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terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

A aposta ética do cinismo e o Pequeno guia das grandes falácias - 39º tomo: o apelo à pobreza (argumentum ad Lazarum)

Olá!


Já tinha mais de mês que a mesma cena se repetia, todo santo dia. Ao abrir a porta do prédio onde resido, a montoeira reinante de sujeira vinda da lixeira presa ao poste me obrigava a saltar do degrau direto para a rua, em salto justo para um gato, mas não para um quase-obeso como eu. Pior ainda para o sem-fim de velhinhas que habitam no mesmo empreendimento imobiliário, cujo único pulo possível seria o de bengala. Ali, não tem jeito. É pisar no lixo mesmo e vamos que vamos.
Mas agora era uma manhã de domingo, bem cedo, e eu precisava dar um pulinho em Redenção da Serra, buscar uma colcha de retalhos. É perto, mas não é na esquina, daí o improvável despertar na hora em que os gatos vão deixando de ser pardos. Quando eu apontei no corredor, ele estava lá, revirando a lixeira, e esgaravatando somente as latinhas de alumínio, emporcalhando todo o perímetro ao redor do poste. Papel, casca de fruta, borra de café e outras sujidades mais porcas e menos votadas, esse era o cenário que tantas vezes se repetia, e que agora se desenrolava sob minha vigilância. Era um nóia, facilmente reconhecível pela magreza extrema, os olhos estatelados e a cor meio que opaca. Cheguei sorrateiro, com o objetivo de lhe aplicar uma rebordosa, porque eu não sou ninguém para fazer agressões além das verbais. Abri a porta na miúda e falei, em alto e bom som:
- “Ô, camarada...”
O camarada voltou-se para mim com a mais pura expressão de terror, como se eu estivesse com um machado apontado para o meio de sua testa. Tomou tal susto, a ponto de ficar paralisado. Rapidamente me lembrei das síndromes persecutórias dos viciados em crack, tão bem descritas pelo humorista Márcio Américo, e me veio o insight: esse sujeito não tem o menor controle do que faz ou deixa de fazer. Fiquei todo desarmado, e muito mais mansamente, tudo o que consegui dizer foi:
- “Você... tá com fome? Precisa de alguma coisa para comer?”
É a coisa mais imbecil do mundo perguntar para um nóia se ele tem fome. Ele não tem. Uma das reações das drogas estimulantes é tirar todo e qualquer apetite, no caminho inverso da larica proporcionada pela maconha, droga de efeito relaxante, e esse é o motivo pelo qual os cracudos são secos e esturricados. Mas eu fiquei tão consternado que as palavras saíram no piloto automático, mais ou menos como se eu estivesse falando com um mendigo clássico, que, estes sim, sentem fome e comem como monges tibetanos, se permitido lhes for.
O resultado final é que minha vontade foi derrubada. Salto o lixo ainda, mas a partir de então sem praguejar contra os céus, os infernos ou os purgatórios. Só continuo lamentando pelas velhinhas, e agora pelos nóias que passam suas vidas inteiras no medo e na busca por suas pedras.
Esse é o centro de São Paulo, uma das maiores cidades do mundo, que parece brotar de algum conto de terra arrasada, misto de ambiente de guerra e miséria imotivada, um deserto seco de piedade cercado de prédios e mau cheiro. A quantidade de mendigos desta metrópole parece imensurável, o que só contraria a tese de que somos um país em desenvolvimento. Talvez econômico, jamais social.
Princípio básico: a pobreza é uma desgraça. Mas já houve quem a considerasse uma virtude, inclusive como princípio religioso, apesar dos praticantes de tais religiões não gostarem nem de ouvir falar nisso, com o uso profuso de perífrases e circunlóquios para dar jeitinhos justificar sua não adesão a tais metas divinas. No campo da Filosofia, o exemplo mais bem acabado de uso da mendicância como objetivo ético nos vem dos filósofos cínicos, mais especificamente de Diógenes de Sínope, dito o cão.


Vamos começar esclarecendo como deve ser encarado o termo cinismo. Esta palavra vinda do grego kynós, que significa nada mais, nada menos que cachorro, é mais conhecida pelo seu sentido figurado, de pessoa que não tem grandes escrúpulos em tratar a realidade de forma mordaz e sarcástica, e encarar pessoas e histórias com desprezo. Mas a origem do termo é a mesma da escola filosófica. Isso porque os filósofos cínicos tratavam das preocupações mundanas justamente com isso: um desprezo revestido de ironia, que é a pior forma de se tratar um assunto que lhe é adverso (ao lado, é óbvio, da indiferença). Essa é a forma com a qual os cães lidam com tesouros: mijam em cima.
