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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Constantino I e o Concílio de Niceia inaugurando o pensamento medieval

Olá!

Como já contei para vocês neste texto, os dias arrastados da pandemia parecem não ter fim e vão cansando as costas da gente. Logo que tudo começou, mudei muito pouco no arranjo da casa, simplesmente pegando uma mesinha auxiliar para colocar meu computador em cima, e utilizando um cadeirão doado pela Dona Madalena, senhora nonagenária que a patroa toma conta. Passando o tempo, minha sala foi pegando mais e mais cara de escritório. Primeiro, foi uma mesa um pouco maior. Depois, tive que trocar de cadeira antes que minha hérnia de disco me mandasse para o hospital. Por fim, coloquei um monitor a mais e troquei a posição da mesa, removendo as poltronas da sala e mandando-as para o quarto. Já detectei a necessidade de fazer outras adequações, de modo que alguém que tenha vindo em casa há um ano estranhará a nova ordenação da sala (ora escritório), com as perturbações típicas de quem tem que se virar em espaço exíguo.

A vida é cheia desses percalços que nos redirecionam para rumos inesperados, e alguns deles podem afetar não só um indivíduo, mas uma comunidade inteira, uma cidade, um país... o mundo todo! E essas guinadas às vezes são tão fortes que os historiadores utilizam-nas como marcos de inflexão, dando a elas o nome de Idade ou Era. Não sei se os escribas futuros olharão para nossa época e vão chamá-la de Era da Pandemia, mas o fato é que alguma coisa mudará permanentemente.

Enquanto isso, penso em outros momentos decisivos da humanidade, e percebo que a Filosofia meio que correu atrás da História, o que não chega a ser surpresa nenhuma. Tudo vai atrás da História, como se fosse o trio elétrico nas ruas do Nordeste. Só não vai atrás quem já morreu. À frente, só quem teve a sacada de inventá-lo, mas aí a alegoria só vale para os visionários. Essas transições nunca são abruptas, e não dá para atribuir a um único evento isolado as transformações sociais e contextuais para que tudo mude de rumo, e, portanto, os eventos históricos mais expressivos são agregadores de uma pilha de outros acontecimentos que lhe giram em torno. Mas há um em especial que, em termos de guinada filosófica, é mais relevante que o próprio motivador histórico. Estou falando do Primeiro Concílio de Nicéia.


Para compreender, precisamos entender um pouco do que acontecia naquela época. A Filosofia Clássica e sua sucedânea helenística baseavam-se na visão humanista inaugurada pelos
sofistas e levada ao apogeu pelo power trio Sócrates-Platão-Aristóteles. Neste mesmo tempo, o mundo era dominado pelo Império Romano, que estendia seus tentáculos por territórios imensos, a ponto de necessitar ser dividido para se tornar minimamente governável. Seu fim se deu em duas partes, com o final da porção ocidental pela invasão dos povos bárbaros em 476 dC, enquanto o remanescente Império Bizantino durou até 1453, com a tomada de Constantinopla, sua Capital, pelos turcos, o que coincide com a duração da Idade Média. Ocorre que, em termos filosóficos históricos, a Idade Média tem seu princípio no precitado Concílio, no ano de 325. E aqui cumpre a mim uma série de esclarecimentos.

O Cristianismo começa seus dias como uma das tantas seitas surgidas no seio do Judaísmo. Originalmente, adotava uma conotação comunitária, como já faziam outras facções, como é o caso dos essênios. Entretanto, ao invés de buscar isolamento, eles procuravam viver inseridos nas cidades, levando em conta que uma de suas características era o proselitismo, um mandato apostólico dado por Jesus, seu fundador. Em tempos de invasões romanas espalhadas pelo mundo inteiro, é natural que houvesse momentos de resistência na maior parte dos territórios ocupados. Não era diferente na Judeia, e todos os movimentos existentes caíam na mesma vala comum dos insurgentes, mesmo quando pacíficos. Além disso, este caráter apostólico fazia com que os cristãos pululassem por todas as partes, e em todas as partes estava quem? Sim, o Império Romano. Em geral, os cristãos eram bem tolerados, dado seu caráter inicialmente pacifista, mas eram tempos rudes, e as perseguições eram extremamente cruéis, com muito sangue escorrendo, incluindo muita tortura. Em uma situação dessas, era muito difícil dar uniformidade à doutrina, que acabava sendo contaminada pela cultura de cada canto onde se instalasse uma igreja. Sendo assim, o tecido doutrinário cristão foi se transformando em uma colcha de retalhos, maximizada pela dificuldade de comunicação entre seus múltiplos centros, ainda que houvesse uma estrutura hierárquica já bastante rígida em seus alicerces. Afinal de contas, também os bispos e papas eram alvo de perseguição nos momentos de crise, e muitas vezes eles precisavam procurar ficar ocultos.

