Olá!
A lei seca é algo controverso para
muita gente, mas que não me causa nenhuma espécie de restrição. Tanta gente
morreu ou ficou mutilada por conta dos excessos do álcool que não há como não
defender uma fiscalização rigorosa em nossas ruas e estradas. Acho até mesmo que
o poder público deu uma afrouxada nas cordas nos últimos tempos, principalmente
se levarmos em conta que são sabedores dos locais e momentos onde a galera
costuma dar uma esquiada fora da barra. Passons. Melhor ter a lei do que não a ter.
Em meu reduto, não somos abstêmios, mas
não gostamos de encrencas. Isso não nos impede também de ter plena consciência
de que o álcool prejudica os reflexos e torna-nos mais predispostos a fazer
merda. Portanto, unindo o medo das cominações legais com a busca de tornar a obediência à lei um autêntico ato
ético, adotamos em minha casa o famoso e desejável conceito de “motorista da vez”.
Tudo isso para dizer que, não sendo eu
o motorista de uma determinada vez, estava sentado no banco de trás do carro,
enquanto meu filho plenamente sóbrio conduzia la macchina. No rádio, músicas de décadas passadas, de uma dessas
estações de rádio especialistas em determinados nichos, que eram pouco
percebidas dada a animada tertúlia que se estabelecera. No entanto, a audição é
uma coisa fina (efeito coquetel), e lá pelas tantas captei os acordes
diáfanos da introdução de uma música conhecida: “Primeiros Erros”, do Kiko
Zambianchi, sucesso nos anos 80. Relembro de quantas vezes ouvi e toquei essa
música na juventude. É muito simples e bonita, com um dedilhado batidinho sem
perder a delicadeza, uma construção de contrabaixo interessante e uma letra
triste e desesperançada. Segue abaixo (mesmo que seja muito conhecida):
Meu caminho é cada manhã
Não procure saber onde estou
Meu destino não é de ninguém
E eu não deixo os meus passos no chão
Se você não entende não vê
Se não me vê, não entende
Não procure saber onde estou
Se o meu jeito te surpreende
Se o meu corpo virasse sol
Se a minha mente virasse sol
Mas só chove, chove
Chove, chove
Se um dia eu pudesse ver meu passado
inteiro
E fizesse parar de chover nos primeiros
erros
Meu corpo viraria sol, minha mente
viraria ar
Mas só chove, chove, chove, chove
Depois de amadurecer e começar a ler
Filosofia com mais frequência, pude enxergar nesta música uma certa síntese
entre os dois principais filósofos voluntaristas, Schopenhauer e Nietzsche.
Essa história de “meu caminho é cada manhã, não procure saber onde vou...” é
uma visível transposição do amor fati
nietszcheano (vide), enquanto a conclusão pessimista do “mas só chove”
parece ser gritada por um bardo schopenhaueriano (vide mais este).
Fiquei nostálgico, e me pus a tentar relembrar
das demais músicas do repertório do dito cantor. O esforço recordativo em uma
mente razoavelmente inebriada não costuma gerar resultados muito prolíficos,
mas eu não estava bêbado. Não consegui me lembrar de mais nenhuma, o que conduziu
a alguma pesquisa, nestes tempos de mais Google e menos Barsa.
O resultado foi um pouco decepcionante.
Grandes vácuos na carreira, algumas variações de estilo, mas, no corpus, repertório composto de popzinhos
dançantes, letras menos consistentes, sonzinhos comerciais. Nada contra, mas
também nada tão marcante. Músicas como “Rolam as Pedras” e “Choque” tocaram prá
caramba, lembrei depois, mas o meu esquecimento é prova de que, ao menos para
mim, eram mais do mesmo que se praticava na década de 80. No conjunto total da
obra, a música aqui transcrita vira uma espécie de pequena pérola em meio às
contas de plástico.
Resumindo a ópera: de um conjunto total
não muito profundo, temos algo que reluz em seu meio. Visto no todo, não há
como deduzir que há uma pequena parte muito relevante. E, se dissermos que, na
obra de Kiko Zambianchi temos algo comum e corriqueiro, estaremos desprezando o
fato de que, isoladamente, temos uma obra-prima.
Essa é a base da falácia da Divisão:
acontece quando justificamos características para uma determinada parte tendo
como base as características de um todo. Ou seja, quando se infere que aquilo
que é verdade para o todo o é também para as partes, sem que haja uma
justificativa válida para isso.
O exemplo de um quebra-cabeça é muito
didático para entender a divisão. Estando todo montado, teremos uma figura bem
constituída à nossa frente: um horizonte, uma paisagem, um carrão, uma pessoa
bonita. Vistas isoladamente, cada uma das peças não guardam a beleza da figura
montada. Podem até ser feias. Por isso, a qualidade do todo não reflete
obrigatoriamente a qualidade da parte. É o exato oposto da premissa da composição,
que diz que a excelência das partes assegura a excelência do conjunto.