Mas vamos a Diógenes e suas ideias. Já se vivia o período mais clássico da antiga Filosofia grega, e a tríade Sócrates-Platão-Aristóteles deixou grande quantidade de discípulos. Reconhecida a necessidade de virtude através do autoconhecimento, a busca pela felicidade toma a tônica do homem agora menos interessado no cosmos e suas sutilezas, e compenetrado em se explicar a si mesmo. Estes filósofos são menos metafísicos que seus antecessores, e sua pergunta fundamental é ética: se a busca do homem é pela felicidade, de que maneira ela deve estar vinculada ao prazer? A resposta não é fácil. Para os epicuristas, o incremento no prazer está na sua simplificação, ou seja, é preciso extrair contentamento de coisas simples, como uma caminhada ao redor de um lago, o perfume de uma flor, o voo de um pássaro, essas coisas românticas, mas não só. Diante de um mundo sobre o qual não temos controle, é necessário ter em mente que os objetivos grandiosos que poderíamos almejar são por demais interferidos por fora. Melhor é se alegrar com as coisas pequenas e que a vida nos proporciona sem que precisemos de grandes planos e projetos. Já os estoicos se baseiam na resiliência, ou seja, na capacidade de aguentar porrada. Isso significa que esta escola encara o mundo como uma fonte de desprazer, e o contrário é obtido justamente “não ligando” para os adventos dolorosos. Tipo assim: sua mãe morreu? Faz parte. Sua mulher fugiu? Vida que segue. Você perdeu o emprego? Foda-se. Evitando o desprazer, chega-se ao prazer possível. Leiam os links que eu deixei para entender melhor.
O cinismo vai para um caminho semelhante, mas diferente dessas duas tendências. Para eles, a grande causa do sofrimento humano está em não se reconhecer como o animal que é, e se afastar cada vez mais de sua condição natural. Diógenes capta estes ensinamentos de seu mestre Antístenes e leva-os ao extremo, passando a viver nas ruas e se alimentando do que for possível. Suas teses não eram ensinadas em escolas como a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles, o Jardim de Epicuro ou a Stoá de Zenon. Sua sala de aula era as ruas, mas isso é uma mera figura de linguagem: ele não era um mestre na acepção da palavra, ensinava pelo seu modus vivendi e pela sua resposta aos desafios que se lhe apresentavam.
Sua vida é cercada de lendas, mas o que importa, da mesma forma que os predecessores das grandes religiões, não é o que há de real nesses relatos, mas o que eles carregam de significado. Materializou em sua vida todo o ideário que capturou de Antístenes: a pobreza extrema, não como objetivo de vida, mas como fruto de um afastamento da cultura. Para ele, todas as ciências, técnicas e artes eram inutilidades que somente traziam ao homem mais dor. O conforto da vida nas cidades impediu que o ser humano perdesse todo o calejamento de sua proximidade com a natureza, e até mesmo para a supressão das necessidades mais básicas encontrava dificuldades. Além disso, o convívio social estabelecia uma série de regras que só fazia aumentar a preocupação com coisas que, em estado de natureza, não existiriam – a obediência às leis, a escolha de representantes, as delimitações de propriedades e muitas outras. Via no cão o exemplo perfeito para uma vida mais próxima do ideal de felicidade, porque este não se perde em disputas que ultrapassem comida e sexo, satisfaz-se com qualquer canto onde possa encostar seu corpo, dá tanto valor a uma roupa luxuosa quanto ao couro de um rato morto. Esse desprezo pela fama, pelo poder e pela riqueza é uma atitude imprescindível para um regresso ao natural, a chave de sua Ética.
Conta-se que vivia entocado em um barril, quando não estava perambulando pela cidade em busca de alimento. Seus únicos pertences eram um cajado, uma gamela e um luzeiro, com o qual se dizia que Diógenes andava para cima e para baixo, aceso em pleno dia. Ironicamente, dizia procurar pelo Homem, no sentido de que não havia mais ninguém que vivesse em sua verdadeira essência, sobrepujando as normatizações sociais e os elementos de exterioridade, colocando-se diante da vontade coletiva dos outros homens de maneira genuína, e, por consequência, efetivamente feliz.
Diógenes, dessa forma, tornava-se voluntariamente excluído das estruturas sociais da cidade, e era completamente alijado politicamente. Percebam o contrassenso, a ambiguidade, o paradoxo, o antagonismo, a contradição, a ambivalência, a incongruência, a aporia: sua fuga da cultura e de seus ícones maiores – como o renome – é justamente o que lhe tornou famoso, a ponto de chegar sua história aos ouvidos do imperador mais poderoso de então: Alexandre Magno da Macedônia. Diz-se que este, curioso com os relatos que davam conta de um sábio que vivia nas ruas de Atenas e que não tinha nenhum tipo de pudor (um testemunho afirma que Diógenes fazia tudo sem se esconder, inclusive as coisas “que dizem respeito a Deméter* e Afrodite*”, o que, em miúdos, significa cagar e trepar), foi procurar Diógenes em seu tonel, a fim de conhecê-lo. Encontrou-o deitado sob o sol, como realmente gostam de fazer os cães. Ao se aproximar, Alexandre projeta sua sombra sobre o cínico, que abre os olhos e o observa. Alexandre faz a apresentação costumeira, com loas ao seu próprio poder e pergunta o que Diógenes desejaria que lhe fosse dado. O diálogo:
- “Podes me dar o sol?”
