Eu faço força para acreditar na meteorologia, mas ela não me
ajuda. Pouco antes de viajar, fui consultar um site de previsão do tempo, que
me garantia clima firme para os primeiros dias da minha folga, e chuva intensa
a partir do momento que passo a relatar agora. O resultado foi exatamente o
inverso: muita chuva nos três primeiros dias, e, embora o céu se mantivesse com
o cenho carregado, parecia estar mais estável hoje. Ora, direis, você só presta
atenção quando a previsão é furada. Quantas e quantas vezes os esforçados
meteorologistas acertaram seus vaticínios e você fez vista grossa? Eu sei, eu
sei... O nome disso é viés de confirmação e é um efeito extremamente comum no
psicológico humano. Já prometi falar sobre isso mais de uma vez, mas também não
será agora. Vou me limitar a reconhecer que o trabalho de previsão climática é
importante e mais acerta do que erra, mas há um velho ditado que preconiza: se
faz sol, leve o guarda-chuva; se chove, faça como melhor lhe convier. Imbuído
neste espírito, deixei o guarda-chuva no porta-malas e me mandei para Delfim
Moreira.
Quando fui para Marmelópolis,
já havia passado por aqui, onde cheguei a aventar a hipótese de me hospedar.
Acabei optando por Itajubá por uma questão de praticidade (e preço), mas gostei
bastante do lugar. O nome da cidade remete a um dos presidentes da Primeira
República, e que nasceu na região (mais precisamente na já relatada cidade de Cristina).
É um dos políticos que fez parte da alternância entre paulistas e mineiros no
poder central do Brasil, como já narrei em meu texto sobre Passa Quatro. O nome original do local era Descoberto do Itagybá, nome dado pelos
bandeirantes que desbravaram aquele território, muito maior do que o atual. A
esta porção é que reservaram o nome de Delfim Moreira, registrado em sua antiga
estação de trem.
Assim como em Marmelópolis, o negócio de processamento de
frutas era próspero por aqui. Isso levou grandes indústrias para a região,
todas desativadas hoje, dadas as dificuldades de transporte e a desvalorização
do preço dos marmelos e goiabas. A antiga fábrica da CICA é a mais bem
conservada delas, e abriga equipamentos culturais, bem ao lado da prefeitura.
Lembro de seu slogan: “se é CICA, bons produtos indica”.
Outro grande empreendimento era a indústria Peixe, da qual
nada localizei. O que há, em razoável estado de conservação, é a Colombo (“a qualidade
de sempre”), famosa por sua geleia de mocotó. Um bom tapinha a deixaria em
ordem. Dos doces, só restaram as receitas caseiras e a produção artesanal.
A cidade é toda em desnível, dada sua posição em área
montanhosa. A própria igreja matriz, dedicada a Nossa Senhora da Soledade, fica
a meio caminho entre o alto de um monte e o fundo do vale, e, ao contrário do
que costuma ocorrer, fica em posição longitudinal em relação à via principal.
Mais incomum ainda é sua torre, muito alta e destacada do
corpo principal da igreja. Gostaria de ter entrado nela para conhecê-la, mas
estava tudo fechado. À frente, e complementando o conjunto, o indefectível
coreto.
Talvez a explicação para o fechamento estivesse no outro
lado da cidade, onde fica uma igreja cuja padroeira é Nossa Senhora Aparecida.
Bem na véspera do feriado, os preparativos para a festa estavam fervendo, com
montagem de barracas e equipamentos de fazer comida.
Ao contrário do que havíamos feito no dia anterior, achamos
melhor não estorvar ninguém com papos furados e fomos explorar outro nicho da
cidade, bem mais recente: a cerveja artesanal. Na rua da estação, existe a
cervejaria Hop, de visual moderninho, e que só abre nos finais de semana.
E bem perto da última igreja há a cervejaria mais famosa de
Delfim Moreira, a Kraemerfass. A casa é construída toda sob temática alemã, com
sua arquitetura típica, e a microfábrica fica lá mesmo, em um dos predinhos
erguidos em tijolinhos.
