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terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

O café filosófico do quotidiano – discussões sobre alma e corpo, e uma alternativa à "doutrina oficial"

Olá!

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A maneira mais tradicional de se extrair um bom café é o uso de coadores de pano. É quase que uma instituição do patrimônio histórico: o aroma do café que escoa lentamente pela “calcinha da véia”, tomando todo o ambiente. Geralmente, é o tipo de coisa que acende nossas memórias afetivas, seja porque lembramos de nossas progenitoras que ainda residiam nos sítios, dando um ar rural ao ato, seja porque era o primeiro cheiro que sentíamos quando  acordávamos, uma quase-tradução de vida que se renova a cada dia.

Entretanto, embora seja prazenteira essa invasão de sensações, é preciso reduzi-la à nossa realidade circunstancial. Para o meu cafezinho matinal diário, não necessito daqueles aparatos que produzem litros, mas apenas duas xícaras. Ao invés de um fragmento de saco de farinha e um suporte, utilizo uma mariquinha e um mancebo, suficientes para conseguir um bom líquido.


Nome do utensílio: mariquinha

Tipo de técnica: café coado (percolação)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Fino a médio

Dinâmica: um coador de tecido com trama moderada sustentado por um suporte fixo retém as partículas de café enquanto a água faz a extração do café, desembocando em um recipiente por ação da gravidade.

Resíduos: dependendo da trama do tecido. Costumam ser bem poucos.

Temperatura de saída: Baixa

Nível de ritual: médio a alto

Embora seja um processo simples, a mariquinha não dispensa que se tomem alguns cuidados. O primeiro é que seu processo de higienização precisa levar em consideração um paradoxo: é preciso remover muito bem os resíduos de borra dos cafés anteriores, mas o uso descuidado de sabões e detergentes costumam adulterar o sabor do café de maneira decisiva. Portanto, não cabe ser desidioso num momento desses. Uma boa técnica consiste em remover a borra tão logo ela se possa desprender sozinha do tecido. Logo em seguida, é bom enxaguar vigorosamente o saquinho de modo a remover o máximo possível de pó. Por fim, pode-se ferventá-lo por algum tempo. Esse processo diminui a vida útil do aparato? Sim, e é assim mesmo que deve ser. Um tecido saturado de borra começa a estragar o sabor do seu café, e chega um momento em que tudo o que há a fazer é descartá-lo. Faz parte.

Mas no dia-a-dia, após a higienização, é preciso moer os grãos de modo a deixá-lo com uma espessura que fique não fique fino como uma farinha, nem espesso como uma semolina (sempre lembrando que o critério é do freguês – este é o modo como eu faço o preparo). Já com a água aquecida, escalda-se a mariquinha já no próprio mancebo, para remover qualquer resíduo adicional e umedecê-la. Despeja-se bem no fundo uma quantidade de pó na proporção 10:1, ou seja, para um café de 100 ml, usa-se 10 g de pó. Eu prefiro controlar a intensidade do café na moagem, e não na proporção. Um pó mais grosso deixa a água passar mais rapidamente, o que gera um líquido menos intenso, e vice-versa. Colocado o pó, despeja-se bem lentamente e em movimentos circulares (usando de preferência um bule pescoço-de-ganso) uma quantidade de água suficiente para apenas molhar todo o café, em uma operação chamada de pré-infusão, que serve para uniformizar o pó em uma massa única. Após uns trinta segundos, pode-se derramar a água toda, novamente em movimentos lentos e circulares, até verter completamente em sua xícara. Açúcar, adoçante ou nada é seu critério exclusivo. Santé!

Como já sinalizei no primeiro texto com este leitmotiv, transformar todo esse ritual em uma práxis está vinculado a um ato muito simples: o de encontrar prazer em coisas simples. E não se pode realizar todo esse preparo para não se prestar atenção justo no momento catártico da ingestão. É uma coisa para se fazer aos pequenos goles, percebendo notas e acidez, espalhando todo o líquido pela boca para absorver a conjunção de paladar e olfato. E o café conversa contigo, ele te dá a conhecer sua existência com suas características próprias.