- “Não”
- “Não me tomes o que não me pode dar”.
Pegou seu cajado e, com ele, ousou afastar Alexandre para o lado, de forma a receber novamente seus raios quentes. Os soldados que o acompanhavam começaram a murmuram indignados com a afronta que aquele maltrapilho cometia contra o imperador. Alexandre, no entanto, desmobiliza-os, afirmando:
- “Deixem-no, porque se eu não fosse Alexandre, desejaria ser Diógenes”.
Já vi mais de uma versão desse episódio, sempre semelhantes, e que serve para amostrar a mecânica ética dos cínicos: a autarquia, ou seja, o homem basta a si mesmo, e somente assim consegue tangenciar um ideal de felicidade, porque somente assim se consegue ser livre. E, paradoxalmente, é possível obter prazer através do desprezo pelos prazeres. Quanto menos há ligação com as coisas supérfluas, mais se tem liberdade. O significado da assertiva de Alexandre Magno vem ao encontro disso. Como imperador, tem obrigações e responsabilidades das quais nosso cãozinho só tem a rir. Diógenes exerce sua liberdade de palavra (parrhesia) ao tratar Alexandre com sarcasmo, e sua liberdade de ação (anáideia) ao empurrá-lo com o bastão, coisas que as convenções sociais e as disposições políticas impediriam qualquer outro de fazer.
Os cínicos não duraram muito. Suas atitudes eram muito extremas, quase beatíficas em relação a uma busca que, no fundo, negava a nossa humanidade. Sua atitude anticultural tinha como efeito colateral a negação de que o conhecimento é componente intrínseco à espécie. Essa redução à animalidade é uma forma de não nos distinguir com o que temos de mais característico. Se o que diferencia uma girafa é seu pescoço, um elefante a sua tromba, um pavão a sua cauda, o que nos torna únicos é nossa tão decantada capacidade de acumular e aperfeiçoar saberes. A autarquia, nesse sentido, pode funcionar individualmente, mas nos empobrece o arcabouço intelectual coletivo. O distanciamento da natureza ao se enriquecer a cultura é um processo inevitável, como já discursei neste texto.
E aqui caímos no Pequeno Guia das Grandes Falácias. É tentador associar pobreza econômica com deficiência intelectual. Claro: meios materiais facilitam muito atividades culturais, mas o diabo é que somos muito acostumados a associar sabedoria com conhecimento, o que nem sempre é verdadeiro. Este último é ligado à capacidade de acumular informações sobre nós mesmos e sobre o mundo que nos cerca, enquanto o primeiro tem o sentido de saber processar essas mesmas informações. Podemos fazer uma metáfora com um cozinheiro. O conhecimento é a despensa e a geladeira. É lá que estão as carnes, os grãos e os temperos. Nesse sentido, quanto maior a disponibilidade, melhor. Mas é preciso que o cozinheiro saiba o que fazer com tudo isso. Sendo bom, fará os preparos e as misturas certas, de modo a produzir pratos saborosos. Poderá até usar a lógica do “menos é mais”, sabendo que os alimentos devem ser apreciados por seu sabor em si, sem grandes aditivos. E mesmo com poucos ingredientes (o conhecimento) à disposição, o cozinheiro habilidoso (o sábio) terá a capacidade de fazer comida digna. Mesmo com uma carne dura, usará adequadamente o tempo de cozimento, as possibilidades de corte, as ervas corretas, não utilizará alecrim e teremos algo que servirá de almoço até dignamente. Agora, se o cozinheiro não for bom no seu ofício, juntará o melhor chorizo argentino com o melhor açúcar de beterraba ucraniano (ornado com raminho de alecrim) e produzirá sonora porcaria. Conhecimento sem sabedoria, enfim.
Para não perder o costume, a mesma alegoria pode ser construída no âmbito futebolístico. Um técnico de futebol, com perspicácia, poderá transformar um bando de caneludos em uma equipe competitiva, ao ajustar um bom esquema de marcação e explorar a velocidade do ponta e a força física do centroavante. Por outro lado, uma constelação de craques não dá liga com um técnico que não sabe administrar egos. Quantas vezes já não vimos isso? Novamente, é o caso de haver conhecimento, mas não haver sabedoria.