A cerveja é realmente boa, principalmente a dunkel, mais escura. Aqui, estamos
degustando uma tipo Viena. Ingenuamente, perguntei para a mocinha que nos
atendeu porque eles não fazem cerveja do tipo IPA, tão saborosa e na moda. A
resposta foi simples: IPA é uma cerveja inglesa, e a casa é de inspiração
alemã. Toma, burro.
Estou me perdendo cronologicamente. A história da cerveja
foi à noite, mas antes disso, durante o dia, fomos aproveitar o estio para
andar pela parte campestre. Para quem vem de Itajubá, bem antes do núcleo urbano,
há a cachoeira do Ninho da Águia, pedregosa e cercada de mata densa.
Fica inscrita em uma propriedade que se trata de um clube de
campo, construído às margens do rio
Santo Antônio, próximo ao distrito de Água Limpa, onde também se pode encontrar
piscinas, quiosques, espreguiçadeiras e um grande restaurante.
Espelhando o relevo da região, o curso d’água se move por
grandes desníveis, o que gera uma grande quantidade de saltos e quedas. É
bonito de ver e perigoso de entrar, embora haja alguns remansos possíveis, como
este abaixo.
O lugar mistura ambientações naturais e construídas. Há
trilhas que levam ao topo da cachoeira, entrecruzando flora nativa. Estando lá,
dá para perceber o formato circular que acaba por inspirar o nome dado ao
local.
O rio Santo Antônio tem uma série de ilhotas ligadas por
pinguelas, o que permite observar as várias bromélias que estão lá plantadas,
em simbiose com as árvores hospedeiras, que abrigam borboletas às dúzias.
Eu e a patroa ficamos bem uma hora sentados admirando o belo
lugar, e aproveitamos para pegar umas dicas. Bem mais próxima do centro, fica a
cachoeira do Itagybá, mais rústica e embutida em meio natural. É bem verdade
que se trata de propriedade particular, mas o acesso é franqueado livremente
através de trilha.
O caminho até a cachoeira, apesar de não ser longo, é lindo.
Está crivado de bichos de toda espécie, em especial por grilos e gafanhotos, em
uma mata que vai se adensando à medida que se aproxima da margem da queda
d’água.
A cachoeira é suprida pelas águas do ribeirão do Taboão.
Aqui, finalmente, foi possível gelar as costas, e ficamos um bom tempo
observando a água que corre e o cantar dos passarinhos.
Tudo muito romântico, mas o pessoal da cidade nos cantou a
bola: se você quer ver como o Itagybá é bonito, precisa pegar as trilhas e
vê-lo do alto, o que fiz. Para tanto, há um conjunto de trilhas que se chama
Cruz das Almas. Credo! É um caminho que tem trechos de mata bem fechada, com
algumas ladeiras um bocado íngremes.
Não sei exatamente porque o monte tem esse nome. Devo supor
que é por causa do cemitério que fica nas imediações, mas não dá para ter
certeza, porque não fica tão perto assim. De qualquer forma, há várias cruzes
dispostas pelo caminho, meio no estilão Vila Formosa. Credo2!
Quando me disseram da existência de uma gruta a meio caminho
do topo, imaginei uma caverna ou uma escavação na pedra, alla São Thomé das Letras, por isso fiquei procurando a tal. Na verdade, é uma
construção em pedras, onde se encontra uma imagem de Nossa Senhora de Lourdes
(a mesma de Maria
da Fé).
No ponto culminante, depois de uns dois quilômetros de
caminhada (acho), temos aquilo que é o maior distintivo desta mata: um grande
cruzeiro fabricado em ferro, ornado internamente com várias cruzes menores. Em
tese, deveria ser visível ao longe, mas a selva mais cerrada não permite essa
facilidade.
Pois é daqui, depois de passar pelo buraco de uma cerca de
arame farpado, que é possível vislumbrar a cachoeira do Itagybá por cima, dando
uma ideia muito mais precisa de sua dimensão. Realmente, o conjunto de quedas
visto de perto não dá ideia exata de real tamanho.