Eu não sou um connoisseur, apenas apreciador, mas dá para sentir algo de metafísico no rito. O café é uma coisa que parece ter uma alma, que forma uma conexão com o teu espírito, meu leitor. Alma… que coisa mais esotérica. Pelo que tenho crido nos últimos tempos, não me parece fazer muito sentido que as coisas tenham alma. Mas há casos em que parece existir uma conexão que vai além do físico, que nos pega tão fortemente pelos sentidos que parece excitar um sexto deles (leia mais aqui). Mas a história do dualismo corpo-alma é tão antiga que ficou meio que enraizada na nossa cultura e, mais ainda, em nosso subconsciente. Isso faria todo sentido do mundo nos tempos da Filosofia Medieval, quando a questão da natureza de Deus estava em voga, mas que não deixou de ser real mesmo após o teocentrismo. Aliás, logo após ele tivemos Descartes, e com ele veio uma separação entre mente e corpo que se tornou clássica.

Essa divisão foi chamada por Descartes de res cogitans e res extensa, ou seja, coisa pensante e coisa extensa, no sentido de ocupar um espaço no mundo material. A primeira corresponderia a todo o pensamento da pessoa, sua subjetividade, seu modo particular de perceber o mundo, enquanto o outro seria uma espécie de limitador, porque necessariamente ocupa um lugar no mundo e onde a cogitans ficaria contida, obtendo informações do mundo exterior.

Descartes dá primazia absoluta à res cogitans, ou seja, à mente. Segundo ele, a certeza pela própria existência se dá unicamente por essa via, já que é esta que duvida, que raciocina, que pensa, mesmo que seja para se enganar. Ainda que fôssemos cérebros na cuba, nossa existência estaria assegurada na clave da ilusão. É irreal, mas é existente.

Nesse dualismo cartesiano, o corpo representaria tudo o que há de físico e mecânico em um ser humano, perecível, efêmero, tal qual acontece com qualquer outro animal. O que seria o grande elemento de diferenciação seria a existência da mente, que não se confunde com o cérebro, este também parte da res extensa. A mente não se traduz meramente em neurônios, ela é outra coisa, permanente, inesgotável, que transcende toda corporeidade. Sim, é a mesmíssima identificação com a alma, algo que tem uma substância divina.

A prova de existência através do pensamento é muito elegante de fato, e parece praticamente irrefutável, mas que não está a salvo de contestações. Incomoda-me um pouco essa ideia. Por que eu obrigatoriamente preciso tirar de meu próprio corpo aquilo que é percebido por ele? Da mesma forma que a fumaça que evola do café não é sua alma, mas uma de suas características físicas, a nossa percepção de mundo, apesar de ter toda a pinta de estar fora, vem de nossas predisposições neuronais. E por isso fui procurar alguns contestadores do dualismo. E encontrei Gilbert Ryle.

Ryle foi um filósofo inglês que se debruçou muito fortemente sobre a questão da linguagem, mas que acabou derivando para problemáticas sobre a mente. Ele notou que, mesmo quando a mente não fosse colocada como um sinônimo de alma, a grande maioria das escolas de pensamentos mantinha o mesmo aparte mente-corpo sistematizado desde o século XVII pelos racionalistas, Descartes à frente. Por essa razão, ele chama o dualismo de doutrina oficial, no meio termo entre a jocosidade e o protesto, pelo exato motivo de ter se fincado no substrato das teorias da mente até o século XX. Mas apesar de seu alcance, o raciocínio está errado.

