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Conforme havia dito no
meu texto anterior, a maneira como Samuel Johnson tratou da questão do imaterialismo
de Berkeley não podia pura e simplesmente ser tratada como uma falácia do argumentum ad lapidem. Rapidíssimo
resumo para quem não estiver com saco de ler (embora fosse bom): Berkeley,
filósofo irlandês, dizia que tudo o que existe no mundo é fruto de nossas
percepções, e que toma materialidade à medida que exista alguém observando sua
existência. Johnson contra-argumenta com um chute numa pedra, para comprovar
que a existência é concreta e pode ser sentida, até mesmo com dor. Embora toda
essa ceninha tenha dado origem ao nome da falácia, ela está mais para uma
redução ao absurdo, e nós vamos tentar entender o que é isso agora.
Vamos sempre ter que tomar cuidado ao afirmar que uma
redução ao absurdo é uma falácia. Não é. Aliás, em Lógica
e em Matemática,
a redução ao absurdo é um meio de prova que pode ser aplicado quando não é
possível realizá-la por técnicas construtivas e diretas, por isso, nesse meio,
recebe também o nome de prova por
contradição. Vou colocar aqui um exemplo
que pincei no YouTube:
é possível que exista algum número inteiro que seja par e ímpar ao mesmo tempo?
Não vale responder que o zero se encaixa nessa condição, já que ele representa
nenhum elemento. Há duas maneiras de se tratar o zero: ou ele é par, porque
qualquer número encerrado com ele é par; ou não é nem par, nem ímpar, e não as
duas coisas ao mesmo tempo. Mas como responder de maneira direta à pergunta
inicial? Afinal de contas, os números são infinitos… não poderia existir pra
acolá do horizonte alguma condição em que esse fenômeno ocorresse? Como não
temos como fazer prova direta, a ideia é provar que a hipótese é absurda.
Então vamos lá. Como garantir que um número X é par?
Multiplicando-o por 2. Não existe multiplicação por 2 que não resulte em número
par, bastando lembrar das boas e velhas tabuadas. Vamos chamar esse suposto
número de A. E para garantir que é ímpar? Basta somar 1 à mesma operação
anterior, ou seja, multiplicar por 2 e somar 1. O apelido desse número será B.
Para que seja par e ímpar ao mesmo tempo, o primeiro número deverá ser igual ao
segundo, ok? Em síntese:
Portanto, sendo x=x (princípio da identidade), teremos a seguinte equação:
Agora, é possível fazer aquelas clássicas continhas de equação, começando por isolar os elementos sem variáveis. No caso, o 1:
Vamos fazer um processo de minimação, dividindo tudo por 2, para remover os multiplicadores da conta e obtermos as variáveis isoladas. Teremos:
Acontece que estamos falando de números inteiros, e a subtração de um pelo outro pode até dar um número negativo, mas não um número fracionário, como é ½. Lembram da propriedade do fechamento da adição? De dois números de uma classe menor*, não obtemos resultados de uma classe maior, como são os números racionais em relação aos números inteiros. O resultado acima não pode ser obtido. É uma redução ao absurdo, e, por um caminho indireto, comprova que a tese inicial é inconsistente.A Lógica usa a mesma ferramenta para resolver suas questões,
e isso vem desde antes da Antiguidade Clássica, quando tivemos os registros de
Zenon de Eleia**, tido como criador do método dialético de argumentação.
Conterrâneo de Parmênides, fez causa comum com o fundador da escola eleática,
que foi um dos polos da discussão ontológica do século V aC. Afinal, o que é o
Ser? Uma constante mudança ou uma permanência absoluta?
A questão de Zenon era defender as teses do imobilismo de
Parmênides. Reciclando rapidamente: o principal embate que se deu na filosofia
pré-socrática foi entre Heráclito e Parmênides. Para o primeiro, o mundo era um
constante devir, ou seja, todo ser tinha embutido em si um vir-a-ser. O que
significa isso? Que nada no mundo tem constância. Nada é igual de um
segundo para outro, nada é igual de um metro para o outro, nada é igual em si
mesmo, nada tem uma essência imutável. Ou melhor, a essência do Ser é
exatamente a mudança.
Já para Parmênides a mudança é ilusão. Apesar de reconhecer
a variação e o movimento, ele pensa que nada disso modifica a essência do Ser,
que permanece sempre igual, sob pena de se tornar um não-ser, o oposto de si mesmo,
o que não pode ser possível. A variação é, portanto, um engano dos sentidos.
Acontece que a visão de Heráclito é duzentas vezes mais
intuitiva e próxima ao senso comum do que a de Parmênides. Afinal de contas,
nós vemos as coisas se moverem, vemos as pessoas envelhecerem, as frutas
apodrecerem, os mares se revoltarem e tantas outras comparações possíveis. As teses
de Parmênides precisam de explicações muito mais minuciosas e um nível de
abstração muito mais sofisticado. É com esse painel que Zenon tem que lidar.
Sua estratégia consiste em comprovar de maneira matemática a
ilusão do movimento. E é aí que ele elabora seus famosos paradoxos, de maneira
a reduzir ao absurdo a afirmação de que os seres se movem. Ele elaborou quatro
deles, que vou pincelar com velocidade não-parmenidiana:
Paradoxo da dicotomia – imagine que uma pessoa, ou um objeto,
ou qualquer coisa que se mova tenha que se deslocar até um ponto distante 100
metros de onde se encontra. Pensando dicotomicamente, para chegar ao seu
destino final, ele terá que percorrer primeiramente metade do caminho. Da
metade restante, terá que cobrir novamente a metade, e depois de novo, e de
novo, e de novo, sempre repetindo o mesmo rito. Como é possível fazer essa
divisão infinitamente, por menor que seja o espaço remanescente a ser dividido,
a conclusão de Zenon é que nunca se chegará ao destino final, e que a
movimentação é ilusória.
