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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Pequeno guia das grandes falácias – 54º tomo: o ignoratio elenchi (conclusão irrelevante) e a distorção de informações verdadeiramente relevantes

Se te gusta de café com leche, por debajo de la puerta te atiro um ladrillo - tia Antônia

Olá!

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Todo mundo já teve um amigo chato, não é mesmo? Um ou vários. É aquela velha história: você começa a ter uma conversa casual com uma pessoa qualquer, essa conversa acaba sendo agradável de alguma forma e vai se repetindo. Com o tempo, o novo amigo em questão vai se revelando e o que era razoável vai se tornando tedioso, angustiante ou revoltante, e tudo o que você quer é se afastar, amargando um arrependimento pela falha no detector de aborrecimento. Mas o camarada já grudou, e você precisa aproveitar uma brecha qualquer para se ver livre do incômodo. A historinha que vou contar agora é uma homenagem a todos os chatos do mundo.

Vamos nominar meu amigo simplesmente como M. Eu costumava chegar um pouco mais cedo no serviço por conta do inferno do ônibus. Era aquela coisa: o tempo justo para chegar era ingrato. Qualquer chuvinha mal dada, e lá ia eu picar o cartão além do horário; se eu saísse mais cedo, chegava muito cedo; se saísse um pouco mais tarde, ora, chegava ainda mais tarde. Como não podia ficar me dando ao luxo de ter descontos no salário, optava pelo primeiro. Passava no boteco para tomar um cafezinho e subia lentamente a escadaria do trabalho, onde me punha a estudar, ler ou simplesmente imitar lagarto, aproveitando a oportuna solidão. Depois de um bom tempo nessa prática, M chegou mais cedo um dia, e ficou admirado com minha presença, até um pouco sem jeito. Ele queria usar o scanner da sala para digitalizar um livro, o que não dava para fazer sob as vistas do chefe. Fez um rodeio imenso para me explicar sua necessidade, no que lhe tranquilizei – não tenho a menor intenção de denunciar ninguém que não me prejudica. Como o serviço não podia ser feito todo de uma só vez, meu caro colega chegou uma série de vezes mais cedo, e foi fazendo sua tarefa a prestação. Com isso, papo vai e papo vem. A princípio, nada de mais, só um pouco das aflições recorrentes do contribuinte com as namoradas que ele não conseguia, e, quando conseguia, não mantinha por mais de um mês.

Na maior parte das vezes, eu dava respostas evasivas, do tipo “é assim mesmo”. Entretanto, não sei o que eu falei que acabou me tornando uma espécie de guru para ele, e M começou a chegar mais cedo mesmo com sua digitalização completa há tempos. Ignorando minha compenetração na leitura ou enlevo no sono, o cidadão começou a me pedir toda sorte de conselhos, algo que eu abomino com todas as minhas forças. Comecei a dar umas patadinhas de leve no começo, já que a boa educação que minha mãe me deu me impedia de ser muito drástico. Só que meu caro M confundiu isso com firmeza de caráter e passou a me admirar. “Você diz o que eu preciso na minha cara”, sofismava o sacripanta.

Isso transcorreu por um bom tempo, a ponto de me fazer reavaliar a chegada mais cedo. Passei a esperar no bar, mas lá ele também me descobriu. Eu aumentei o nível de descortesia, pedindo que não me perturbasse mais com suas inseguranças. Eu ficava um pouco consternado, imaginando quantas vezes eu também não era chato, e o quanto eu podia estar sendo um ponto de apoio válido, e, no fim e por fim, acabava dando um mínimo de atenção às aflições do meu consulente. Mas um belo dia veio o pingo que transborda o balde. A irritação crescente baixou meus níveis de tolerância lá para o zero, e a lengalenga começou mais cedo. Naquele dia em especial, ele chegou especialmente agitado, e nem tive tempo de tomar meu primeiro copo de café. O caso era o seguinte: meu “amigo” morava em um belo apartamento na Vila Mariana, próximo ao metrô, deixado por seu pai morto havia uns bons dez anos. Em um dos cômodos, foi montada uma sala de cinema, com tudo o que havia de melhor na época – home theater, oito caixas de som espalhadas pelo cômodo mais um subwoofer, televisão de não sei quantas polegadas, um datashow no teto projetando para uma parede especialmente preparada para ele, uma aparelhagem de som que eu nunca ouvi falar o nome e, no centro de tudo, uma poltrona daquelas de nave espacial, com regulagem de inclinação, altura e o escambau. Era o orgulho do menino, que contava para deus e o diabo sobre as vantagens de se ter tanta potência sonora em um espaço restrito, para obter a melhor sonoridade alcançável.