Portanto, associações automáticas do tipo que diz não ser possível existirem joias em charcos são falaciosas. No caso, são apelos à pobreza, ou argumentum ad Lazarum, falácia informal de dispersão e relevância como tantas outras, que se baseia na ocorrência de uma situação de pobreza para justificar um determinado argumento. É o exato oposto do apelo à riqueza (argumentum ad crumenam), já tratado neste espaço.
Cabe aqui reportar quem é esse tal Lázaro do termo latino. Na verdade, quem são, para não gerar confusões. Há dois personagens bíblicos relevantes com esse nome: um, da cidade de Betânia (atualmente em Israel), era irmão de duas mulheres, chamadas Marta e Maria. Essa família era amiga de Jesus, e algumas passagens de sua vida envolvem esses três. A mais célebre, sem dúvida, é a ressurreição de Lázaro, que já se ia morto havia quatro dias. Acreditar nisso literalmente é critério de cada um, mas não é esse o Lázaro que nos interessa no momento. O outro Lázaro era um mendigo mencionado em uma parábola, o método didático utilizado por Jesus em seus ensinamentos. Ele era leproso, e saiba que, se você chama alguém de lazarento, é justamente por causa dessa personagem e dessa doença que o faz. Afinal de contas, a lepra era uma doença incurável, daquelas que vão degenerando o organismo aos poucos e, o que é mais escabroso, transmissível. Isso tudo fez com que a lepra fosse costumeiramente associada à ira divina, de forma que, mais do que doente, o leproso era um excluído social.
Pois bem. O tal Lázaro, distintivo da miséria, morava à frente da mansão de um homem rico, e, comorientes, se veem em polos opostos em sua destinação além-vida: Lázaro recompensado com o céu e o rico inominado ardendo nas chamas do inferno. A justificativa reside na oposição entre os volumes de posses de ambos. A questão central da parábola deixa uma mensagem clara: as posses geram apego, e deixa-se a caridade de lado. Mas ela acaba por denominar a falácia por uma questão lateral. Independentemente da mensagem, não há nenhuma justificativa apresentada pela boa ventura de Lázaro, a não ser sua pobreza. Não se diz se ele era bom, se ele era justo, se ele era piedoso, ainda que se leve em conta suas condições materiais. Dessa forma, é possível compreender que esta é condição suficiente para explicar a situação de ambos, e, com isso, dar apoio a afirmações que usem a pobreza como justificativa.
Desta forma, é possível perceber que o apelo à pobreza pode ser utilizado em duas mãos. A primeira é negativa: por ser pobre, algo é ruim – é o exemplo da impossibilidade da sabedoria do miserável, que Diógenes contradiz. Já a outra dá favorecimento ao pobre em um argumento do tipo: “só sabe o que é viver mal aquele que é pobre”. Essa é uma meia verdade, porque, em linhas gerais, o pobre sabe mesmo o que é viver mal, mas é possível que isso seja desejável, novamente lançando mão do exemplo dos cínicos. E pobreza é ruim, mas não é a única desgraça que pode acometer alguém. Não é verdade que o senso comum sempre diz que o importante é ter saúde? Pois é.
É mais que óbvio que há apelos à pobreza não falaciosos. Qualquer argumento que se sustente na ausência de recursos para obtenção de melhorias econômicas são verdadeiros, afinal de contas não dá para comer caviar quando não se tem nem para o pãozinho. Mas é que, nestes tempos da defesa da meritocracia, é bem comum achar gente que queira aplicar a regra do apelo à pobreza em qualquer circunstância que defenda benefícios socialmente fundamentados.

Recomendação de leitura:
Diógenes de Sínope não deixou nada escrito. Por isso, para ter melhores informações sobre o gajo, apelei para o seu xará, que, além dele, narra outras histórias interessantes sobre filósofos da antiguidade. É bom de conhecer.
LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: UnB, 1988.
Tem muita gente que não gosta, e de fato é um comediante polêmico, especialmente quando representa o Pastor Adélio. Mas seus relatos sobre os tempos em que era viciado em crack são pungentes, principalmente porque despidos de um aspecto emotivo como aqueles que apresentam conversões e adesões a uma causa religiosa. Mas eu gosto muito e acho que devo indicá-lo.
https://www.youtube.com/watch?v=RPApKlvhqG4
* Deméter era a deusa da agricultura na mitologia grega, o que corresponde a todas as fases da produção, incluindo a preparação e a adubagem da terra, incluindo a destinação final da alimentação, que vocês sabem bem qual é. Sua correspondente romana é Ceres. Já Afrodite (em Roma: Vênus), bem mais conhecida, é a deusa do amor e do sexo. Sem mais.

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