Mais um dia, mais uma cidade. Desta vez, fomos à fronteira
com Minas Gerais e conhecemos a cidade de Águas de Lindoia.
O tempo estava com ameaçadora cara de chuva, muito bem vinda
nestes tempos ressecados, mas trazendo uma ponta de lamento para quem viaja.
Aventuras como subida de morros, estradas de terra e outros ambientes
convertidos em lama ficam tremendamente limitadas. Mas para nós, que fazemos de
um torresmo e uma garrafa de cerveja um acontecimento, não havia nada de mau.
Águas de Lindoia já dá suas marcas germânicas logo no portal
de entrada, algo que a aproxima de Campos do Jordão, por exemplo. Há em comum o
fato de ser uma região bem montanhosa, a Serra da Mantiqueira.
A arquitetura com cara de Alemanha e região aliás, é espalhada por toda a cidade, conferindo um ar europeu a cada rua que se vá da porção urbana.
Este mesmo aspecto se mantém nas variadas lojas de roupas,
em especial as malhas e tricôs, uma especialidade da sua vizinha Monte Sião, já
no estado de Minas Gerais. Há um conjunto que se vê de longe, na estrada que
sai da cidade.
Pelo menos foi possível refrescar a cara e a garganta na fonte que tem dentro do clube, acompanhado das bênçãos da padroeira retromencionada. Podia estar chuvoso, mas estava quente, viu?
As bicas de água estão à disposição de quem estiver disposto
a aguentar fila. Paulistanos que somos, não tivemos grandes percalços para
encher nosso carro pipa de 500 ml.
Mas o fato é que, por conta destas escolhas, cada uma delas
parece ter assumido um destino diferente. O que resta de discussão é se destino
se escolhe ou se suporta. Teve corrente filosófica que achava o destino
inexorável. Vamos falar sobre isso?
Para tanto, vamos retomar a discussão sobre o Positivismo, a
doutrina filosófica em que Auguste Comte propõe a Ciência como guia do
pensamento, com este já devidamente dissociado das fantasias religiosas e das
especulações metafísicas (o começo da conversa está na carta náutica de Estiva Gerbi).
Esta linha filosófica foi uma autêntica pedra de toque para o emergente mundo
capitalista, porque justificava socialmente as diferenças de classes através de
uma sistematização rígida (quase um regime de castas) e adotado com fervor por
todas as partes.
Este sistema social era desmembrado em quatro partes: os
industriais (burguesia), os operários (proletariado), os sacerdotes e as
mulheres. Mesmo reconhecendo as tensões entre as duas primeiras classes, Comte
entendia que elas eram complementares e necessárias para o bem maior, uma
solidariedade orgânica que daria arrimo e respaldo à industrialização, braço
tecnológico da Ciência a distribuir bem-estar por entre as diferentes camadas.
Porém, para existir, o empreendimento industrial necessita de três fatores –
terra, capital e trabalho. Os dois primeiros representavam o poderio econômico,
enquanto os operadores diretos, os trabalhadores, somente teriam os próprios
corpos para entregar à equação. Desta forma, Comte legitima a burguesia como
mantenedora de privilégios econômicos, muito embora entenda que todas as partes
do conjunto tenham sua importância.
Com relação aos sacerdotes e às mulheres, tem funções sociais ditas espirituais, algo como cuidar do rebanho e dos filhos. Nem vou me aprofundar, mas Comte criou uma espécie de religião da humanidade, onde o papel de ambos estaria melhor descrito – só que aí já não estamos mais no campo puramente filosófico.
Toda essa rigidez no desenho das classes sociais e de sua
estrita observação parte da premissa científica de que todo ato dá causa a
outro ato, ou seja, em tudo existe uma relação de causa e efeito. Uma sociedade
bem azeitada é aquela onde tudo o que é produzido alcança o maior bem possível
ao maior número de pessoas (pensamento base para a corrente filosófica do
utilitarismo, que será tratada oportunamente). Ou seja, para que o mecanismo
social girasse sem percalços, era necessário estabelecer uma ordem que seria a
causa para um progresso cada vez maior. Seu principal ponto de dissensão com
relação aos socialistas anteriores a Marx era que, para estes, era necessária
uma reforma na construção social com base nas instituições, enquanto para ele a
revolução deveria ocorrer no plano individual, com a revisão do modo pessoal de
se colocar diante dos valores e costumes. A beligerância entre as diferentes
classes nada mais seria do que um instrumento que dificultava a obtenção da
ordem e do consequente progresso. A ordem social era uma questão moral.
