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segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Navegações de cabotagem – Um campinho de futebol em Pedro de Toledo e a pergunta que perturba: nós existimos de fato ou somos frutos de alguma percepção?

Olá!


Esta aqui não foi tão recente. E, na verdade, quase ia caindo no esquecimento. É que aquelas velhas promessas de ano novo fazem a gente revirar as gavetas para jogar coisas fora, mas o que acontece muitas vezes é que achamos coisas importantes que ficaram jogadas em seus fundos. Transponhamos tudo isso metaforicamente para a memória de um celular, e lá encontraremos algumas fotos, como foi o caso que deu início ao presente texto. Estou limpando minhas pastas e reencontro algumas que me fazem franzir o cenho e olhar para o alto: onde é isso?

Relembrei ao seguir folheando-as digitalmente. Ah, é... Foi ainda em 2018, quando meu filho mais velho se desesperava atrás de concursos públicos, e ir para o Paraná não estava incluso em seus planos. Foi um domingo em que precisamos sair bem cedinho, ainda de madrugada, porque o tal concurso era pela manhã. Já devo ter contado por aqui que o gajo é motorista e dos bons, mas também já devo ter contado de seu espírito de morcego, e de como fica imprestável pela manhã cedo. Desta forma, ficava a meu encargo arremessá-lo no banco de trás do carro, ainda o velho Bedelho, para que prosseguisse seu culto a Morfeu enquanto eu me encarregava da pilotagem. Bons tempos, no final das contas.

Mas como essas fotos foram cair no esquecimento, se a todo lugar que vou consigo encontrar algo de relevante para filosofar? Na verdade, há um pouco de desencontro aqui. As partes mais interessantes da cidade para qual me encaminhei neste episódio ficam no seu meio rural, e não dá para se afastar tanto em um período de tempo imprevisível. Por isso, não pude incluir no horizonte nenhuma trilha ou cachoeira. E o que há disponível na mancha urbana não é muita coisa. Mas, como eu sempre preconizei, não há lugar no mundo de onde não se possa extrair Filosofia, e não seria exceção aqui também. Estou falando de Pedro de Toledo.



Pedro de Toledo é uma cidade do Vale do Ribeira, a região menos desenvolvida do estado de São Paulo. Esse fato se dá pelo relevo acidentado tipicamente serrano (estamos próximos à beira do mar), o que fez com que a região não se industrializasse. Mais difícil ainda agora, quando a preservação ambiental impede de vez esse tipo de atividade (que assim se mantenha). Com a ausência de políticas públicas de exploração do turismo e extrativismo sustentável, o pouco desenvolvimento que se obteve com a construção da linha férrea no começo do século XX tem se esvaído. A estação de trem se encontra abandonada, apesar de estruturalmente estar bem razoável.



A estação ferroviária coincide com o marco zero da municipalidade. É a partir desta pequena estação que o agrupamento urbano começou a se desenvolver, com a visita cada vez mais constante de caixeiros-viajantes, instalação de hotéis, bares e demais circunvizinhos. Quando o fluxo dos trens da linha Santos-Juquiá foi interrompido, o motivador de boa parte do giro econômico deixou de existir.



A linha foi desativada por completo em 1999, mas bem antes já havia deixado de transportar passageiros. Algumas ameaças de reativação têm sido feitas, sem efeitos práticos. Bem ao lado da antiga gare, ainda restam alguns dos trilhos como uma espécie de vestígio de outrora.



Outros remanescentes são a praça da Rua Ubirajara, com seus bancos e fonte, e que dava acesso à estação para quem aguardava o trem...



... o antigo edifício dos Correios, muito bem preservado, e que hoje abriga uma comunidade espírita...



... e o velho prédio que abrigava o cinema, hoje já bem estragadinho, que possuía sua sala de projeção no andar superior, enquanto no térreo ficavam as bilheterias e uma bomboniére, que vendia as tradicionais pipocas.



Eu tinha dado um pulo neste pedaço em busca de um pão com manteiga. Depois de obtê-lo, fui andar de namoro com a patroa, esperando o tempo passar. Realmente, é uma cidade bastante pobre, representativa do Vale, mas que guarda algumas caraterísticas que lhe são favoráveis. A paz, por exemplo, de ficar espiando o parco movimento de pessoas da praça Guarani, bastante próxima da igreja matriz.



