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segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 6º relato: Águas de Lindoia e a dúvida entre o destino determinado ou aleatório

Olá!


Mais um dia, mais uma cidade. Desta vez, fomos à fronteira com Minas Gerais e conhecemos a cidade de Águas de Lindoia.

O tempo estava com ameaçadora cara de chuva, muito bem vinda nestes tempos ressecados, mas trazendo uma ponta de lamento para quem viaja. Aventuras como subida de morros, estradas de terra e outros ambientes convertidos em lama ficam tremendamente limitadas. Mas para nós, que fazemos de um torresmo e uma garrafa de cerveja um acontecimento, não havia nada de mau.

Águas de Lindoia já dá suas marcas germânicas logo no portal de entrada, algo que a aproxima de Campos do Jordão, por exemplo. Há em comum o fato de ser uma região bem montanhosa, a Serra da Mantiqueira.


A arquitetura com cara de Alemanha e região aliás, é espalhada por toda a cidade, conferindo um ar europeu a cada rua que se vá da porção urbana.


Este mesmo aspecto se mantém nas variadas lojas de roupas, em especial as malhas e tricôs, uma especialidade da sua vizinha Monte Sião, já no estado de Minas Gerais. Há um conjunto que se vê de longe, na estrada que sai da cidade.


Obviamente devido à proximidade com Minas, a culinária dos porcos e dos leites é quase que onipresente. A quem resolver conhecer Águas de Lindoia, recomendo um belo regime para baixar as taxas de colesterol. A comida é boa demais, e a vida é curta.


A cidade é altamente arborizada. Conseguiram o milagre de praticamente dobrar a área verde preexistente, que, associada à arquitetura que reproduz algumas peças semelhantes a castelos (como abaixo), dá uma sensação de deslocamento temporal rara.
 

A prefeitura tem um aspecto diferente em relação ao que mostrei até aqui. Tem um ar mais “brejeiro”, como uma das casas de fazenda bastante frequentes em outras épocas...


... fronteada por uma praça com simbologia aquática, com sói acontecer nestes municípios onde o precioso líquido é atração principal.


Com relação à religiosidade, temos aqui uma curiosidade. A padroeira local, Nossa Senhora das Graças, era homenageada por uma pequena capela localizada em uma encosta íngreme, acessada por uma bela de uma escadaria. Devido ao seu tamanho acanhado, foi construída a atual igreja matriz, que não lembra em nada o padrão de igrejona do interior, com seu estilo barroco, sua imensa praça e coreto. Também no alto de um monte, a nova construção é mais modernosa, mas que, devido às triangulações de seu teto, dá alguma lembrança aos sótãos típicos de todas aquelas construções teutônicas vistas anteriormente.


Mas é evidente que a principal pegada da cidade é mesmo a disponibilidade de água. Visitamos o balneário municipal, majestoso e fechado, para nossa infelicidade. Várias piscinas, tobogãs, vestiários, quadras... Tudo bacana e fechado em pleno janeiro*. É bem certo que a chuva estava às portas, mas molhado por um, molhado por mil.


Pelo menos foi possível refrescar a cara e a garganta na fonte que tem dentro do clube, acompanhado das bênçãos da padroeira retromencionada. Podia estar chuvoso, mas estava quente, viu?


Do lado de fora, mas no mesmo quarteirão, existe uma fonte com água mineral, devidamente homologada pelas autoridades sanitárias e sobejamente procurada por locais e turistas, armados, em sua maioria, de gulosos garrafões de plástico. Lembram que eu falei da capelinha original da cidade? É aquela que se vê ao fundo.


As bicas de água estão à disposição de quem estiver disposto a aguentar fila. Paulistanos que somos, não tivemos grandes percalços para encher nosso carro pipa de 500 ml.


Na cidade, há um baixio semelhante ao Grande Lago da vizinha Lindoia, onde também há um lago e capivaras, muitas capivaras. Não gosto de vê-las andando pela estrada, mas não pude deixar de observar sua presença e registrar a arriscada fila indiana.


Por algum tempo, pensei que Lindoia e Águas de Lindoia fossem uma só e mesma coisa, algo como Águas de Lindoia ser o nome oficial e Lindoia uma redução afetiva. Mas, apesar da proximidade nominativa e do compartilhamento da mesma riqueza natural, existem diferenças significativas entre ambas. Comparada com Lindoia, este município é mais bem estruturado, ao menos no que diz respeito aos quesitos turísticos. Lindoia parece a mim uma cidade mais industrial, voltada ao engarrafamento de água mineral, e Águas de Lindoia explora um pouco mais sua vocação de destino de viagem. Cada uma com seu mérito próprio e seus encantos peculiares, não criemos adversidades.