Entretanto, uma história cheia de elementos lendários mudaria para sempre o curso do Cristianismo e, por extensão, do pensamento. Em 306, Constantino torna-se césar, e, desde então, foi concentrando mais e mais poder em suas mãos. Em 313, após uma suposta experiência mística*, expede o Édito de Milão, onde dá liberdade de culto para todos os habitantes do império, dando fim à possibilidade de novas perseguições. Com isso, os cristãos puderam abrir comunicação mais franca e assumida.

É óbvio que Constantino foi tomado como um santo pela época, uma espécie de libertador. Com isso e mais um pouco, ele teve bastante influência nos destinos da igreja, que ficou definitivamente catalisada pelo Primeiro Concílio de Niceia, aquele que eu mencionei logo acima. Estando notavelmente fragmentada, a dogmática cristã se encontrava ameaçada em sua unidade. Constantino percebeu que isso não era um problema meramente religioso, mas que podia se estender à manutenção política. Fundamentalmente, a resolução de que se Cristo era ou não consubstancial ao Pai** não faria o preço da saca de especiaria mudar, mas como os cristãos passaram a habitar cada vez mais os palacetes reais, o imperador achou interessante tirar proveito político da situação, e patrocinou a realização do concílio, reunindo, hospedando, transportando os bispos de todo o mundo onde houvesse cristãos e, principalmente, dirigindo os seus trabalhos.

Somente para esclarecer, um concílio (que tem a mesma origem etimológica da palavra conselho) é a reunião de bispos com o objetivo de decidir dogmas e doutrinas controversas, e somente a partir de Niceia ganha um caráter ecumênico, ou seja, que se estende por todo o mundo. É bem verdade que outras reuniões de caráter doutrinário foram realizadas anteriormente. Entretanto, elas sempre se deram em âmbito local, por todos os motivos que listei mais para cima. Este formato se deu por imitação do Concílio de Jerusalém, descrito na própria Bíblia nos Atos dos Apóstolos (At 15), onde uma decisão para fins de uso da circuncisão aos novos convertidos foi discutida em uma reunião com a então incipiente comunidade cristã.

Embora seja muito difícil duvidar da influência de Constantino na realização do concílio, afirmar que ele influenciou as decisões doutrinárias é algo que não farei. Diz-se que este concílio decidiu o cânon bíblico, dizendo o que era válido entre os livros que compunham seu totus, mas isso é um erro. São muitas colocações feitas com relação a Constantino que não possuem rigor histórico, nem a favor, nem contra, e não vou entrar na pilha de fazê-lo eu. Sua pauta tinha mais a ver com aparar divergências que podiam produzir dissensos populacionais do que propriamente de temas teológicos, como seria a determinação do cânon.

E o grande tema, doutrinariamente falando, foi a questão da homoousia já mencionada. A faceta política dessa contenda tem a ver com o sacerdote Ário, um dos presbíteros de Alexandria, que negava a divindade de Jesus e formou um bom número de seguidores. Vencido no concílio, foi excomungado e exilado. Continuou debatendo pela validade de seus argumentos, até ser readmitido pelo imperador e tendo sua excomunhão revertida. Pouco tempo depois foi encontrado morto, alguns dizendo ser castigo dos céus, outros envenenamento.

Outra resolução foi relacionada ao Cisma Meleciano, ocasionado pelo patriarca Melécio, que aplicava rigor excessivo contra os arrependidos de apostasia, algo muito comum nos tempos de perseguição. Achava que eram relapsos que não tinham coragem de sustentar a própria fé, o que partia desde as altas hierarquias. Isso fez com que ele criasse uma hierarquia própria em seu patriarcado. Os padres conciliares foram mais amenos com relação a Melécio. Mantiveram seu patriarcado, impedindo-o, no entanto, de ordenar novos clérigos, e colocando como necessária a revalidação das ordenações feitas por ele.

Além dessas provisões mais importantes, muitas miudezas foram deliberadas, tipo proibir os fiéis de ajoelhar durante o Pentecostes, e desmistificando um pouco da influência de Constantino, podemos chegar à sua importância filosófica, porque foi a primeira vez que a igreja se reuniu de fato e sem impedimentos para determinar seus caminhos doutrinários, o que determinou a rota do pensamento a partir de então. Aliado a uma aproximação muito forte com o poder central, é a partir deste marco que a Filosofia tem uma guinada, inclusive com a chancela oficial do Estado, o que só se solidificou daí para frente, em especial quando o Imperador Teodósio fez o Cristianismo saído do Concílio de Niceia como religião oficial de Roma, em 380.

Quando nós pensamos nas novidades da Filosofia Medieval, temos o teocentrismo em mente logo de cara. Muito embora eu já tenha escrito um longo texto onde desembrulho a visão de monotemática exclusiva nesse período, é importante observar as confluências e as mudanças de paradigma que ocorreram na transição entre ambos os períodos históricos.