Ainda andamos pelos lados dos bairros de São Bernardo e do
Barreirinho, mas a garoa que voltou a me perturbar pode não ter sido suficiente
para me impedir de amassar barro, mas achei pouco salutar para minha máquina
ficar sendo molhada a esmo. Mas a formiga filosófica veio me fazer coceiras na
consciência. Muitas das trilhas prometem te levar para algum lugar em que você
espera confirmar o que pensa encontrar. Outras, você encontra algo oposto,
inesperado, regozijante ou decepcionante. Outras ainda te levam nem se sabe bem
para onde. Essas sendas por vezes tortuosas, por vezes nebulosas, por vezes
circulares, por vezes objetivas e por vezes ilusórias são a melhor metáfora que
consigo encontrar para os caminhos do conhecimento. E, na medida em que
chegamos ao seu fim, percebemos que há sempre mais e mais caminho. É possível
haver limite? É possível a totalidade do conhecimento?
A resposta é: não sei. Mas estou longe de ser o primeiro a
afirmar isso. Há mais de 2000 anos os sofistas
já faziam da impossibilidade de conhecer um instrumento para se voltar os olhos
à retórica e ao seu proveito para a vida política, pouco ligando para um
verdadeiro valor absoluto da realidade. Mas é um pouco depois, no período do
Helenismo, que o ceticismo foi
elevado a categoria ética, através do pensamento do grego Pirro, da cidade de
Élida.
Não se sabe muita coisa sobre sua formação, mas Pirro era um
homem de cultura em sua terra. Em um determinado momento, tomou parte da
expedição de Alexandre Magno para o Oriente. Por lá, conheceu civilizações tão
consolidadas quanto a grega, como os persas, os afegães e os indianos. Todos
estes povos possuíam seus sábios e sistemas de conhecimento, o que logo fez com
que Pirro e companheiros confrontassem tudo aquilo que sabiam com esses novos
saberes. Estando bem longe de um espírito dogmático, Pirro percebeu que, mesmo
com premissas e conclusões bastante diversas do que obtinham os gregos, os
sistemas de pensamento orientais eram igualmente válidos. Sua conclusão era a
mesma dos sofistas – é impossível conhecer, não existe essa coisa da plena
certeza. Sua novidade está na transposição da categoria epistemológica para
abordar a predisposição ética. Vamos vê-la.
É inegável que os seres possuem uma natureza e que essa
natureza possua em si mesmo uma verdade. Afinal de contas, as coisas estão aí,
para que possamos percebê-las. Mas quais são as nossas condições de atingir
essa verdade? Como vejo as estrelas e posso assegurar o que elas são de fato?
Como designo seguramente o que é um ser humano, além de um bípede implume? Para
que fosse possível chegar a qualquer conclusão indisputável, seria necessário
que a ferramenta humana que dispomos, a razão, estivesse livre de qualquer tipo
de filtro ou interferência, como os dogmas que aprendemos ou as opiniões que
adquirimos. O problema é que tal pureza do intelecto é inatingível. Cada um de
nós possui um tal conjunto de perspectivas que nos tornam únicos, e uma
minúscula fração de divergência nos juízos é suficiente para que a ambiguidade
se estabeleça. Pirro não deixou nada escrito, mas outro cético, Enesidemo,
sintetizou em dez pontos o que torna instável a razão. O rolo é que também não
temos registros dos saberes de Enesidemo, então nos resta aquilo que foi
coligido por outros céticos, como Sexto Empírico, que registrou esses tropos. A
premissa básica é movida pela percepção que vem dos sentidos.