Ryle usa o exemplo da universidade, de quem faço uma tradução livre. Imagine que você recebe um amigo do interior, e quer mostrar a ele a universidade onde você exerce suas atividades. Você apresenta a ele toda a estrutura principal: os prédios, as salas de aula, os auditórios, os laboratórios, as bibliotecas, os acervos e coleções. Você mostra também os departamentos todos, as salas de mestres, a reitoria, a tesouraria, o diretório acadêmico, e até mesmo os componentes acessórios, como as quadras, os ginásios, o refeitório e a república. Mostra inclusive as pessoas: docentes, pessoal administrativo, alunos, porteiros, pesquisadores, visitantes, palestrantes, colaboradores e tudo o mais. Mostra as publicações, os periódicos, os eventos, a programação cultural e tudo o mais que a universidade produz. Mostra as láureas, os prêmios, as benemerências, os alunos ilustres e os projetos lá desenvolvidos que foram desembocar na sociedade, seja na forma de tecnologia, de projetos sociais, de novas escolas de pensamento. Você mostra tudo o que tanto te orgulha, e o seu amigo finaliza a visita te perguntando: nós vimos tudo isso, mas onde está a universidade? Onde ela se encontra em si mesma?

O seu amigo procura na universidade algo que não está nela, uma espécie de espírito da universidade, e que é seu componente mais primordial. Mas acontece que a universidade não subsiste sem todos esses componentes que você mostrou a ele. É mais ou menos o mesmo problema que acontece com a diferenciação entre cogitans e extensão em Descartes. O corpo é composto por vários órgãos, cada um com sua função específica, sendo que um deles é o cérebro, cuja função é, fundamentalmente, o pensamento, completando com excelência uma unidade operacional semelhante a um aparelho que se põe a funcionar em perfeita harmonia. Imaginar haver algo fora dele que lhe controla é como se houvesse um fantasma habitando essa máquina.

Gilbert Ryle vê que o fantasma na máquina nada mais é do que um problema de linguagem, chamado por ele de erro categorial. E o que é isso? Já falei aqui e aqui sobre eles no Pequeno Guia das Grandes Falácias, mas é preciso ser mais específico aqui. A linguagem somente é precisa quando chamamos o pão de pão e a pedra de pedra. Segundo Ryle, Descartes parte da errônea premissa de que é pode-se tomar como possível uma relação entre alguma coisa material e outra imaterial, confundindo o pão com a pedra. Essa é uma das peripécias possíveis da linguagem. Nós podemos nomear certas propriedades ou sentimentos como se fossem objetos, como a inteligência, ou o amor. São substantivos que não representam nada de tangível, nada de materializável. Até aqui, nada de errado. Mas a mente não pode ser excluída do contexto material do corpo, simplesmente porque ela é parte integrante do mesmo. Ela não funciona igual aos demais substantivos abstratos, que, por mais que possamos traduzir em símbolos (coruja para inteligência, coração para amor) como os dois que eu citei neste parágrafo. Isso porque se de fato fosse possível que a alma interagisse com um corpo, em algum momento ela teria que virar uma chavinha material, e, dessa forma, ela não estaria alijada desta mesma categoria, tal qual o próprio corpo, ora essa. A alma seria uma função nervosa como é a mente, e uma função nervosa é a função de um corpo, imanente, tangível, concretizável. Dessa forma, o erro de Descartes não estaria no desenvolvimento de sua tese, mas no seu próprio nascedouro.

Entretanto, se o sujeito cognitivo imaterial, sintetizado na mente ou na alma de acordo com a clientela, não é real, qual será nossa alternativa? Ryle entende que não se pode pensar nenhuma forma de compreender o sujeito fora de seu próprio organismo. A resposta estava na interação com o ambiente e o modo com o qual reagimos a ele, ao que ele deu o nome de disposição. Vamos tentar entender um pouco esse mecanismo.

Vamos pensar na gama de sentidos que temos ao nosso dispor. Posso amar, sofrer, entediar, enlevar, sentir sede ou fome. Da mesma forma, meu vizinho de apartamento também pode possuir todos esses sintomas e sentimentos. Há duas coisas aqui que temos que concordar: a fome que eu sinto não é a mesma que meu vizinho sente, e, entretanto, ambas possuem o mesmo valor proposicional – “p tem fome”, sendo que p posso ser eu ou pode ser o vizinho. Até aí tudo bem?