É preciso observar que as antigas escolas helenistas já traziam consigo muitas das coisas que serão absorvidas pelo Cristianismo, em especial com os estoicos, com os cínicos e, em certa medida, com os ecléticos. Sempre lembrando que todas essas escolas traziam uma ideia de desprendimento do mundo pela via da desimportância da articulação do mundo com a subjetividade de cada um, nota-se que a ideia de transitoriedade da vida, cujo objetivo é a preparação para um além-mundo, usa dos mesmos recursos de resiliência à dor, a passagem do destino a um segundo plano e uma escolha ética pela fé, no que vão divergir frontalmente dos céticos, que optam pela supressão dos juízos acerca da verdade. Para a nova corrente, é imprescindível uma verdade do modelo emunah, baseada mais na confiança no discurso do que propriamente na verificabilidade (sobre isso, redigi um texto que os convido a ler).

Embora existam esses pontos em comum, não estaríamos falando em uma guinada na história filosófica se não existissem muitos pontos de inflexão no então novo pensamento. Uma das mudanças de paradigma mais expressivas foi o reconhecimento da fé como fonte cognitiva. De fato, até hoje compreendemos que não há uma fonte alternativa para se falar em uma transcendência que não seja pela via da fé. Não faz nenhum sentido colocar uma Bíblia na frente dos olhos e querer ler nela histórias literais. É muito diferente fazer essa leitura de um ponto de vista meramente técnico ou imbuído de um espírito de que lá está a palavra de uma divindade. Dessa forma, há uma completa mudança de visão não só da maneira como as pessoas se relacionam com seus deuses, mas como se relacionam com o mundo. Sendo assim, a Filosofia ganha um viés novo, escapadiço à objetividade da razão e buscando uma nova lógica.

Além disso, a própria História ganha um caráter linear e envelopado, cujo princípio está na criação do universo e que se encerra no Apocalipse. Entretanto, o desaparecimento da História se dá unicamente no plano material, e há uma continuidade da existência que vai para além da História, com a vida eterna em uma dimensão metafísica, onde o sentido de ciclos das filosofias orientais perde a razão de ser e a pouca importância que os helênicos davam à questão passa a ter relevo. A História é, para a Filosofia Medieval, como um caminho, cujo propósito é um supremo bem meio que semelhante ao que nos falava Platão. Só que, neste caso, esse bem se personaliza na figura de um deus assemelhado a um pai, tanto para o afeto, quanto para o castigo.

No plano da Ética, há uma mudança muito significativa dos valores, com a simplicidade e a alteridade ganhando um estatuto de ferramentas salvíficas. Sabemos que os gregos tinham no heroísmo um propósito de vida, que vira de ponta-cabeça a partir da lógica cristã. Não é mais aquele capaz de grandes feitos o que consegue seus objetivos, mas aquele que melhor se adapta à vida comunitária, vendo no outro alguém com tanto valor quanto a si próprio.

E, para não ficar muito cansativo, muda muito a questão dos sentimentos, mais especialmente do amor. Tínhamos na Antiguidade Clássica uma ênfase no amor em sua dimensão erótica, que dependia de corpos para acontecer, e que desembocava em uma ascensão dos sentimentos. Porém, o Cristianismo propõe um novo modelo, que vai refletir no pensamento filosófico. O amor emana do próprio Deus, e, portanto, não tem um sentido elevatório como quer Platão, mas sim de doação divina, o que lhe dá um caráter de gratuidade impossível no contexto do Eros. Isso tira os limites deste amor, que recebe o nome de ágape, uma novidade em termos de relação com o divino, já que os deuses gregos e romanos eram de um modelo completamente distinto, muito mais semelhantes a homens.

Estes e outros fatores fizeram com que o estudo filosófico se dirigisse ao fenômeno religioso, e por lá foi mantido por cerca de mil anos. Constantino não oficializa o cristianismo, mas lhe dá pleno apoio, e com isso a instituição se torna poderosíssima, que acabou transcendendo o próprio poder temporal. Mais tarde, como signo desse poder, muito acabou por se impor ao pensamento, especialmente no período inquisitório, mas isso é outro assunto, para outro momento. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Pouco nós temos de verdadeiramente fiável para nos relatar o que foi o Concílio por dentro, especialmente a questão da influência de Constantino. O principal narrador é Eusébio de Cesareia, que tinha uma visão particularmente parcial, e sua obra é, na verdade, um panegírico. Mas é possível filtrar uma boa quota de informações relevantes.

EUSÉBIO. Vida de Constantino. Gredos: Madri, 1994.

* Homoousia é um termo grego que significa da mesma substância. A controvérsia ariana dizia respeito ao entendimento de que o Filho não tinha a mesma substância do Pai, ou seja, era um homem especialmente abençoado, mas sem a essência divina. A briga toda era essa.

** Diz-se que Constantino, às vésperas de uma decisiva batalha contra seu opositor Maxêncio, sonhou com uma cruz resplandecente, onde era possível ler a frase “com este sinal vencerá”. Mandou pintar uma cruz nos escudos de seus soldados e obteve uma vitória acaçapante.

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