Ele estava de namoro novo, e tinha levado a pobre menina em sua casa pela primeira vez no último final de semana. Ele apresentou a mãe e o imóvel, com ênfase na precitada miniatura de cinema, para qual ela deu limitada bola. Na segunda seguinte, ele chegou na sala ainda antes que eu, o que era péssimo sinal.

É difícil transpor o diálogo aqui, então tentarei manter basicamente a essência do que foi dito. O aflito M contou toda a cantilena que eu já disse logo acima, dando uma ênfase quase desesperada no fato de a menina não ter ligado para o tal quarto. Eu, ainda paciente, fiz a única pergunta cabível, apesar da grande complexidade: “Ora, e daí?”. Para obter a seguinte resposta:

“Se ela não gosta das coisas que eu gosto, quer dizer que ela não gosta de mim”.

Pus as duas mãos na cara por alguns segundos, expliquei a ele no tom baixo de voz que caracteriza meu emputecimento dizendo que há meses eu o ouvia diligentemente, que perdi a oportunidade de estudar, ler ou simplesmente babar na mesa para lhe dar atenção, que lhe dei conselhos para ser mais racional com relação aos seus próprios sentimentos e, em vista de tal resultado, nada mais havia a fazer com um jumento de tal espécie, e lhe pedi encarecidamente para nunca mais me dirigir a palavra. Pelo menos isso funcionou.

Se eu estivesse com a paciência em dia, poderia ter explicado ao M que ele estava cometendo um enorme erro de lógica, uma falácia informal do tipo non sequitur (algo como "não segue que"), como a afirmação do consequente ou a negação do antecedente, conhecida como conclusão irrelevante ou ignoratio elenchi. Ao contrário das duas citadas, no entanto, o problema não está no desenho do argumento, mas no apego a uma linha paralela que leva à conclusão em relação às premissas. No caso do meu amigo, a conclusão é a de que a menina não gosta dele porque ela não aprecia seu quarto de som. De fato, o desprezo dela faz parte das premissas, mas a conclusão a que se chega não tem relevo lógico pelo que se pode depreender das mesmas. Uma conclusão mais relevante seria dizer que a moça em questão não curte cinema em espaços exclusivos, e não que ela não gosta de quem gosta dessas coisas. O termo em latim explica isso: ignoratio elenchi, em uma tradução pra lá de livre, significa ignorar a refutação, ou seja, a própria leitura das premissas é prova contra a conclusão, porque uma coisa não tem a ver com a outra, embora haja alguma forma de correlação. E é esse fato que dá uma certa maquiagem de verdade ao argumento. Vejamos: as pessoas envolvidas são as mesmas, o ambiente onde o fato se desenrola é o mesmo e o sentimento movido também é o mesmo, ou seja, mesmo que a conclusão não faça muito sentido, ela parte do mesmo universo, e isso pode confundir quem recebe essa mensagem. Quando alguém falava algo desse tipo, a vetusta tia Antônia, do alto de seus quase cem anos, soltava a frase da epígrafe: se você gosta de café com leite, por baixo da porta te atiro um tijolo.