1. Os homens não são diferentes dos animais na questão da
percepção. No entanto, os sentidos são muito distintos quando pensamos em sua
acurácia. O cão tem olfato privilegiado, assim como o morcego tem audição
insuperável e a águia, uma visão muito aguçada. Isso faz com que cada espécie
viva adquira o cosmos de modo diferente da outra;
2. Cada homem é constitucionalmente diferente do outro. Uns
são mais altos, outros mais baixos; uns são mais gordos, outros mais magros;
uns mais ossudos, outros mais débeis. Esses pares dicotômicos podem ser levados
à exaustão e combinados entre si, de modo infinito;
3. Cada órgão do sentido tem características próprias. É de
se supor que a visão e a audição consigam captar sensações à distância,
enquanto o tato e o paladar necessitam de contato para obtê-las. Além disso, é
de se imaginar que há órgãos mais desenvolvidos que outros em diferentes
pessoas, o que faz com que percebam melhor;
4. A disposição de um indivíduo muda a forma como ele
apreende os objetos. Uma pessoa sonolenta não vê as coisas do mesmo modo que
alguém bem desperto. Um medicamento pode turvar a vista da pessoa, e sua
apreensão é outra com relação a um momento saudável;
5. A posição do objeto influencia na perspectiva que temos
sobre ele. É diferente ver algo de perto ou à distância, centralizado ou
lateralmente, no mesmo plano ou acima dele (lembram dos pontos de vista da
cachoeira do Itagybá?);
6. Os objetos nunca são apresentados puros diante de nós,
exigindo um esforço
fenomenológico para isolá-los. No entanto, é sempre árduo de fazê-lo. Um
simples iogurte, por exemplo, pode estar em uma mesa, uma gôndola ou uma
geladeira, só ou com outros alimentos; pode ser provado antes ou após o almoço,
ou em jejum; pode ser colhido com uma colher de plástico ou de metal, ou bebido
direto no copo. Ou seja, a sensação é sempre uma mistura ou uma combinação de
sensações;
7. A quantidade e a forma com as quais um determinado objeto
se apresenta a nós interfere diretamente na maneira com a qual o apreendemos.
De fato, é bem simples imaginar as diferenças entre vapor, gelo e água líquida.
Tudo é água, mas apresentada em diferentes estados, com diferentes maneiras de
serem percebidas pelos sentidos;
8. Há uma relação entre o objeto que é estudado e o sujeito
que o pesquisa. É mais possível conseguir neutralidade quando algo não me diz
tanto respeito, mas isso afeta o meu interesse, que se torna menor. A recíproca
é verdadeira. Imagine que estou pesquisando sobre o meu todo-poderoso Timão.
Enviesadamente, vou pesquisar tudo o que estiver ao meu alcance, até o fundilho
do baú. Se a tarefa for analisar o XV de Itapipoca, talvez eu consiga fazer um
bom trabalho, mas haverá o limite do seu cumprimento, e pronto;
9. A frequência com que ocorrem os fenômenos também
interferem na maneira como os absorvemos. Uma novidade pode aumentar muito o
meu interesse, mas sei pouco sobre ela, e talvez demore muito para que se
obtenha uma nova experiência;
10. Finalmente e mais importante. Os homens são persuadidos
em suas idiossincrasias por seus costumes e opiniões. Achamos estranhas a
poligamia e a poliandria? Há povos que não pensam assim. Tem costumes que derivam
de crenças e vertem para leis motivados por suas próprias histórias e razões,
alheias a nós, e assim nascem aparatos dogmáticos como as Religiões, que ditam
regras imutáveis e discricionárias.
O que temos é a acatalepsia, termo grego usado pelos
pirrônicos para indicar a impossibilidade de se chegar a verdade. No entender
dos céticos, qualquer argumento pode ser contraposto por outro, com igual peso
e validade. Não há, por conseguinte, uma hierarquia possível entre definições
de verdade, porque sempre haverá a influência dos dez tropos citados acima. Quando
postos diante de todas estas encruzilhadas, o cético conclui que só resta a
suspensão do juízo, a epoché. Este é o único caminho para
uma tranquilidade que sustente a paz de espírito.
Se a vida boa é uma procura constante pela verdade, ela se
torna igualmente impossível. Mas, se a verdade é inatingível, isso não
significa que o caminho não exista. Ele é trilhado através de uma “arte”
desinteressada por um objetivo escravizante, um constante duvidar que representa,
no fundo, uma liberdade de escolha quando nos vemos diante das opções. Se a
nossa preocupação não é com o objetivo final, o prazer passa a residir no
próprio meio em que o buscamos, como a trilha que se percorre sem a necessidade
de se ter um porquê. A beleza está no próprio caminho, assim como nas veredas
de Delfim Moreira.
Recomendação de leitura:
Como se pode deduzir do que eu mencionei acima, é muito raro
encontrar escritos de uma época tão distante. Pirro não nos legou escritos, mas
Sexto Empírico sintetizou o pensamento da escola cética de modo a termos um
retrato consistente daquilo que eles podem nos ensinar.
EMPÍRICO, Sexto. Contra
os Retóricos. São Paulo: Unesp, 2013.
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