Olá!
Não tem no mundo pessoas que já não encararam problemas com
a aplicação da linguagem. Eu mesmo já tropecei muitas vezes em minha própria
língua, como quem tropeça em uma pedra, de modo a conseguir problemas que eu
nem desconfiava que teria. E testemunhei muitos outros também. Para ilustrar
essa afirmação, vou contar uma pequena história.
Nos tempos em que eu pleiteava carreira artística, sonho de muitos jovens, os recursos eram muito mais escassos do que hoje em dia, mesmo para quem tinha grana (não era o caso). A banda na qual eu toquei mais tempo foi um comboio chamado Exílio, e obviamente já falei sobre ele neste blog. As oportunidades que surgiam para mostrar ao mundo nosso rock básico e distorcido eram pequenos festivais, já que showzinhos em bares exigiam músicas de terceiros, o que não era nosso objetivo. Queríamos tocar músicas próprias, com letras principalmente deste que vos fala e do Moacir, o membro mais velho da banda e que já tinha um pequeno acervo de letras que ficavam escrituradas em um velho caderno universitário. Vez por outra, lançávamos mão de algumas delas para popular uma música e trabalhar bons arranjos.
O Moacir já era casado com a Sandra, numa época em que
gravidezes ainda representavam enlaces matrimoniais. Ela era professora, e às
vezes fazia revisão das nossas letras, para ver se a liberdade poética não
causava nenhum assassinato gramatical. Houve uma ocasião em que a banca de um
festival qualquer exigia que se entregassem as letras escritas para os jurados,
e me apressei em digitar as nossas no computador. Para não fazer feio,
obviamente mandei à revisora Sandra antes de imprimir em definitivo (na furtiva
impressora matricial da empresa em que trabalhava). Uma das músicas, escritas
pelo Moacir, trazia o seguinte verso:
Você pode até achar
que minha vontade é só
De me apoiar nos
outros que me veem
Neste refrãozinho veio o único rabisco vermelho: não é “que
me veem”, mas “que me vêm”. “Ah, é?”, disse eu. Sempre achei que fosse veem, as pessoas que estão olhando,
como se o eu-lírico levasse em conta o julgamento alheio para apoiar as suas
decisões. Ela, professoral, disse que
fazia mais sentido se fosse vêm, como
se o gajo se aproveitasse daqueles que se aproximam de sua vida. Para
desempatar o jogo, o melhor árbitro é o pai da criança, e fomos ao Moacir para
lhe descobrir a intenção, e não tentar adivinhá-la.
O veredito me favoreceu. Só que deu DR no casal, por
incrível que pareça. Começou um tal de “você não me conhece mesmo”, “claro que
não conheço, você é uma coisa na escrita e outra na vida” e blá-blá-blá,
deixando um clima daqueles. É coisa que vai passando e hoje eles continuam
juntos, depois de trinta e tantos anos, sempre com uma dose de arranca-rabos.
Mas vejam como uma simples questão de linguagem afeta a vida das pessoas de uma
forma imprevisível.
Como já contei neste
texto, impulsionada pela necessidade que a Ciência tem de obter meios
seguros de expressão, a atenção sobre a linguagem ganhou tal atenção que acabou
virando uma área específica de estudos filosóficos. Os filósofos ditos
analíticos teorizavam que somente articulamos raciocínio através da linguagem,
e que a mesma traz um mapeamento
do mundo, incluindo aí não só o contexto físico, mas especialmente a
abstração. Dessa forma, para desvendar os princípios filosóficos fundamentais,
o caminho mais seguro era a análise da linguagem, de sua construção,
funcionamento e articulação com os sentidos mais abstratos. Talvez haja exagero
na dose, mas a Filosofia Analítica colocou na mesa, de uma vez por todas, o
quanto devemos olhar para o componente linguístico para solucionar vários
problemas que surgem à nossa frente. Entretanto, as armadilhas que a linguagem
nos traz são detectadas há milênios, porque sempre trabalhamos com a dubiedade
de quem emite uma mensagem e com a incerteza de quem a recebe, como já esmiucei
aqui.
Alguns dos melhores exemplos das dificuldades da linguagem
estão nos paradoxos. Estes são aquelas frases que bugam nossa cabeça,
especialmente pelo fato de que contrastam com uma lógica canônica. Por exemplo,
é paradoxal que uma religião pacifista defenda o uso de armas, mas não quero
descambar para a política. Então vou ficar adstrito à questão do paradoxo na
linguagem.