Mas o fato é que, por conta destas escolhas, cada uma delas parece ter assumido um destino diferente. O que resta de discussão é se destino se escolhe ou se suporta. Teve corrente filosófica que achava o destino inexorável. Vamos falar sobre isso?

Para tanto, vamos retomar a discussão sobre o Positivismo, a doutrina filosófica em que Auguste Comte propõe a Ciência como guia do pensamento, com este já devidamente dissociado das fantasias religiosas e das especulações metafísicas (o começo da conversa está na carta náutica de Estiva Gerbi). Esta linha filosófica foi uma autêntica pedra de toque para o emergente mundo capitalista, porque justificava socialmente as diferenças de classes através de uma sistematização rígida (quase um regime de castas) e adotado com fervor por todas as partes.

Este sistema social era desmembrado em quatro partes: os industriais (burguesia), os operários (proletariado), os sacerdotes e as mulheres. Mesmo reconhecendo as tensões entre as duas primeiras classes, Comte entendia que elas eram complementares e necessárias para o bem maior, uma solidariedade orgânica que daria arrimo e respaldo à industrialização, braço tecnológico da Ciência a distribuir bem-estar por entre as diferentes camadas. Porém, para existir, o empreendimento industrial necessita de três fatores – terra, capital e trabalho. Os dois primeiros representavam o poderio econômico, enquanto os operadores diretos, os trabalhadores, somente teriam os próprios corpos para entregar à equação. Desta forma, Comte legitima a burguesia como mantenedora de privilégios econômicos, muito embora entenda que todas as partes do conjunto tenham sua importância.

Com relação aos sacerdotes e às mulheres, tem funções sociais ditas espirituais, algo como cuidar do rebanho e dos filhos. Nem vou me aprofundar, mas Comte criou uma espécie de religião da humanidade, onde o papel de ambos estaria melhor descrito – só que aí já não estamos mais no campo puramente filosófico.

Toda essa rigidez no desenho das classes sociais e de sua estrita observação parte da premissa científica de que todo ato dá causa a outro ato, ou seja, em tudo existe uma relação de causa e efeito. Uma sociedade bem azeitada é aquela onde tudo o que é produzido alcança o maior bem possível ao maior número de pessoas (pensamento base para a corrente filosófica do utilitarismo, que será tratada oportunamente). Ou seja, para que o mecanismo social girasse sem percalços, era necessário estabelecer uma ordem que seria a causa para um progresso cada vez maior. Seu principal ponto de dissensão com relação aos socialistas anteriores a Marx era que, para estes, era necessária uma reforma na construção social com base nas instituições, enquanto para ele a revolução deveria ocorrer no plano individual, com a revisão do modo pessoal de se colocar diante dos valores e costumes. A beligerância entre as diferentes classes nada mais seria do que um instrumento que dificultava a obtenção da ordem e do consequente progresso. A ordem social era uma questão moral.

Ciência, causa e consequência. O progresso é a consequência da ordem, e a ordem é a causa do progresso. Essa circularidade representa bem o escopo social de Comte. A Ordem é a parte estática desse mecanismo, que lhe dá a estrutura que permite ao Progresso, sua parte dinâmica, fazer mover as suas engrenagens. Uma estrutura social em conflito não é uma ordem, e, sem ordem, não há como girar a roda da técnica – não há progresso. De nada adianta a Ciência se ela não consegue dar frutos – o fruto da Ciência é o progresso.

Esta doutrina foi tão bem aceita no período de otimismo em que nasceu que foi parar até mesmo na bandeira do Brasil. “Ordem e Progresso”, o lema positivista, era tido como a chave para a transformação de um país recém saído do império, que havia abolido a escravidão poucos anos antes, e que estava fervilhando de novas ideias trazidas pelos europeus, advindos em grande fluxo naquele momento histórico.

(Em tempo: há muita gente que entende ser correto o lema completo “Amor, ordem e progresso”, já que Comte usa tanto um quanto outro. Chegou a existir projeto de lei para alterar seu uso na bandeira. Mas é preciso fazer uma distinção importante: o lema “ordem e progresso” tem um contexto social e político, construído no momento em que o camarada sistematizava sua Filosofia prática. Já o segundo lema nasceu depois que Comte já tinha “fumado um” e decidido fundar sua religião positivista – exacerbando aquilo que ele mesmo renegou, a Religião – e procurava justificar a motivação para uma submissão à ordem. Quer dizer, cada um tem seu uso e o artista que desenhou a bandeira, Décio Villares, acertou na mosca – bem como seus idealizadores Raimundo Teixeira Mendes, Miguel Lemos e Manuel Pereira Reis).

