Estamos no mês
das crianças. Engraçado como esse evento cresceu de uns
vinte ou vinte e cinco anos para cá. Lembro que, em minha
infância, as comemorações do dia das crianças
eram menos importantes que as da padroeira, ocorridas
concomitantemente, e qualquer porcariazinha de feira acompanhada de
ki-suco jarrão eram o suficiente para alegrar a data. Era um
dia mais de ir para a igreja do que para distribuir presentes. Hoje
em dia, a coisa é um pouco mais cara, como bem sabemos.
A data me traz uma
ponta de melancolia, porque me lembro de meu menino que se foi tão
cedo. E aí, invariavelmente começo a refletir nas
crianças que sofrem, naquelas que são pobres, doentes,
vítimas de preconceito. Existia, no meu tempo de criança,
um conceito educacional de segregação, chamado de
“classe especial”, que servia para estocar as crianças com
alguma disfunção mental em um canto reservado na
escola. Ninguém via essas crianças entrar nem sair, não
havia horário de recreio para eles. Ficavam confinados naquela
estranha sala, que só tinha janelas para o lado do
estacionamento dos professores. Bom, sobre isso falarei
oportunamente.
Falar no sofrimento
infantil, nos dias de hoje, remete a outra questão, ainda mais
delicada. É com freqüência que vemos, nos dias de
hoje, uma série de reportagens sobre crimes de pedofilia, o
que se agravou consideravelmente a partir do advento da popularização
da internet, que permitiu o tráfego de bilhões e mais
bilhões de bytes agrupados em imagens, filmes e etc., sob um
escudo de anonimato razoavelmente bem estruturado. Há uma
reação generalizada em toda a comunidade virtual, com
uma quantidade bastante expressiva de campanhas visando minimizar e,
se possível, extinguir o problema. Só que, se dermos um
olhar mais aprofundado para a questão, teremos a triste
notícia de que há muito cinismo nessas ações.
Vamos ao busílis.
Tempos atrás, fui convidado por uma aluna a abordar o tema em
classe, principalmente por conta de constatação da
existência de muitos casos de pedofilia no interior dos
seminários e conventos. Para isso, fiz uma pequena pesquisa
que me levaram a concluir que, na maioria dos casos, o ato se dá
por persuasão, e não por violência, o que já
seria hediondo por si só. Isso nos leva a crer que o ato em si
é cercado de extremo individualismo e desequilíbrio, e
não propriamente de destrutividade. O que me chamou a atenção
é que havia uma alegação de amor e desejo
descontrolados nas alegações dos delinqüentes. Há
alguma razão em se violar aquilo que se ama?
Pois bem. Começarei
pela conclusão: O que temos é que, se há tantos
pedófilos, é porque a própria sociedade é
pedófila.
Não há
como fugir da questão dos excessos da sociedade de consumo.
Para produzir um máximo de expectativa de desejos, os
estratagemas utilizados pelos grandes conglomerados econômicos
buscam compactar os interesses de toda a espécie humana em uma
única grande faixa: a do jovem adulto, maior força
consumidora, porque é titular de muitas expectativas e possui
poder aquisitivo. Para isso, é preciso que as faixas mais
distantes assumam características dessa última: as
crianças, que não tem posses disponíveis e a dos
adultos mais velhos, que já possuem controle mais elaborado de
seus gastos e expectativas mais bem consolidadas. Com isso, temos um
trabalho realizado em duas frentes.
Começo pelo lado
infanto-juvenil. As crianças, desde sempre, tem o costume de
imitar os adultos. Trata-se de parte do processo de mimesis
que já comentei em três outras ocasiões (aqui,
quando falei do processo de replicação da violência;
aqui, quando tratei da disseminação dos memes; e
aqui, ao abordar a anti-ética contra o bem público).
Geralmente, isso ocorre de maneira furtiva, nas vaciladas dos pais,
com as meninas de caras borradas de batom e outras maquiagens, roupas
enormes dançando pelo corpo e jóias dependuradas no
pescoço que mais parecem cordas para pular. Os meninos faziam
de conta que se barbeavam, engolindo um bom tanto de espuma, ou
pulavam no banco dos carros para fingir que dirigiam. Isso tudo tinha
um aspecto lúdico, e era propedêutico para sua entrada
na adolescência. A diferença dos dias de hoje é
que os próprios pais se encarregam de maquiar seus filhos,
enchê-los de piercings e brincos, vesti-los com roupas coladas
ao corpo, mais ousadas do que eles mesmos admitiriam usar.
Significado final: influenciados pelas regras de consumo, os próprios
pais tratam de erotizar seus filhos. Se antes tínhamos um pito
pelo uso indevido dos objetos pessoais dos pais, hoje temos a
aquisição destes mesmíssimos objetos para uso
legítimo dos filhos, o que valida não só seu
consumo, mas a compreensão de que tudo isso é muito
bom, já não é mais uma mera brincadeira.
