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terça-feira, 12 de novembro de 2019

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (31 - Matemática)

Olá!


Vou contar dois episódios rápidos da minha pouco emocionante história, só para criar clima e dar conta da minha relação para com determinada disciplina. Acompanhem, não vai doer.

1980, quinta série. Já naquela época existiam as Olimpíadas de Matemática, e a seletiva em cada turma era uma escolha pessoal do professor, que chamava cinco alunos de cada sala de acordo com os critérios que achasse justos. Eu não era um dos escolhidos, em boa parte porque era da turma do fundão, emeritamente excluída sempre que o assunto fosse representação. Não que fosse bagunceiro, mas eu ao menos me concentrava nas aulas e era meio que admoestado a lá ficar para dar apoio aos malandros autênticos, às vezes com rispidez. Com isso, meu acúmulo de pontos negativos se dava pela participação naquela malquista coletividade, o que dava um certo bode no corpo docente. Acontece que, no dia marcado para a prova, dois dos alunos escolhidos para a atividade arrumaram jeito de ficar doentes, e o velho professor Katian, que se parecia muito com o Sr. Miyagi, teve que ir na regra 3 e buscar substitutos. Mas quem? O sindicato do fundão me elegeu por aclamação, e, deixando os braços caídos em gesto de desânimo, o didata nipônico assentiu: "vamos, vai você mesmo". Estando lá, recebi um papel com muitas questões, acho que vinte. Descompromissado e sem pressão alguma, fui respondendo cada uma delas. Lembro muito bem que não eram testes de múltipla escolha, mas exercícios a serem desenvolvidos. Tudo feito, entreguei a prova e fui para casa mais cedo, o prêmio de participação.

Não sei quanto tempo passou, imagino que mais de um mês. Belo dia e o diretor, seo Toninho, entra na sala, ao lado do professor de matemática, citando-me nominalmente. “Fodeu, né?”, foi meu pensamento imediato. Mas a chamada foi para me parabenizar pela nota mais alta da Olimpíada, e ao mestre pelo preparo de excelência do aluno. É incrível… meu primeiro lugar não foi só das quintas séries: foi o melhor desempenho da escola inteira, manhã, tarde e noite. Classifiquei-me para a fase municipal e ganhei um diploma de participação, que procurei enfiado em meus livros, mas não achei para postar aqui. Passons. O professor Katian teve toda humildade do mundo para me pedir desculpas por não ter reconhecido meu talento com os números, ofuscado que estava pela caterva que me ladeava. Será que sofri alguma espécie de preconceito? Talvez. Reconheço que as meninas que gazetearam naquele dia tinham de fato notas melhores que as minhas. Mas vamos adiantar a história para…

2003, quinto módulo do superior em Processamento de Dados, na até então conceituada Fatec. Já era a terceira vez que eu arrastava aquela maldita dependência em Cálculo II. Passando a custo pelo tema limites e a fórceps pelas derivadas, emperrei de tal modo nas integrais que acabei ficando totalmente descompassado com o restante das matérias. Naquele ano, eu estava proposto a finalmente me livrar da professora Silvia, com sua capacidade de abstração admirável e assassina. Fui passando pelas aulas de maneira mais dedicada do que nunca, desprezando as demais disciplinas, em atenção máxima, anotando passo a passo os exemplos, mesmo que não os compreendesse por completo. Sua didática era imutável – propor um exercício para resolução no abrigo indevassável do cidadão, e depois desenvolvê-lo por completo em sala. Em certa vez, após anotar o exercício proposto, sentei no sofá de casa e fui desenvolvendo a integral, desenvolvendo, desenvolvendo… até chegar em um determinado resultado. Quem conhece integrais sabe que não há muito como tirar provas da conclusão a que se chega, como se fosse uma equação ordinária, mas como era um feito inédito para mim, cheguei a ficar com uma insinuação de sorriso na cara.