Com relação a mim, sinto aquele incômodo aperto no estômago e já sei que estou com fome. Trata-se de uma experiência direta, obtida de maneira imediata pelo meu próprio organismo. Não há pessoa no mundo que possa falar melhor sobre minha fome do que eu mesmo. Já com relação ao vizinho, não tenho qualquer acesso direto, restando apenas o seu comportamento para que eu possa fazer qualquer dedução, lembrando que seus depoimentos também têm conteúdos comportamentais. Ocorre que somente através de alguma coleção de observações empíricas se pode constituir um arcabouço para essa dedução. “A fome faz com que meu vizinho fique mal-humorado”, “a fome faz com que meu vizinho empalideça”, “a fome faz com que meu vizinho fique com o olhar perdido” são proposições que vão se ajuntando para que eu deduza seu comportamento. Portanto, através de uma base empírica, consigo estabelecer uma relação entre a experiência interior do meu vizinho e seu comportamento.

Percebem que, levando tudo isso em conta, nós só conseguimos assegurar a existência de nossa própria mente? Percebem que não conseguimos assegurar a mente de nosso vizinho, a não ser que consideremos válida sua detecção por meio de inferências? E que, por fim, sendo a mente o principal critério de existência, não podemos assegurar logicamente a existência do cara que mora atrás da porta da frente, que eu vejo entrar e sair todo santo dia, que faz barulho e reclama da fome, da sede, do barulho?

Mas o estudo do comportamento é justamente a chave para a descoberta do fenômeno do raciocínio, o que aproxima Ryle dos psicólogos behavioristas. Segundo podemos pensar, a atividade mental tem como principal característica a tomada de decisões inteligentes. No entanto, mesmo que discordemos radicalmente da doutrina oficial, continuamos tendo as intenções internalizadas disponíveis para aferição apenas por nós mesmos. O que nos permite verificar a inteligência alheia é sua ação pública, ou seja, aquela que está exposta para observação do mundo. Este comportamento mensurável, entretanto, não é unívoco. Ele varia essencialmente pela prática e pela interação com o ambiente. Um dos exemplos de Ryle diz respeito à fala. Uma criança não aprende a falar porque primeiro pensou, para depois articular a voz. Ela simplesmente o faz, e molda seu aprendizado de acordo com o que seu ambiente lhe devolve de informações: se um vagido qualquer não obtém reação de ninguém, ela registra essa experiência e tende a descartá-la, sendo que o exato contrário ocorre quando obtém resposta. Pensar e agir, portanto, estariam em contiguidade.

Mas isso não seria a tradução de meros hábitos, e ao fim e ao cabo, as reações de diferentes pessoas se assemelhariam muito, sendo que não é isso o que observamos na prática? Ryle pensa que existe uma orientação disposicional que é diferente em cada indivíduo, que é o que exatamente leva à variação. Colocados diante de um novo desafio, cada um de nós pende para uma certa solução em razão de nossa disposição, o que leva a resultados absolutamente diferentes entre si. Temos os exemplos do vidro e do açúcar: o vidro tem uma disposição em ser frágil, e o açúcar em ser solúvel. Isso significa que o vidro se partirá como em um passe de mágica? Ou que o açúcar se dissolverá independentemente de seu contato com um líquido? Não, para os dois. A disposição dá um indicativo de tendência – o vidro se quebrará ao levar uma pedrada e o açúcar se dissolverá ao ser posto no café. Fora disso, não se pode assegurar a fatalidade de cada um deles, como se fosse um destino predeterminado.

Com isso, podemos concluir que a inteligência não se faz sem a interação com o ambiente que nos rodeia. Pensar e agir são duas faces da mesma moeda – através da ação, que é a externalização de um pensamento, expressamos uma disposição contida em nós, em um meio que nos permite realizá-la. Em outras palavras, é a construção de um conhecimento que parte da prática de um ser pensante. Sem a necessidade de uma mente externa, de um fantasma, de uma alma.

Isso tudo segundo Gilbert Ryle.

Ótimo momento para um café. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Em italiano mesmo, porque não achei na última flor do Lácio. Vamos lá... Nada que um dicionário on line não possa ajudar.

RYLE, Gilbert. Il Concetto di Mente. Bari: Laterza, 2007.

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