O pensamento que engendra a falácia da
divisão é perigoso, tão perigoso quanto o que ocorre com a composição. Enquanto
na composição imaginamos que o hábito ruim de um componente do grupo é motivo
suficiente para achar que há uma “contaminação” de todo o grupo, aqui temos o
inverso, o que é igualmente pernicioso. Quando, por exemplo, Hitler ascendeu ao
poder, foi com o apoio da população alemã. Em vista de seu governo inicialmente
bem sucedido, este apoio aumentou cada vez mais, de forma que ações mais e mais
absurdas foram sendo absorvidas e aceitas como legítimas, ao ponto de se chegar
ao holocausto, a irracionalidade em seu estado de arte.
O povo alemão legitimou um governo
tirânico e violento (mas democraticamente eleito), e, pela falácia da divisão,
poderíamos dizer que cada alemão é igualmente violento. Mas a parte não é
miniatura do todo. Mesmo dentro do governo, não havia consenso generalizado de
que as ações de Hitler eram justificáveis, como podemos ver no excelente filme
biográfico “A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg. É a história de um
industrial alemão, membro do partido nazista, que usa e abusa de influência e
suborno para obter vantagens para seus negócios, mas que, por outro lado, é responsável
pelo salvamento de mais de mil judeus do campo de concentração.
Isso é mais do que o suficiente para
demonstrar que o povo alemão não é expressão suficiente para traduzir as ações
de seus indivíduos. Mesmo que reduzamos o alcance inicial, e digamos que todos
os membros do Partido Nazista são cruéis porque o Partido Nazista é cruel,
ainda assim praticaremos a falácia da divisão, como bem resta demonstrado no
exemplo acima. Mesmo que a tirania seja produtora de cegueira, sempre haverá
quem pense fora da caixa a duras penas, como o Oskar Schindler do filme.
Tecnicamente, assim como a composição,
a divisão também é um erro categorial, ou seja, a parte tomada pelo todo
somente pode ser aceita como figura de linguagem, mais especificamente a
sinédoque*. Caso isso não ocorra, a correlação não se aplica. Por exemplo, na
frase “precisamos de braços para trabalhar”, se levada ao pé da letra, será
absurda. Que faremos nós com um monte de braços à nossa disposição? Inaugurar
um cemitério? O que precisamos, de fato, é de trabalhadores, e não somente a
sua parte mais ativa no processo laboral. Falando em braços, pensamos em
trabalho físico. Se fosse intelectual, falaríamos em cérebros, entendeu?
Mas é evidente que nem sempre a divisão
é falaciosa. Se afirmarmos que uma determinada igreja tem estilo barroco, sendo
que suas partes e componentes, como campanário, altar, pilastras são igualmente
barrocas, poderemos tomar confortavelmente as partes pelo todo. Do contrário,
teríamos uma igreja em estilo eclético. Bem evidente, neste caso, que há uma justificativa
para dizer que tanto o todo quanto as partes compõem um mesmo estilo.
Através deste exemplo acima, podemos perceber que a falácia da divisão se aplica a dois tipos diferentes de escopos: um, voltado a algo que, uma vez dividido, perde suas características, mas que o argumento procura manter; outro, para um grupo de integrantes que, em união, possuem uma determinada característica, mas que, uma vez dissolvidos, não a mantém. Para o primeiro caso, digamos que uma ferramenta de aço tem a propriedade de furar concreto. O mesmo não é verdade se a tivermos toda rompida - as partes de uma ferramenta não conseguem atingir um objetivo se dissociadas. Para o segundo, podemos imaginar que um corpo de cientistas dá conta de explorar todas as áreas disponibilizadas em uma universidade. Se isso é verdade para o conjunto, não vale para cada um dos cientistas isoladamente, haja vista que um é da área de Física, outro de Química, e assim sucessivamente.
Recomendação de filme:
Como seria óbvio supor, recomendo o
filme "A Lista De Schindler". É preciso um pouco de fôlego para assisti-lo, não
só pelo seu tamanho (mais de três horas de duração), mas pela recordação de
episódios históricos que, de tão cruentos, parecem irreais.
SPIELBERG, Steven. A Lista de Schindler. Filme. 1993. P&B e Colorido. 195 min.
*A sinédoque é um tipo especial de
metonímia, que é uma figura de retórica onde a parte é tomada pelo todo em uma
relação de contiguidade, como ocorre no exemplo dos braços (parte) substituindo
os trabalhadores (todo).
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