A linguagem é a ferramenta que dispomos para nos expressar.
Isso significa que não somente as palavras são usadas nessa tarefa, mas
qualquer meio que sirva para construir uma mensagem. Ocorre que são poucos os
meios concretos com os quais nós nos servimos para codificá-las, e fazemos
amplo uso de símbolos. Notem que entre um objeto e o símbolo que o representa
pode existir um desvão, e aí surge a contradição. Isso porque estabelecemos
convenções sobre a linguagem que podem causar muitas confusões, seja porque o
fazemos de maneira contraditória ou porque o símbolo é polissêmico. No primeiro
caso, podemos pensar nos episódios do Chaves, que chacoalha a cabeça para cima
e para baixo, símbolo convencional do "sim", e que com as palavras faladas
expressa "não", causando uma ambiguidade. No segundo, há nas inúmeras
palavras que possuem mais de um significado, como as raparigas que são mocinhas
em Portugal, e outra coisa no Nordeste.
Mas as ambivalências podem ser visuais também, como ocorre
nas ilusões de ótica, ou nas incríveis ilustrações de Maurits Escher, que fez
da dubiedade permitida pela linguagem a matéria prima de sua arte.
A mesma coisa acontece com a palavra. A linguagem só é
precisa quando mapeia de modo adequado o mundo, e tudo o que foge dessa correspondência
pode ser ambíguo. A melhor amostra vem com os paradoxos circulares, ou
antinomias, brincadeiras linguísticas que servem, fundamentalmente, para
demonstrar as falhas da linguagem.
Vamos mencionar alguns exemplos. Creio que o mais clássico
de todos é o paradoxo do mentiroso, que se resume no seguinte enunciado:
"Estou mentindo". Essa frase é verdadeira ou
falsa? Se for verdadeira, significa que estou mentindo, e, portanto, não posso
estar dizendo a verdade. Se for falsa, indica que estou dizendo a verdade, e
portando não posso estar mentindo, o que contradiz a afirmação reputada por
verdadeira, e assim ficamos dando voltas, ad
nauseam.
Outro paradoxo bastante conhecido é o paradoxo do catálogo.
Imagine um catálogo que conteria todos os catálogos do mundo. Ele deveria
conter a si mesmo? Se a resposta for sim, deveria existir outro catálogo onde
ele próprio está catalogado, externo a si mesmo, e se não for estiver
catalogado, ele não contém todos os catálogos do mundo.
Outro. Em uma cidade qualquer perdida nesse mundo, há uma
estranha lei. Todos os homens devem se barbear, e só há duas formas possíveis
de fazê-lo: ou o caboclo se arranja e se barbeia sozinho, ou recorre ao único
barbeiro da cidade, que faz a barba de todos os homens que não se barbeiam por
si próprios. Quem deverá barbear esse barbeiro? Não pode ser ele mesmo, porque
ele barbeia apenas as pessoas que não se barbeiam a si, e não pode ser outra
pessoa, porque há apenas ele como barbeiro na cidade.
Mais um, só para fechar. Todos conhecem o boneco Pinóquio,
cujo nariz cresce todas as vezes em que ele mente. Se ele disser “meu nariz vai
crescer agora”, o que acontecerá? Se o nariz dele de fato crescer, ele terá
dito a verdade, e não haveria motivo para o crescimento, já que ele não mentiu.
Entretanto, se o nariz não crescer, significa que ele teria dito a verdade. Só
que a verdade que ele disse é que o nariz cresceria. Dessa forma, teríamos uma
mentira.
A melhor resposta para um paradoxo autorreferencial é que,
apesar de possuir a forma lógica de uma proposição, ele não é uma proposição de
fato. Notem que os paradoxos ferem um dos principais mais basilares da lógica,
que é o da não-contradição, que enuncia que qualquer coisa não tem como ser e não ser ela mesma em uma mesma relação. Em uma perspectiva dicotômica,
nenhuma declaração pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo, ou seja, os
paradoxos não são proposições de fato, apesar de assumirem uma forma lógica
aparentemente válida. É a mesma coisa que afirmar: às três da tarde de hoje,
vou estar no Rio de Janeiro e em São Paulo. A não ser que coloquemos o ad hoc
da ubiquidade, o resultado da tabela verdade derivante sempre vai ser falso. É
isso o que acontece com os paradoxos do mentiroso, do catálogo e os outros.