Pois muito bem. Todo esse movimento teve sua radicalização, e a constatação de que a Ciência trabalha fortemente com relações de causa e efeito, inclusive com reflexos sociológicos, fez com que alguns pensadores constatassem que, ainda que de modo inaparente, absolutamente nada na vida se movia de maneira independente. O papa chamava-se Hippolyte Taine, e a corrente era o Determinismo.

O Determinismo percebe uma interpenetração tão grande entre todos os fenômenos naturais que reputa por impossível o isolamento de ocorrências aleatórias. Começando pelo cosmos, com o movimento dos astros; passando pela Terra, com os fluxos dos mares e dos ventos; e também pelo nascimento da vida, o brotar das plantas, a geração das crias, até chegar ao humano e seu comportamento, sua psicologia e desejos, tudo é fruto de correlações de causa e efeito. A avalanche de acontecimentos turva a visão, mas nada acontece sem uma anterioridade detectável. O homem é aquilo que esse ciclo determina que ele seja, bem como seu futuro.

Taine fazia sua Filosofia da História procurando vincular os acontecimentos humanos à tríade ambiente-raça-momento histórico. Para ele, esses três fatores determinavam, de modo inexorável, tudo o que um ser humano é. Por extensão, e sendo a sociedade uma coletivização das individualidades, também ela tinha estes fatores subjacentes ao seu destino.

O ambiente é muito importante na determinação do homem físico. Inclui todas as características geográficas do meio em que o homem vive, e explica muitas das diferenças existentes entre os habitantes de diferentes pontos dos planetas. Além disso, o ambiente se interpola ao próprio homem, imputando-lhe uma série de modos de ser. Um meio libidinoso gera indivíduos libidinosos, um meio agressivo gera indivíduos agressivos, e assim sucessivamente. O homem não é uma figura que se destaca do horizonte onde vive, pelo contrário. É aprisionado pelo mesmo.

A raça, por sua vez, carrega consigo as características inatas de diferentes povos, transmitidas hereditariamente, não só nos genes, mas também no temperamento. Usos e costumes de uma região do mundo são transmitidos não só pelo meio ambiente, mas também por essa genética psicológica. Também a dinâmica dos instintos é determinada pelo quesito hereditário: uma família de tarados gera mais tarados, idem para criminosos, idem para tolos, idem para viciados. 

Cheira a racismo? Sim. Não especialmente na intenção, mas inegavelmente nas consequências. O Determinismo, lido em suas entrelinhas, tem forte coloração eurocêntrica. Não porque afirme que os europeus sejam mais capacitados que os demais povos, mas porque atribui a eles um conjunto moral mais aperfeiçoado, sem fazer juízo crítico convincente. Aí sim, por tabela, deixa entrever que o europeu é uma raça mais “digna”, ainda que não o diga peremptoriamente.

Com relação ao momento histórico, também ele fornece traços aos homens, na medida em que o quotidiano é transformado pelo giro político e social. Independentemente do aspecto geográfico (meio ambiente), toda uma comunidade é transformada pelo contexto histórico. Vejam, por exemplo, o que é uma aldeia em um tempo de colheita ou na passagem dos carros de guerra. O que é uma vila de trabalhadores em tempo de opressão ou de revolução. Ou o que é um sindicato em tempos prósperos ou miseráveis. O que uma pessoa faria em uma situação, não faria em outra.

A principal crítica a esse modelo mecanicista é a reificação do homem, reduzido a uma máquina que, mesmo pensante, não faz escolhas. Mesmo quando o faz, suas opções são contaminadas pelos bons e velhos três fatores, que o guiam. O cientista que conseguir fazer a leitura destes fatores conseguirá até mesmo descrever a predestinação do indivíduo e da comunidade. Resumindo a ópera: não existe ato de espontânea vontade; quando se pensa tê-lo, há uma triste ilusão. O acaso e o livre arbítrio não existem; tudo é determinado.

O Determinismo, longe de ser um pensamento restrito, conquistou adeptos que persistem até hoje. Mas, especialmente quando do seu surgimento, teve um leque de influências extremamente amplo, a ponto de fazer nascer uma das mais prolíficas correntes literárias modernas: o Naturalismo e seus romances de tese.