De lá, pude observar o campo de futebol que fica ao lado da prefeitura, e vi dois times se perfilando para iniciar o prélio dominical. Foi imediato o resgate de memórias afetivas ligadas à minha infância (vide aqui), e atravessei a rua para fazer minhas resenhas e críticas esportivas, ainda que a audiência se compusesse unicamente da paciente cara-metade.



Eram dois times daqueles com nome genérico, impossíveis de ler à distância nos respectivos distintivos, e eram patrocinados por bares. Se não me engano, Bar da Zi o azul, Bar do Pedro o branco. O campo estava com um bom gramado para uma várzea, e há até uma arquibancada de concreto bem decente, protegida das boladas pelo alambrado. De lá, era possível enxergar a matriz que mencionei, dedicada a Sant’Ana. Detalhe: em pleno domingo, a igreja estava estranhamente fechada.



Um belo joguinho, que quebrou beníssimo o galho. Apesar dos abdomens proeminentes, o jogo foi muito agitado, lá e cá, sendo impossível determinar quem seria o time “da casa”. Talvez os dois. É claro que os varzeanos são saudosistas irremediáveis, e os jogadores guardam posições sem aquela grande consciência tática dos dias hodiernos, mas não deixa de ter sua beleza poder explicar sem grandes dificuldades a um desconhecedor o que é um ponta, um meia ou um zagueiro.



Por fim, o jogo estava 1 X 0 para os brancos no momento em que recebi o telefonema do primogênito noticiando o término de sua sabatina. Uma bola enfiada pela esquerda para o arremate ainda fora da área pelo meia-atacante anônimo (para mim). Na comemoração, o fato curioso. O atleta eventual sai correndo em direção ao alambrado na direção da arquibancada, deslizando de joelhos alla Neto, erguendo o punho direito em direção a um público inexistente, como se só ele pudesse ver a organizada vibrando e pulando. Eu e a patroa, que não tínhamos nada para fazer, soltamos um grito de gol real, plenamente audível em uma plateia tão pequena. Nem que fosse para fazer farra, o felizardo jogador poderia mandar um salve qualquer, mas não. Estávamos invisibilizados pela geral fantasma.



É de todo estranho não ser notado quando você é o único objeto móvel em um espaço. Mas atribuo o fato à absorção de nosso atleta amador, e, por meu lado, compreendo um pouco melhor a assertiva mais conhecida de George Berkeley, filósofo norte-irlandês: ser é ser percebido. Vamos tratar melhor do assunto.

Berkeley foi contemporâneo dos debatedores do primado do conhecimento. De um lado, os racionalistas capitaneados por gente do naipe de Descartes, Leibniz e Espinosa. Do outro, os empiristas liderados por Locke, Hume e Hobbes. Gente grande, como se pode perceber. Em todos eles, com maior ou menor intensidade, Berkeley percebeu que havia um escapismo de teses metafísicas para se aproximar a um materialismo sempre crescente, seja nas propriedades da mente como construtoras do conhecimento, seja nas capacidades dos sentidos de obter informações a partir do mundo exterior. Como era um bispo anglicano, ele precisava desenvolver uma hipótese em que não se excluísse uma divindade das equações. Esse é o norte geral do imaterialismo.

Em primeiro lugar, precisamos dizer que Berkeley estava alinhado com os empiristas. Isso implica em dizer que, para ele, nada que estivesse na mente não esteve primeiramente nos sentidos. No entanto, sua abordagem tem muitas novidades. Ele se questionava, por exemplo, se os objetos que rodeiam um sujeito têm existência independente dele, ou se a doação de sentido de cada um desses objetos depende exclusivamente de quem o percebe. Só que essa relação é muito mais radical do que pode parecer em um primeiro instante. Uma coisa qualquer só existe materialmente enquanto estiver no campo de percepção de alguém. Isso significa que a queda de uma árvore perdida no meio de uma floresta não terá nenhum sentido se estiver fora da percepção de alguma pessoa. Não existe essa coisa que chamam de matéria.

Como assim?!?!?! Berkeley entende que tudo aquilo que chamamos de matéria nada mais são do que percepções, e estas se caracterizam pela individualidade. Cada um de nós percebe o mundo de maneira única, a partir da perspectiva que se tem. Estas dependem de inúmeras circunstâncias, de forma a ser abertamente contraintuitivas, em certas condições. Pensemos, por exemplo, na sensação que temos da temperatura. Ainda que estejamos de acordo de que há calor, qual será a sensação que teremos ao sair de um banho muito quente? Certamente, sentiremos um frio que não existe. Podemos ainda pensar nas ilusões de ótica ou na pareidolia (leiam aqui), o fenômeno humano de perceber um objeto pelo outro. Essas falhas nas percepções, de acordo com Berkeley, são efeitos de um véu de sensações que nos impede de chegar à coisa-em-si (fato que foi melhor determinado por Kant). Portanto, o que temos são informações obtidas sensivelmente, e que são idealizadas na mente de cada um de nós. A matéria é indeterminável, e só existe no momento em que estiver no campo de percepção de um sujeito. Esse est percipi, ser é ser percebido.