Mas podemos ter problemas mais sérios com esse tipo de conclusão irrelevante, que vai muito além do inocente sentimento distorcido de um menino de quase quarenta anos. Digo isso relativamente à recente polêmica das eficácias das vacinas contra o coronavírus, mais especificamente a denominada CoronaVac.


Já começo dando a letra: não há virgem nesse pardieiro. Mas vamos lá. As pessoas de bom senso do Florão da América esperavam ardentemente pela entrega de uma vacina para resolver a questão da pandemia, e guardavam muita expectativa com relação àquelas que vinham sendo testadas em solo pátrio. CoronaVac à frente, certos governantes passaram a posar de paladinos do amor ao povo e respeito às ciências, quando não estava fazendo nada mais do que a obrigação de alguém à frente de um poder. Outra turma, movida por algumas autoridades dadas a negacionismo científico e outras conspirações tão ou mais votadas, encampou uma espécie de resistência misturada a deboche e desprezo com relação à vacinação, usando agravos relativos à China. Entre ambas, o povo.

Os estudos foram acelerados compreensivelmente a níveis nunca dantes vistos, para que os resultados viessem logo e as estratégias de aplicação fossem desenhadas o quanto antes. Enquanto isso, dá-lhe conspiração: “a China criou o vírus para poder vender a vacina”, “a vacina mais rápida obtida até hoje levou mais de quatro anos para ser produzida”, “a vacinação reprogramará o DNA de quem a receber”, “vai ser implantado um chip no cérebro de quem tomar essa merda”, coisas desse nível. Os resultados apresentados no começo do ano jogaram um bocado de lenha na fogueira do embate ideológico vacinal.

O governo de São Paulo, através do Instituto Butantan, com a pirotecnia costumeira das campanhas políticas, anunciou com estrépito e auspício que 78% dos vacinados não apresentaram sintomas que demandassem assistência médica, e que os 22% restantes não apresentaram quadro grave, ou seja, que exigisse internação ou que chegasse a óbito. Apresentado assim, o resultado parecia realmente muito bom (e é mesmo, como veremos mais à frente). Entretanto, pessoas que manjam do paranauê acharam falta de um número relevante e decisivo – a eficácia global da vacina. E essa foi anunciada a posteriori, bastante próxima dos 50%, o mínimo exigido pela OMS para aprovar um medicamento dessa espécie.

Foi a vez do lado de lá fazer barulho. Afinal de contas, sem o conhecimento necessário, metade de eficácia parece bastante broxante. É um cara-ou-coroa, uma aposta metade a metade sobre a vacina funcionar ou não. Só que não é possível compreender a questão sem um mínimo de conhecimento, e o senso comum que essa galera tanto ama faz com que esse tipo de conclusão seja irrelevante. Para explicar, vou ter que recorrer novamente aos métodos científicos. Para tanto, vou solicitar encarecidamente para que você, meu nobre leitor, leia este texto, e, se possível, este também.

Muito bem. O Brasil foi escolhido para fazer testes de eventuais vacinas contra a covid-19. Um dos principais motivos para isso foi que aqui em Terra Papagalia o vírus está correndo leve e solto por aí. Se fosse na Nova Zelândia ou no Vietnã, onde o combate à pandemia é sério, o estudo seria pouco produtivo. As doses foram aplicadas em dois grupos de profissionais de saúde, de tamanho idêntico, no esquema de duplo cego. Em tempo: o placebo utilizado não é mera água, como é possível confundir. Na verdade, ele contém todos os elementos do remédio testado, com exceção do principio ativo, que, no caso, são vírus inativados, ou seja, que foram “mortos” por ação química ou calor. Como o que importa para o equipamento de defesa do organismo é a capa do bicho, isso é mais do que o suficiente. Mais abaixo, recomendo um canal excelente que contém uma playlist onde vocês podem obter todas as informações necessárias para entender como funciona uma vacina. Por ora, basta saber que o corpo reconhece o vírus como se vivo estivesse, e se movimenta para produzir seus anticorpos.

