tão cedo. E aí, invariavelmente começo a refletir nas crianças que sofrem, naquelas que são pobres, doentes, vítimas de preconceito. Existia, no meu tempo de criança, um conceito educacional de segregação, chamado de “classe especial”, que servia para estocar as crianças com alguma disfunção mental em um canto reservado na escola. Ninguém via essas crianças entrar nem sair, não havia horário de recreio para eles. Ficavam confinados naquela estranha sala, que só tinha janelas para o lado do estacionamento dos professores. Bom, sobre isso falarei oportunamente.

Falar no sofrimento infantil, nos dias de hoje, remete a outra questão, ainda mais delicada. É com freqüência que vemos, nos dias de hoje, uma série de reportagens sobre crimes de pedofilia, o que se agravou consideravelmente a partir do advento da popularização da internet, que permitiu o tráfego de bilhões e mais bilhões de bytes agrupados em imagens, filmes e etc., sob um escudo de anonimato razoavelmente bem estruturado. Há uma reação generalizada em toda a comunidade virtual, com uma quantidade bastante expressiva de campanhas visando minimizar e, se possível, extinguir o problema. Só que, se dermos um olhar mais aprofundado para a questão, teremos a triste notícia de que há muito cinismo nessas ações.

Vamos ao busílis. Tempos atrás, fui convidado por uma aluna a abordar o tema em classe, principalmente por conta de constatação da existência de muitos casos de pedofilia no interior dos seminários e conventos. Para isso, fiz uma pequena pesquisa que me levaram a concluir que, na maioria dos casos, o ato se dá por persuasão, e não por violência, o que já seria hediondo por si só. Isso nos leva a crer que o ato em si é cercado de extremo individualismo e desequilíbrio, e não propriamente de destrutividade. O que me chamou a atenção é que havia uma alegação de amor e desejo descontrolados nas alegações dos delinqüentes. Há alguma razão em se violar aquilo que se ama?

Pois bem. Começarei pela conclusão: O que temos é que, se há tantos pedófilos, é porque a própria sociedade é pedófila.

Não há como fugir da questão dos excessos da sociedade de consumo. Para produzir um máximo de expectativa de desejos, os estratagemas utilizados pelos grandes conglomerados econômicos buscam compactar os interesses de toda a espécie humana em uma única grande faixa: a do jovem adulto, maior força consumidora, porque é titular de muitas expectativas e possui poder aquisitivo. Para isso, é preciso que as faixas mais distantes assumam características dessa última: as crianças, que não tem posses disponíveis e a dos adultos mais velhos, que já possuem controle mais elaborado de seus gastos e expectativas mais bem consolidadas. Com isso, temos um trabalho realizado em duas frentes.

Começo pelo lado infanto-juvenil. As crianças, desde sempre, tem o costume de imitar os adultos. Trata-se de parte do processo de mimesis que já comentei em três outras ocasiões (aqui, quando falei do processo de replicação da violência; aqui, quando tratei da disseminação dos memes; e aqui, ao abordar a anti-ética contra o bem público). Geralmente, isso ocorre de maneira furtiva, nas vaciladas dos pais, com as meninas de caras borradas de batom e outras maquiagens, roupas enormes dançando pelo corpo e jóias dependuradas no pescoço que mais parecem cordas para pular. Os meninos faziam de conta que se barbeavam, engolindo um bom tanto de espuma, ou pulavam no banco dos carros para fingir que dirigiam. Isso tudo tinha um aspecto lúdico, e era propedêutico para sua entrada na adolescência. A diferença dos dias de hoje é que os próprios pais se encarregam de maquiar seus filhos, enchê-los de piercings e brincos, vesti-los com roupas coladas ao corpo, mais ousadas do que eles mesmos admitiriam usar. Significado final: influenciados pelas regras de consumo, os próprios pais tratam de erotizar seus filhos. Se antes tínhamos um pito pelo uso indevido dos objetos pessoais dos pais, hoje temos a aquisição destes mesmíssimos objetos para uso legítimo dos filhos, o que valida não só seu consumo, mas a compreensão de que tudo isso é muito bom, já não é mais uma mera brincadeira.