Ainda não está claro? Ok, reconheço. Fundamentalmente, Berkeley diz que o que temos são ideias, e não fatos, porque estes são inatingíveis, haja vista a multiplicidade de pontos de vista a partir de cada perspectiva individual. Essas ideias, invariavelmente, são construídas a partir dos sentidos. O conhecimento de objetos parte da combinação dessas ideias formadas na mente oriundas da experiência de mundo obtida pelas percepções dos sentidos. Assim, combinamos a percepção visual de algo arredondado e vermelho, com a percepção olfativa de um cheiro suave e característico, com a percepção tátil de algo liso, com a percepção palatal de um sabor adocicado e temos uma maçã. Não sabemos que este objeto é uma maçã se não conhecemos alguma dessas sensações. Portanto, ideias abstratas são ilusórias. Quando Locke diz que parte de nosso conhecimento provem da abstração, ele quer dizer que há um conjunto de sensações primárias, como a ideia geral de forma, de extensão, de cor e assim por diante - uma ideia geral de maçã. Assim, perceberíamos que todo espaço tem uma extensão, todo objeto tem uma forma, ou seja, uma espécie de gabarito onde se encaixarão os casos particulares. Mas se é justamente o particular que nossa percepção tem acesso, a maçã de verdade, diz Berkeley, procurar uma ideia geral de cada objeto é um engano, um exagero metafísico que vem desde os tempos dos antigos gregos e que os empiristas modernos estavam insistindo em repetir.

E é justamente com a ideia de substância geral que Berkeley implica. Matéria é uma das ideias primárias que ele combate. Sempre que se pensar em matéria como um substrato da realidade, pensa-se em uma ideia geral e primária. Há um material para cada coisa que exista no universo, esse é o princípio. Mas, se não se pode pensar em necessariamente existir qualquer coisa que vá além da particularidade, como podemos afirmar que a matéria existe? É uma questão privada de sentido: todas as qualidades de um objeto, seja ligada a substrato primário, como forma, extensão e número, quanto secundário, como cor, tamanho e aspecto, estão na mente, ou seja, na ideia que fazemos dele. Não há nada que o obrigue a matéria a existir.

Parece loucura, mas na verdade é um desafio. Como somente podemos nos assegurar da existência de algo a que lançamos nossa percepção, é sobre esse algo que recaí o Ser como objeto existente. O mundo é, na verdade, aquilo que percebemos, e fora da percepção não há nada.

E por que Berkeley fez todo esse esforço? Como eu já disse, o pensamento filosófico moderno tendia fortemente para o materialismo, o que tirava progressivamente um deus da jogada. Se parece absurdo dizer que qualquer coisa some e reaparece durante um intervalo em que não é percebida por ninguém, como a maçã que está trancada na geladeira e que sabemos que está lá, e que nos certificamos ao reabrir o aparelho, é porque, apesar de ninguém de carne e osso estar a percebendo, há um deus que o faz. Sendo onisciente, Deus percebe a maçã dentro da geladeira e isso faz com que ela se mantenha materializada. Dessa forma, Berkeley recupera o estatuto metafísico de uma deidade como doadora de sentido ao mundo. Deus é a emenda da vida que não pulula aqui e ali apenas quando são percebidas, mas estabelece um continuum chamado vida.

É claro que as teses de Berkeley são cheias de problemas, principalmente por conta deste último elemento ad hoc. Eu mesmo penso aqui: se há um deus onisciente, que diferença faz a materialidade ou não dos objetos? Se tudo estará sempre presente pela percepção divina, não há nenhuma contradição em se considerar as coisas efetivamente materiais. Mas suas ideias não são vazias, principalmente porque prefiguraram a fenomenologia kantiana e a representação de Schopenhauer, dentre outras loucuras filosóficas. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Aqui segue um compêndio quase completo dos textos de Berkeley:

BERKELEY, George. Obras Filosóficas. São Paulo: UNESP, 2010.

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