No dia seguinte, a conferência. Passo a passo, o quadro negro ia demonstrando meus acertos. A professora Silvia falava blá-blá-blá e batia, demonstrava blá-blá-blá e batia, rabiscava blá-blá-blá e batia, até que bateu certinho com meu resultado final. “Peguei a mão”, pensei inocentemente, muito mais infantil do que na proclamação de vitória na Olimpíada, vinte e três anos antes. Ledo engano, triste ilusão. O que diz a mestra? “Chegamos ao fim? Parece que sim, mas vejam vocês. O resultado que temos não é idêntico ao ponto de partida? (N. do A: Era verdade). Pois é, não resolvemos nada, e esse método não serve. vamos partir para outro”. Como assim, partir para outro? “Ora, ora, não existe uma só maneira de integrar, e nem todas funcionam em qualquer caso. Neste tipo de cálculo, precisamos inserir os componentes em uma matriz e blá-blá-blá” ... Sério. Eu fechei meu caderno, pedi licença e fui embora. Eu me sentia como o arqueiro que leva o gol contra depois segurar o ataque inimigo como nunca fizera antes. Aproveitei para desistir do semestre também. Ainda não era daquela vez que eu iria subjugar as integrais.

Falei tudo isso para demonstrar uma relação de amor e ódio. A Matemática tanto pode ser motivo de regozijo quanto de estertor, porque ela tem o duplo condão de demonstrar o funcionamento do universo e de carregar nossas mentes aos níveis mais elevados possíveis de abstração. Causa, desta forma, doses proporcionais de fascínio e terror. Afinal de contas, o que é essa tal de Matemática?



Matemática é um termo que, para variar, vem do grego, e significa alguma coisa como “arte do conhecimento”. Nos seus começos, tinha um objetivo bem intuitivo, que era o de contar. Note-se que era muito mais fácil rabiscar uma tabuinha por tantas vezes quanto houvesse de ovelhas em um redil do que fazê-lo visualmente, toda santa vez que se quisesse saber quantas estavam lá. Pode parecer pouco sofisticado que se substituísse ovelhas por pauzinhos, mas na primeira vez em que se fez algo do gênero, tivemos diante de nós uma revolução: a redução simbólica. As quantidades não são mais expressas pela amplitude que se apresenta aos nossos olhos, mas por um negocinho mágico chamado número, o átomo da Matemática. Desta forma, ela não nasce apenas como uma contagem, mas como uma maneira de representar grandezas através de elementos abstratos. A Matemática é operação intelectual que retira a substância concreta de um ser qualquer, para que interaja com os conceitos lógicos embutidos em uma mente. Não é legal isso?

Mais ou menos. Para além da mera contagem, a Matemática atinge a própria estrutura da realidade, o que permite pensar em regras universais que podem se destacar a qualquer momento do mundo concrescível. Pensem, por exemplo, nas pobres ovelhinhas de nosso minúsculo rebanho. Olho para ele e vejo que lá há cinco delas. Da mesma forma, na cesta de frutas vejo cinco laranjas, enquanto na porteira há cinco travessas de cada lado. O número cinco, por si só, não significa nada, mas traduz uma quantidade que pode ser replicada a qualquer outro objeto: ovelhas, laranjas, travessas, bois, árvores, folhas, casas, pessoas. Mas a percepção de quantidades não se limita apenas a objetos que podem ser colocados fisicamente à nossa frente. Na medida em que o patrimônio intelectual da humanidade foi se ampliando, começou-se a aplicar abstração sobre abstração, e passou-se a contar coisas intangíveis, como os temporais dias, meses e anos. E mais ainda: intuitivamente, foi possível descobrir que era viável operar estas quantidades. Em outras palavras, dava para somar as cinco laranjas que estavam na cesta com as oito que estavam na laranjeira, e tínhamos uma quantidade total de laranjas; ou podia-se somar estas treze laranjas com as sete mexericas sobre a mesa para saber que havia vinte frutas. Ou, mais ainda, somar a estas as quatro abobrinhas na geladeira para saber quantos vegetais tínhamos em casa. Notem como os gêneros vão se abrindo, e coisas diferentes sendo acrescidas à operação. Cinco mais oito mais sete mais quatro era uma estrutura que não precisava ser aplicada apenas à realidade que me circundava, mas a qualquer outra situação plausível. Essa articulação que permite adicionar, subtrair, dividir ou multiplicar consiste na Aritmética, a área mais elementar da Matemática. Já dá para ver que não é tão simplesinho assim.