O problema todo está naquilo que, no jargão pedagógico, chamamos de “queimar etapas”. O complexo afetivo da criança é tão amplo quanto o de qualquer adulto, mas a formação de sua maturidade está em andamento. Transformar a criança em pequenos adultos não é só fazer dela um pastiche do que ela ainda não deveria personificar, mas também, e principalmente, em deslocar seu foco afetivo para a sexualidade, deixando de considerar aspectos como a formação da abstração, da vida em comunidade, da apreciação da arte. Isso sem contar que essa noção de sexualidade da criança é incompleta. Ela existe, mas é muito pouco definida. Não é preciso ser puritano para reconhecer que este excesso é danoso. Todo excesso o é. Só que, neste caso, trazemos a expectativa de uma etapa futura para o presente, no momento em que este não deveria acontecer. Ilimitadas, elas consomem produtos estranhos a esta etapa da vida, e se expõe como o que não são. O grande pecado é que tudo isso é interiorizado de forma a tornar-se um distintivo da realidade.

A outra frente diz respeito ao processo inverso, ou seja, a infantilização dos adultos. A mecânica do consumo bombardeia todas as instâncias etárias com a afirmação de que a vida ocorre na juventude. Há uma promessa de felicidade para aquele que se torna o eterno adolescente, pleno de vida e vontades, guiado pela realização do prazer. A criança e o jovem são inconseqüentes, a vida acontece hoje e o amanhã é só uma suposição. Ocorre que esta é uma suposição que efetivamente PODE acontecer, e viver irresponsavelmente não traz nenhum benefício para isso. A maturidade do homem adulto nunca chega, porque ela significa uma série de restrições: é preciso gastar adequadamente, é necessário estar descansado para o trabalho, é preciso pensar e planejar as rotas que serão traçadas. Tudo bem, nada contra o prazer, mas não conseguimos tê-lo cem por cento do tempo. O adulto é empurrado para baixo, para fora de seu lugar. Seu corpo não lhe permite mais acompanhar o ritmo tresloucado da juventude. Apesar de negar peremptoriamente, o adulto se frustra, porque essa vida calcada no hedonismo tem limites. Ninguém está livre dessa possibilidade. Eu mesmo sinto este impacto, não pensem que não. É o Tânatos que lança suas sombras sobre mim (lembram-se? Está neste texto).

Bem, a soma destas parcelas causa um efeito final que é uma verdadeira bomba. O adulto que não consegue encontrar seu lugar vai em busca daquilo que lhe falta. Basta um pequeno histórico de frustrações, de irrealização de desejos, de ridicularização em seu meio, aliado à falta de maturidade mencionada anteriormente, para que ele tente encontrar um nicho onde se localiza uma pureza e uma inocência que não tem a característica de oprimi-lo ainda mais. Quando esse impulso se volta para a sexualidade, temos o pedófilo.

Ok, mas não somos pedófilos. Temos discernimento suficiente para não comer criancinhas. Será que isto basta? O que está no nosso plano dos desejos? Não seremos nós participantes da mazela, também um pouco (ou muito) pedófilos?

Olhem só. Os produtores de material pornográfico fazem busca incessante de modelos para as mais diversas taras. Há quem demande idosos, anões, orientais, grávidas, negros e etc. Mas a procura por modelos que tem mais idade do que aparentam é muito grande. Estes produtores querem meninas que já possuam idade legal, mas que aparentem ter 14 anos ou menos. Desta forma, conseguem manter-se na legalidade, mas quem consome seu produto não guarda um comportamento pedofílico? O seu desejo não aponta para esse tabu? O mesmo pode se dizer das mulheres vestidas como colegiais, uma das taras mais comuns que conheço. Sabe-se que lá está uma mulher adulta, mas a expectativa não é essa. Quer-se, de fato, uma jovenzinha toda disposta às mais levianas traquinagens.


Apontemos agora para outro exemplo, menos agressivo e portanto mais dissimulado. Vivemos em uma geração que não deseja os pelos. Já vi propaganda de barbeador para remover pelos do peito, e está na moda a depilação completa, que promete arrancar qualquer folículo piloso que esteja abaixo da linha das sobrancelhas. A alegação é que os pelos trazem uma sensação de sujeira, de pouco cuidado, de mau cheiro. Essa afirmação só se justifica parcialmente para os pelos pubianos, o que facilita a prática do sexo oral. Mas se os pelos são fonte de ojeriza, por que queremos manter os cabelos cada vez mais sedosos e abundantes? Por que se quer apagar um dos distintivos mais clássicos do “macho”? Ora, o que se quer são peitos tão lisos quanto bundinha de criança. Entenderam?