O problema todo está
naquilo que, no jargão pedagógico, chamamos de “queimar
etapas”. O complexo afetivo da criança é tão
amplo quanto o de qualquer adulto, mas a formação de
sua maturidade está em andamento. Transformar a criança
em pequenos adultos não é só fazer dela um
pastiche do que ela ainda não deveria personificar, mas
também, e principalmente, em deslocar seu foco afetivo para a
sexualidade, deixando de considerar aspectos como a formação
da abstração, da vida em comunidade, da apreciação
da arte. Isso sem contar que essa noção de sexualidade
da criança é incompleta. Ela existe, mas é muito
pouco definida. Não é preciso ser puritano para
reconhecer que este excesso é danoso. Todo excesso o é.
Só que, neste caso, trazemos a expectativa de uma etapa futura
para o presente, no momento em que este não deveria acontecer.
Ilimitadas, elas consomem produtos estranhos a esta etapa da vida, e
se expõe como o que não são. O grande pecado é
que tudo isso é interiorizado de forma a tornar-se um
distintivo da realidade.
A outra frente diz
respeito ao processo inverso, ou seja, a infantilização
dos adultos. A mecânica do consumo bombardeia todas as
instâncias etárias com a afirmação de que
a vida ocorre na juventude. Há uma promessa de felicidade para
aquele que se torna o eterno adolescente, pleno de vida e vontades,
guiado pela realização do prazer. A criança e o
jovem são inconseqüentes, a vida acontece hoje e o amanhã
é só uma suposição. Ocorre que esta é
uma suposição que efetivamente PODE acontecer, e viver
irresponsavelmente não traz nenhum benefício para isso.
A maturidade do homem adulto nunca chega, porque ela significa uma
série de restrições: é preciso gastar
adequadamente, é necessário estar descansado para o
trabalho, é preciso pensar e planejar as rotas que serão
traçadas. Tudo bem, nada contra o prazer, mas não
conseguimos tê-lo cem por cento do tempo. O adulto é
empurrado para baixo, para fora de seu lugar. Seu corpo não
lhe permite mais acompanhar o ritmo tresloucado da juventude. Apesar
de negar peremptoriamente, o adulto se frustra, porque essa vida
calcada no hedonismo tem limites. Ninguém está livre
dessa possibilidade. Eu mesmo sinto este impacto, não pensem
que não. É o Tânatos que lança suas
sombras sobre mim (lembram-se? Está neste texto).
Bem, a soma destas
parcelas causa um efeito final que é uma verdadeira bomba. O
adulto que não consegue encontrar seu lugar vai em busca
daquilo que lhe falta. Basta um pequeno histórico de
frustrações, de irrealização de desejos,
de ridicularização em seu meio, aliado à falta
de maturidade mencionada anteriormente, para que ele tente encontrar
um nicho onde se localiza uma pureza e uma inocência que não
tem a característica de oprimi-lo ainda mais. Quando esse
impulso se volta para a sexualidade, temos o pedófilo.
Ok, mas não
somos pedófilos. Temos discernimento suficiente para não
comer criancinhas. Será que isto basta? O que está no
nosso plano dos desejos? Não seremos nós participantes
da mazela, também um pouco (ou muito) pedófilos?
Olhem só. Os
produtores de material pornográfico fazem busca incessante de
modelos para as mais diversas taras. Há quem demande idosos,
anões, orientais, grávidas, negros e etc. Mas a procura
por modelos que tem mais idade do que aparentam é muito
grande. Estes produtores querem meninas que já possuam idade
legal, mas que aparentem ter 14 anos ou menos. Desta forma, conseguem
manter-se na legalidade, mas quem consome seu produto não
guarda um comportamento pedofílico? O seu desejo não
aponta para esse tabu? O mesmo pode se dizer das mulheres vestidas
como colegiais, uma das taras mais comuns que conheço. Sabe-se
que lá está uma mulher adulta, mas a expectativa não
é essa. Quer-se, de fato, uma jovenzinha toda disposta às
mais levianas traquinagens.
Apontemos agora para outro exemplo, menos agressivo e portanto mais dissimulado. Vivemos em uma geração que não deseja os pelos. Já vi propaganda de barbeador para remover pelos do peito, e está na moda a depilação completa, que promete arrancar qualquer folículo piloso que esteja abaixo da linha das sobrancelhas. A alegação é que os pelos trazem uma sensação de sujeira, de pouco cuidado, de mau cheiro. Essa afirmação só se justifica parcialmente para os pelos pubianos, o que facilita a prática do sexo oral. Mas se os pelos são fonte de ojeriza, por que queremos manter os cabelos cada vez mais sedosos e abundantes? Por que se quer apagar um dos distintivos mais clássicos do “macho”? Ora, o que se quer são peitos tão lisos quanto bundinha de criança. Entenderam?