Na medida em que se percebia que na natureza existia não só o caos, mas uma grande quantidade de repetições, também se notava que não é só a contagem e as operações que a mesma permite que induzem o pensamento matemático. Vejam as teias de aranha, a perfeição da sua construção concêntrica, sua proporção geométrica e a precisão dos entrelaçamentos. Vejam os favos das colmeias, como são apostos de maneira coerente de forma a estabelecer uma estrutura muito maior que uma unidade faz transparecer. Vejam as cascas dos moluscos e percebam como funciona a média de ouro, com seu número mágico, o 1,618… Veja a força que um simples ovo pode suportar, com um material tão frágil, simplesmente pela estrutura em arco que o mesmo possui. Agora transponha tudo isso para aplicações práticas, como respectivamente temos as tramas dos tecidos mais resistentes, as paredes de nossas casas, o design de monumentos ou as pontes em arco de metal ou concreto. A partir do momento em que foi possível traduzir matematicamente cada um desses fenômenos ocorridos na natureza, foi possível trasladá-los para constructos humanos.

Esse modo matemático de pensar interessou muito aos filósofos da primeira leva, os pré-socráticos, de modo que praticamente todos eles eram também geômetras, os matemáticos cuja preocupação essencial estava na maneira com a qual as formas e os sólidos podiam ser reduzidos a formulações. Já em Tales, o patrono dos pensadores, encontramos o pensamento matemático, que chegou ao paroxismo com Pitágoras, que elevou o número à condição de arché, o elemento constituinte fundamental de tudo o que existe. Seu feito mais famoso, o teorema que leva seu nome, nada mais é do que uma demonstração geométrica: o quadrado da hipotenusa (o lado mais longo de um triângulo retângulo) é igual à soma do quadrado dos catetos. Essa é uma asserção tão basilar que praticamente fundamentou toda a trigonometria, o estudo do triângulo, pelo simples fato de que medidas, distâncias e angulaturas podem ser traduzidos e transpostos através da utilização desta forma. Diz-se que, assombrado com o poder dos números, Pitágoras, ainda mais longe do que os considerar a arché, chegou mesmo a divinizá-los, tornando seu ideário uma espécie de seita.

A evolução das Ciências comprovou como a Matemática viria a ser essencial nas suas construções. Não haveria Astronomia, Mecânica, Ótica, Balística, Aerodinâmica, Cinemática, Resistência de Materiais, Ondulatória e suas inúmeras aplicações caso não houvesse uma ferramenta para discriminar seus funcionamentos e possibilitar a verificação e a predição, princípios que estão na raiz da medula científica. A própria Matemática é recursiva, sendo criadas constantemente novas formulações para ajudar a compreender e resolver outras. O próprio exemplo que está na figura da corujinha é um desses: o polinômio de Taylor, que permite chegar à primitiva de uma função derivada. Não vou entrar em detalhes, porque me é muito doloroso o tema, como já pude descrever nas minhas desavenças com as integrais, mas, se eu a conhecesse bem, talvez não tivesse me evadido tão pusilânime da aula da professora Silvia.

Eu reluto um pouco em reconhecer uma Filosofia da Matemática. Prefiro pensar que ambas são tão estruturantes do pensamento humano que acabam por caminhar em paralelo, muito embora possa-se considerar que haja um laço a uni-las: a Lógica. Todas as vezes que eu perguntava o porquê do uso intenso da Matemática nas grades curriculares, a resposta vinha sempre nesse sentido: pensamento matemático é pensamento lógico, da mesma forma que o pensamento filosófico. A Matemática está para as Ciências Exatas assim como a Filosofia está para as Ciências Humanas, e ambas são reconhecíveis na arte, na linguagem, em tantas partes, além de se imbricarem mutuamente. Portanto, prefiro não os colocar em um grau de subordinação, mas de coordenação entre si. Há sempre um pouco de Filosofia na descoberta de uma nova fórmula matemática, que nasceu da curiosidade de se conhecer o universo, assim como há um pouco de Matemática em cada nova especulação filosófica, ao se aplicar um encadeamento racional em uma proposição. Se me perguntam se gosto de Matemática, sou sincero em dizer que não, mas se me perguntam se isso é motivo para não a respeitar, digo que isso é uma loucura. São primas-irmãs nessa causa perdida chamada conhecimento.

Recomendação de canal:

É uma pena, porque a jovem Inês Guimarães não posta mais vídeos em seu canal do YouTube, mas o material que está lá é daqueles que provam como a Matemática pode ser insinuante. Ela é portuguesa de uma cidade homônima ao seu sobrenome, e o seu sotaque é único. Seu apelido é Mathgurl, já escreveu um livro sobre problemas matemáticos (que não vou recomendar porque ainda não o li) e espero que logo resolva seus perrengues para voltar a publicar vídeos.

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