Paradoxo de Aquiles e a tartaruga – o herói grego Aquiles era
famoso na Grécia antiga por causa de seus feitos incríveis, mas, segundo Zenon,
ele seria incapaz de ultrapassar uma tartaruga em uma corrida. É um paradoxo
semelhante ao da dicotomia, mas aqui parte-se do suposto que há dois elementos
móveis envolvidos. Digamos que, por ser reconhecidamente mais rápido, Aquiles
dê uma vantagem à tartaruga. Ele partiria de uma posição A, e a tartaruga, mais
adiante, da posição B. Quando Aquiles chegasse à posição B, a tartaruga já
estaria na posição C, por menor que tenha sido a distância. Ao chegar em C,
Aquiles veria a casca-dura na posição D, e assim sucessiva e infinitamente. Por isso, conclui-se que o movimento continua
sendo ilusório, mesmo que os dois referenciais sejam móveis.
Paradoxo da flecha imóvel – vamos pensar em um arqueiro
disparando uma flecha na direção de um castelo qualquer. Partindo da premissa
de que a trajetória que a flecha desenha é composta por um lapso temporal que
tem vários instantes, é possível deduzir que a flecha ocupa, em cada um desses
instantes, um mesmo espaço, que corresponde exatamente ao seu tamanho. Ou seja,
durante todo o voo, a flecha ocupa sempre um espaço igual. Se o espaço é sempre
igual, ora, a flecha está em repouso em cada um dos momentos, e a soma dos
repousos não pode ser considerada movimento.
Paradoxo do estádio – os estádios gregos não eram usados para
futebol, mas para esportes atléticos, como o lançamento de dardos. Imaginemos
que dois lançadores arremessem seus dardos em sentidos opostos, em perfeito
paralelo e com a mesma velocidade. Imaginemos também que há um torcedor
exatamente na faixa central da arquibancada, observando o desenrolar dos
embates. Vamos agora imaginar dois momentos: no primeiro, as pontas dos dardos
estão cruzando exatamente a linha central, de onde observa tudo o torcedor. No
segundo momento, é o meio dos dardos que estão perfeitamente alinhados com
nosso amigo, de modo que os dardos estejam ocupando exatamente o mesmo espaço
horizontal. Com isso, a ponta de cada dardo estará paralela à pena do outro.
Assim, em relação ao torcedor, a ponta de cada dardo percorreu metade do
comprimento total do dardo, enquanto em relação à ponta da cada dardo, a outra
ponta percorreu o dobro do mesmo segmento, tudo isso ao mesmo tempo. Sendo
assim, a metade do tempo (perspectiva do torcedor) seria igual ao dobro do
tempo (perspectiva da ponta dos dardos), o que claramente é um absurdo.
E essas reduções ao absurdo de Zenon são falaciosas? Bem… são,
sim. Isso acontece, como podemos ver, até mesmo nas melhores famílias. A
explicação zenoniana de que se trata de ilusões são tremendos ad
hoc, do tipo desígnios divinos misteriosos ou do teorema de Chicó: não sei,
só sei que foi assim. Mas, mais ainda, Zenon desconsidera que esses cálculos
infinitos estão dentro de um contexto finito, que é o espaço entre os pontos
tantas vezes discutidos. Por mais que este espaço seja repartido infinitas
vezes, o fato é que ele é finito, e tem um escopo bem fechado. Afinal de
contas, a flecha alcança o outro lado, Aquiles certamente ultrapassaria a
tartaruga e assim por diante. Diz-se que Diógenes,
o cão, com seu estilo peculiar de praticar filosofia, refutava as teses de
Zenon simplesmente se levantando e andando de lá para cá, com alguns relatos de
que ele até mesmo se chocava contra as paredes para demonstrar o ridículo dos
paradoxos. Se isso é lenda, não sei. Mas um cara que empurra de lado o
imperador mais poderoso da época pra não atrapalhar seu solzinho, que sai
correndo com um frango pelado na mão*** e que procura por um homem nos mercados
da vida com uma lanterna em plena luz do dia não é muito incapaz de ter feito
isso mesmo.
Já pudemos observar então que a reductio ad absurdum só é
falaciosa quando se desvia de seu propósito de provar ou refutar uma hipótese
qualquer através de um erro em suas premissas. Por essa razão, seu uso é
plenamente válido quando não há meios diretos de se construir uma comprovação.
Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Há pouquíssima coisa preservada da obra de Zenon, e as
melhores descrições dos paradoxos estão no seguinte livro de Aristóteles:
ARISTÓTELES. Física.
Madrid: Gredos, 1998
*Lembram das aulinhas de matemática do ginasial? O conjunto
dos números naturais N está contido no conjunto dos números inteiros Z, que
está contido no conjunto de números racionais Q, que está contido no conjunto
de números reais R, sendo que este também contém o conjunto dos números
irracionais I, mais ou menos assim:
*** Conta-se que os discípulos de Platão tentavam fechar uma
definição precisa sobre o que seria um homem. Chegaram à conclusão de que se
tratava de um bípede implume. Ao se encontrar com esses alunos, Diógenes saiu
correndo com um frango despenado e gritando: “Vejam, este é o homem de Platão”.
Novamente reunidos, os discípulos ajustaram a definição para “bípede implume de
unhas largas”.
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