Desta forma, podemos concluir que a pedofilia está imiscuída em meandros que nem conseguimos perceber, pelo menos à primeira vista. Para a defesa dos nossos pequenos, temos a lei. Só que ela é uma derrota de nossas relações. Toda lei representa uma limitação a uma transgressão que não se consegue conter espontaneamente. E isso é o claro sinal de que o mecanismo social fracassou neste aspecto, até mesmo porque a lei não consegue dar conta de tudo. Vejamos. A lei estabelece que uma pessoa se torna plenamente responsável aos 18 anos, como se houvesse uma passagem cabalística que transforma-a de criança para adulto do dia para a noite. Ora, sabemos de casos e mais casos de pessoas que já tem pleno desenvolvimento aos 14 anos, enquanto há pessoas de 25 ainda completamente imaturas. Mas a lei precisa de uma rigidez que a espécie humana não tem. A maturidade sexual é difícil de determinar. A natureza (e várias religiões) aponta a capacidade de procriar como o momento em que o indivíduo está apto organicamente para o sexo, mas esse não é o único ponto a ser considerado, porque há também o aspecto emocional, a capacidade intelectual, a força laborativa e tantos outros. A lei cuida simplesmente de estabelecer um padrão que, no final das contas, é arbitrário. Mas a sociedade não consegue prescindir da lei porque ela própria não sabe se auto-regular.

Tem mais um pouco. A lei pode funcionar objetivamente, mas tudo se complica quando se tenta julgar as intenções. Em uma reportagem do programa CQC, o problema de pedofilia foi abordado de modo desafiador. Uma moça de 19 anos firmou conversa com um homem de seus 40 anos, afirmando ter apenas 14. Entravado o papo, resolveram se encontrar para uma aventura. Quando o homem chegou ao apartamento, apareceu o repórter do CQC, tomando-o de surpresa e constrangimento. Passada a respectiva descompostura, nada mais poderia ser feito, e o homem foi embora. A lei, neste caso, não alcança o suposto delinqüente, porque, objetivamente falando, nenhuma prova foi produzida. O homem poderia alegar que sabia se tratar de uma falsa idade, que iria se certificar da idade real antes do ato, uma série de justificativas. E, nesse caso, a lei não conseguiria impedi-lo de nada.

Finalmente e repetindo: a sociedade é, ela mesma, pedófila. Ela mesma quer ver na criança e no adolescente um objeto sexual. Por isso afirmei, no começo deste texto, que ela é cínica. Ela mesma produz suas mazelas, ou, num esforço de boa vontade, colabora imensamente para tanto. Cabe a ela discutir o que fazer com seus membros que pularam a delimitação da lei, se serão considerados bandidos, sem-vergonhas, doentes ou se nada mais são do que o fruto mais sombrio da semente que ela própria plantou.

Em tempo rápido: o termo pedofilia é detestável, porque em sua etimologia não quer dizer nada de ruim. Sua tradução direta significa “amigo das crianças”. Ou seja, exatamente aquilo que não define um pedófilo.

Recomendação de leitura:

Se você quiser um olhar antropológico e sociológico sobre o assunto, recomendo o seguinte livro:

BARBER, Benjamin. Consumido – como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Rio de Janeiro: Record, 2009.


Já na literatura, temos um ótimo clássico que trata do assunto. Apesar da delicadeza do tema, o autor trabalha com extrema habilidade e mesmo bom gosto. Atenção, tarados: não há nenhum tipo de descrição de atos sexuais. A trama corre toda no nível psicológico.

NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

2 comentários:

  1. Professor Décio, voltei a ler o seu blog. Esta cruzada vale a pena. Continue escrevendo... Estou para ver um professor de filosofia tão imparcial, mesmo deixando claras suas posições sobre vários assuntos, como exemplo, religião e família. Um abraço.

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    1. Agradeço muito, Fernando... E peço desculpas por não ter respondido todos os seus comentários. Seja sempre bem vindo a este espaço. Abraços.

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