Ao cabo de algum tempo, calculado para que as doses necessárias sejam aplicadas e para que “peguem”, mais um tempo de exposição às condições normais de trabalho (lembrem-se que contemporaneamente é considerado antiético expor direta e forçadamente um voluntário a uma doença), ambos os grupos são analisados para que se cheguem aos resultados.

É aqui que vamos fazer as comparações e medir o nível de eficiência de um fármaco, incluindo vacinas. No caso específico do estudo no Brasil, tivemos que 1,8% dos membros do grupo experimental foram afetados pela Covid-19, enquanto 3,6% do grupo placebo sofreram o mesmo efeito. Excluindo os quebradinhos, tivemos 50% de eficácia na vacina, porque 50% a menos de pessoas do grupo vacinado contraíram a doença.

Essa teria que ser a informação número zero de uma comunicação verdadeiramente honesta. Entretanto, sabendo que o vulgo não opera bem com explicações complexas, tentaram emplacar os números mais perfumados que dizem respeito a casos que não demandam cuidados médicos. Aqui, tivemos que 8% dos componentes do grupo experimental demandaram algum cuidado médico por contaminação com o vírus, enquanto 18,7% dos membros do controle precisaram dos mesmos cuidados, e a diferença representa os tais dos alvissareiros 78%.

É preciso ainda levar em conta que o grupo vacina, tendo sido inoculado nele os vírus inativados que inexistiam no grupo controle, tem uma reação natural que pode acontecer quando recebemos qualquer vacina válida: alguns dos sintomas atenuados. Quem tem filho sabe bem que as crianças costumam ficar enjoadinhas quando recebem suas doses, o que representa uma reação natural do organismo, que se prepara para receber uma doença. Obviamente, esses sintomas minimizados não aconteceram no grupo placebo, mas ficaram registrados nos vacinados, o que pode melhorar um pouco o percentual de eficácia.

O objetivo de uma vacina não é só proteger da doença, mas fazer com que o corpo esteja mais bem preparado para reagir diante dela em uma eventual infecção. Por isso, olhar simplesmente para a eficácia global e depreender daí que é uma mera questão de sorte meio-a-meio é tomar uma conclusão irrelevante para o que as premissas dizem. É falácia.

E por que? Vejam que a taxa de eficácia global é um número que indica uma abrangência populacional. Ela significa que cinquenta por cento de todos os vacinados estarão protegidos por completo da doença (além dos menores danos causados àqueles que forem atingidos pela covid). A hipótese do cara-ou-coroa volta seu foco para um indivíduo, e faz uma conclusão irrelevante: cada pessoa terá metade de chance de se contaminar. Não é possível inferir isso, porque cada organismo é sui generis, com reações diferentes possíveis a cada moléstia que der de frente.

Entendendo dessa forma, podemos perceber como os 50% de eficácia não é decepcionante, principalmente porque ninguém do grupo experimental teve sintomas graves, que demandassem hospitalizações. Poderia ser melhor? Poderia. Se estivéssemos em condições de fazer grandes escolhas, talvez seria melhor aguardar por vacinas melhores ainda, mas temos que ter consciência de que a CoronaVac ajudará muito mais do que simplesmente confiar no isolamento das pessoas e no bom senso de nossos majorengos. Em qualquer país minimamente racional, esses dois estariam alijados da vida pública desde agora. Eles e muitos outros.

Bons ventos a todos.

Recomendação de canal e de site:

Trata-se do projeto Nunca Vi 1 Cientista, da Laura de Freitas e da Ana Bonassa, ambas relacionadas à área da saúde, que é uma bela opção à sisudez da academia ou ao delírio dos achistas. Quando você estiver praticando deboísmo, faça uma playlist com seus conteúdos. É excelente.

O canal:

https://www.youtube.com/channel/UCdKJlY5eAoSumIlcOcYxIGg

A lista de assuntos:

https://www.uol.com.br/tilt/colunas/nunca-vi-1-cientista/

Imagem da seringa extraída de https://www.boundtree.com/

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