Mas eu ainda queria aproveitar o tema para falar de outro
paradoxo e remeter ao pequeno
guia das grandes falácias. Trata-se de uma suposta discussão entre os
escritores James Boswell e Samuel Johnson, no que diz respeito ao tema do
imaterialismo, defendido pelo bispo George Berkeley. Como já
escrevi sobre este assunto, recomendo sua leitura a quem se interessar, mas
segue aqui uma rápida sinopse. Em um momento onde havia bastante debate entre
empiristas e racionalistas sobre a primazia da razão ou da experiência na
aquisição de conhecimento, Berkeley propôs uma abordagem inovadora e insólita:
os objetos do mundo só existiam enquanto pudessem ser percebidos por alguém, ou
seja, eram sempre frutos de uma mente, ideia sintetizada na frase “ser é ser
percebido”. No debate, Johnson afirmava a situação paradoxal, dado ao fato de
que as coisas estão ali. Entretanto, Boswell, apesar de concordar com o amigo,
entendia que era uma tese impossível de refutar*, já que não havia como provar
verdadeira ou falsa uma afirmação que só residia na subjetividade de quem a
profere. Johnson, meio irritado, achega-se a uma pedra e senta-lhe uma bica
digna de zagueiro uruguaio, dizendo “eu a refuto assim”.
Isso dá origem a uma falácia de dispersão conhecida como apelo à pedra, ou argumentum ad lapidem, que usamos a torto e a direito, no mais das
vezes sem nem perceber.
É o tipo do argumento peremptório, que encerra o assunto
utilizando uma pretensa autoridade ou ridicularização de uma ideia proposta. No
caso mencionado acima, Johnson não se preocupa em desmentir ou
contra-argumentar a tese do imaterialismo de Berkeley. Poderia dizer que ela
vai contra qualquer intuição que se possa ter, que objetos escondidos podem ser
comprovados como existentes por outro meio que não a percepção ou sei lá o que
mais, mas ele prefere chutar a pedra, o que não invalida a hipótese
berkeleyana, apenas a leva para o lado do risível.
Outra maneira muito comum de usar o ad lapidem é o famoso
argumento contra o Zequinha, o curioso personagem do Castelo Rá-tim-bum. Há
quem não conheça o menino, então vou defini-lo. É a típica criança de seus
cinco ou seis anos de idade, que vive aquela fase das perguntas infinitas,
encadeadas entre si. Quando seu ciclo se estendia para além da conveniência,
recebia a resposta altíssona e conjunta: “Porque sim, Zequinha”! E o próprio
Telekid, personagem de Marcelo Tas, dava a resposta mais justa e rápida ao
apelo à pedra: “porque sim não é resposta”.
O apelo à pedra é, portanto, daqueles argumentos que nem
podem receber esse nome, e que são proferidos única e exclusivamente para
encerrar um assunto qualquer, para colocar uma pedra sobre um tema geralmente
incômodo, ou onde não se queira demonstrar o desconhecimento.
É óbvio que a bicuda na pedra de Johnson não pode ser
colocada de maneira tão evidente no campo das falácias, porque ela carrega
consigo algum significado que vai além do ato. Não deixa de ser uma forma de
redução ao absurdo, mas, sobre isso, nós vamos falar no nosso próximo texto.
Aguardem.
No mais, e voltando ao começo, quis demonstrar aqui como a
linguagem, embora seja impossível de descolá-la dos fenômenos humanos, um dos
mais significativos de todos, pode receber usos duvidosos, que, in extremis, faz mais mal do que bem.
Para além de inocentes jogos de palavras, a linguagem mal utilizada fica a
serviço de quem não sabe usá-la, ou, pelo contrário, usa-a para o engodo.
A linguagem por si mesma não é o busílis. É como as redes
sociais, que não são um mal em si, mas que permitem todo tipo de abuso. As
redes deixam reencontrar amigos antigos e distantes, dar comunicados rápidos e
abrangentes, mas também serve para espalhar notícias falsas, ser palco de
tretas insuportáveis, retomar conspirações e destruir reputações. Elas são
extensões da linguagem, e temos notado o quanto precisamos cuidar delas como
cuidamos da rua em que moramos. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Vamos à citada biografia de Samuel Johnson, um cara polêmico
e interessante, que criou uma das frases mais dignas de reflexão: “o
patriotismo é o último refúgio do canalha”.
BOSWELL, James. A Vida
de Samuel Johnson. Edição independente para Kindle, 2019.
* Embora Boswell não estivesse ciente, estava antecipando a
doutrina da falseabilidade
como critério de cientificidade.
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