Desta forma, podemos
concluir que a pedofilia está imiscuída em meandros que
nem conseguimos perceber, pelo menos à primeira vista. Para a
defesa dos nossos pequenos, temos a lei. Só que ela é
uma derrota de nossas relações. Toda lei representa uma
limitação a uma transgressão que não se
consegue conter espontaneamente. E isso é o claro sinal de que
o mecanismo social fracassou neste aspecto, até mesmo porque a
lei não consegue dar conta de tudo. Vejamos. A lei estabelece
que uma pessoa se torna plenamente responsável aos 18 anos,
como se houvesse uma passagem cabalística que transforma-a de criança para adulto do dia para a noite. Ora,
sabemos de casos e mais casos de pessoas que já tem pleno
desenvolvimento aos 14 anos, enquanto há pessoas de 25 ainda
completamente imaturas. Mas a lei precisa de uma rigidez que a
espécie humana não tem. A maturidade sexual é
difícil de determinar. A natureza (e várias religiões)
aponta a capacidade de procriar como o momento em que o indivíduo
está apto organicamente para o sexo, mas esse não é
o único ponto a ser considerado, porque há também
o aspecto emocional, a capacidade intelectual, a força
laborativa e tantos outros. A lei cuida simplesmente de estabelecer
um padrão que, no final das contas, é arbitrário.
Mas a sociedade não consegue prescindir da lei porque ela
própria não sabe se auto-regular.
Tem mais um pouco. A
lei pode funcionar objetivamente, mas tudo se complica quando se
tenta julgar as intenções. Em uma reportagem do programa CQC, o
problema de pedofilia foi abordado de modo desafiador. Uma moça
de 19 anos firmou conversa com um homem de seus 40 anos, afirmando
ter apenas 14. Entravado o papo, resolveram se encontrar para uma
aventura. Quando o homem chegou ao apartamento, apareceu o repórter
do CQC, tomando-o de surpresa e constrangimento. Passada a respectiva
descompostura, nada mais poderia ser feito, e o homem foi embora. A
lei, neste caso, não alcança o suposto delinqüente,
porque, objetivamente falando, nenhuma prova foi produzida. O homem
poderia alegar que sabia se tratar de uma falsa idade, que iria se
certificar da idade real antes do ato, uma série de
justificativas. E, nesse caso, a lei não conseguiria impedi-lo
de nada.
Finalmente e repetindo:
a sociedade é, ela mesma, pedófila. Ela mesma quer ver
na criança e no adolescente um objeto sexual. Por isso
afirmei, no começo deste texto, que ela é cínica.
Ela mesma produz suas mazelas, ou, num esforço de boa vontade,
colabora imensamente para tanto. Cabe a ela discutir o que fazer com
seus membros que pularam a delimitação da lei, se serão
considerados bandidos, sem-vergonhas, doentes ou se nada mais são
do que o fruto mais sombrio da semente que ela própria
plantou.
Em tempo rápido:
o termo pedofilia é detestável, porque em sua
etimologia não quer dizer nada de ruim. Sua tradução
direta significa “amigo das crianças”. Ou seja, exatamente
aquilo que não define um pedófilo.
Recomendação
de leitura:
Se você quiser um
olhar antropológico e sociológico sobre o assunto,
recomendo o seguinte livro:
BARBER, Benjamin.
Consumido – como o mercado corrompe crianças, infantiliza
adultos e engole cidadãos. Rio de Janeiro: Record, 2009.
Já na literatura, temos um ótimo clássico que trata do assunto. Apesar da delicadeza do tema, o autor trabalha com extrema habilidade e mesmo bom gosto. Atenção, tarados: não há nenhum tipo de descrição de atos sexuais. A trama corre toda no nível psicológico.
NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
Já na literatura, temos um ótimo clássico que trata do assunto. Apesar da delicadeza do tema, o autor trabalha com extrema habilidade e mesmo bom gosto. Atenção, tarados: não há nenhum tipo de descrição de atos sexuais. A trama corre toda no nível psicológico.
NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
Professor Décio, voltei a ler o seu blog. Esta cruzada vale a pena. Continue escrevendo... Estou para ver um professor de filosofia tão imparcial, mesmo deixando claras suas posições sobre vários assuntos, como exemplo, religião e família. Um abraço.
ResponderExcluirAgradeço muito, Fernando... E peço desculpas por não ter respondido todos os seus comentários. Seja sempre bem vindo a este espaço. Abraços.
Excluir