O Naturalismo possui a mesma base conceitual do Determinismo, ou seja, o homem é fruto de fatores extrínsecos e intrínsecos que conduzem sua existência sem qualquer tipo de ingerência pessoal. A ficção desenvolvida é muito próxima da realidade (muitos autores consideram o Naturalismo como um braço cientificista do Realismo, com o que concordo). A partir da fundação desta escola, todos os aspectos humanos, por mais tabus que se constituam, são abordados com uma crueza pouco vista até então. A ação dos instintos chega ao seu paroxismo: a sobrevivência e os atos sexuais permeiam e justificam toda sorte de mazelas. O homem não maquina, mas é uma máquina; antes, cede a impulsos.

O Naturalismo é impessoal. Seus romances quase são artigos científicos, onde um determinado grupo social é esmiuçado pelas premissas mencionadas anteriormente. Há uma tendência em focar grupos marginalizados, onde nada mais se faz do que se tentar provar os porquês de sua condição, sempre inevitável e fruto de um encadeamento lógico. Apesar de parecer contraditório, o movimento teve uma visão patológica sobre a sociedade e pôs em tela os sofrimentos de classes antes pouco mencionadas na arte, como os homossexuais, os negros, os trabalhadores de mais baixa casta.

Este roteiro aparentemente engessado dá a entender que o Naturalismo gerou poucas obras de qualidade, mas isso não é verdade. Começando por Émile Zola, seu principal autor, um dos grandes mestres da palavra de todos os tempos, passando por Abel Botelho e Eça de Queiroz em Portugal (se bem que o segundo não se prende unicamente à escola) até chegar ao Brasil, com Aluísio Azevedo, Julio Ribeiro, Inglês de Souza, Adolfo Caminha e companhia bela. Todos muito recomendáveis.

Então é isso. Não me parece que Lindoia e Águas de Lindoia tenham sentado e esperado o mundo girar para escrever seus destinos, mas é sempre interessante pensar que há fatores com os quais não esperamos, e mesmo mexem no nosso jeito de ser sem que percebamos. Esse é, no meu humilde entender, o grande mérito das correntes que expus neste texto.

Recomendações de leitura:

Não consegui achar os livros de Taine em português. Mas ele não escreveu um livro específico para descrever suas teses sobre o Determinismo. Fê-lo no livro abaixo (em espanhol):

TAINE, Hippolyte. Introduccion a la historia de la literatura inglesa. Aguilar: Buenos Aires, 1977.


Recomendo também dois livros do Naturalismo. O primeiro, o mais importante da literatura mundial:

ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo: Abril Cultural, 1972.


E o segundo, o mais importante da literatura brasileira.

AZEVEDO, Aluísio de. O cortiço. São Paulo: Saraiva, 2015.

* Como pode ser lido nos comentários, a Prefeitura local informa que o balneário não se encontrava fechado na data em que o visitei, apenas estava vazio...

3 comentários:

  1. Olá! Gostaríamos de saber em qual dia da semana e horário esteve em nossas instalações, por favor. Envie-nos um e-mail para balnearioaguas@gmail.com

    Obrigada

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    1. Olá!!!

      Que legal!! Gostei de saber que meu blog interessou vocês... Aliás, parabéns pela rara atenção. Observando as datas das fotos, vi que estive em Águas de Lindoia no dia 22/01/2015.

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  2. Olá!

    Os espelhos d’água não ficam fechados, eles são abertos ao público gratuitamente das 7h30 às 17h de terça à domingo, assim como as fontes, jardins, sendo tarifados apenas serviços e piscinas, sendo que serviços de spa funcionam apenas até às 12h30. Se com “fechado” você quis dizer “vazios”, então está correto. Os espelhos não são abastecidos com nossas águas azuis já faz alguns anos por problemas de infiltração, problemas estes que no momento não temos recursos para solucionar, mas estamos trabalhando para isso!

    O Balneário Municipal de Águas de Lindóia, como tantos outros do Brasil, pertenceu ao Estado de São Paulo, no caso dos outros balneários cada um pertencia ao seu Estado, claro, o que impedia a administração municipal de realizar quaisquer melhorias por lei. Depois de sua municipalização, a atual diretoria está à disposição para quaisquer esclarecimentos a respeito das dificuldades e planos e projetos de melhorias.

    O e-mail direto da diretoria é balnearioaguas@uol.com.br

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