Ciência, causa e consequência. O progresso é a consequência
da ordem, e a ordem é a causa do progresso. Essa circularidade representa bem o
escopo social de Comte. A Ordem é a parte estática desse mecanismo, que lhe dá
a estrutura que permite ao Progresso, sua parte dinâmica, fazer mover as suas
engrenagens. Uma estrutura social em conflito não é uma ordem, e, sem ordem,
não há como girar a roda da técnica – não há progresso. De nada adianta a
Ciência se ela não consegue dar frutos – o fruto da Ciência é o progresso.
Esta doutrina foi tão bem aceita no período de otimismo em
que nasceu que foi parar até mesmo na bandeira do Brasil. “Ordem e Progresso”,
o lema positivista, era tido como a chave para a transformação de um país recém
saído do império, que havia abolido a escravidão poucos anos antes, e que estava
fervilhando de novas ideias trazidas pelos europeus, advindos em grande fluxo
naquele momento histórico.
(Em tempo: há muita gente que entende ser correto o lema
completo “Amor, ordem e progresso”, já que Comte usa tanto um quanto outro.
Chegou a existir projeto de lei para alterar seu uso na bandeira. Mas é preciso
fazer uma distinção importante: o lema “ordem e progresso” tem um contexto
social e político, construído no momento em que o camarada sistematizava sua
Filosofia prática. Já o segundo lema nasceu depois que Comte já tinha “fumado
um” e decidido fundar sua religião positivista – exacerbando aquilo que ele
mesmo renegou, a Religião – e procurava justificar a motivação para uma
submissão à ordem. Quer dizer, cada um tem seu uso e o artista que desenhou a
bandeira, Décio Villares, acertou na mosca – bem como seus idealizadores
Raimundo Teixeira Mendes, Miguel Lemos e Manuel Pereira Reis).
Pois muito bem. Todo esse movimento teve sua radicalização,
e a constatação de que a Ciência trabalha fortemente com relações de causa e
efeito, inclusive com reflexos sociológicos, fez com que alguns pensadores
constatassem que, ainda que de modo inaparente, absolutamente nada na vida se
movia de maneira independente. O papa chamava-se Hippolyte Taine, e a corrente
era o Determinismo.
O Determinismo percebe uma interpenetração tão grande entre
todos os fenômenos naturais que reputa por impossível o isolamento de
ocorrências aleatórias. Começando pelo cosmos, com o movimento dos astros;
passando pela Terra, com os fluxos dos mares e dos ventos; e também pelo
nascimento da vida, o brotar das plantas, a geração das crias, até chegar ao
humano e seu comportamento, sua psicologia e desejos, tudo é fruto de
correlações de causa e efeito. A avalanche de acontecimentos turva a visão, mas
nada acontece sem uma anterioridade detectável. O homem é aquilo que esse ciclo
determina que ele seja, bem como seu futuro.
Taine fazia sua Filosofia da História procurando vincular os
acontecimentos humanos à tríade ambiente-raça-momento histórico. Para ele,
esses três fatores determinavam, de modo inexorável, tudo o que um ser humano
é. Por extensão, e sendo a sociedade uma coletivização das individualidades,
também ela tinha estes fatores subjacentes ao seu destino.
O ambiente é muito importante na determinação do homem
físico. Inclui todas as características geográficas do meio em que o homem
vive, e explica muitas das diferenças existentes entre os habitantes de
diferentes pontos dos planetas. Além disso, o ambiente se interpola ao próprio
homem, imputando-lhe uma série de modos de ser. Um meio libidinoso gera
indivíduos libidinosos, um meio agressivo gera indivíduos agressivos, e assim
sucessivamente. O homem não é uma figura que se destaca do horizonte onde vive,
pelo contrário. É aprisionado pelo mesmo.
A raça, por sua vez, carrega consigo as características
inatas de diferentes povos, transmitidas hereditariamente, não só nos genes,
mas também no temperamento. Usos e costumes de uma região do mundo são
transmitidos não só pelo meio ambiente, mas também por essa genética
psicológica. Também a dinâmica dos instintos é determinada pelo quesito
hereditário: uma família de tarados gera mais tarados, idem para criminosos,
idem para tolos, idem para viciados.
Cheira a racismo? Sim. Não especialmente na intenção, mas inegavelmente
nas consequências. O Determinismo, lido em suas entrelinhas, tem forte coloração
eurocêntrica. Não porque afirme que os europeus sejam mais capacitados que os
demais povos, mas porque atribui a eles um conjunto moral mais aperfeiçoado,
sem fazer juízo crítico convincente. Aí sim, por tabela, deixa entrever que o
europeu é uma raça mais “digna”, ainda que não o diga peremptoriamente.
Com relação ao momento histórico, também ele fornece traços
aos homens, na medida em que o quotidiano é transformado pelo giro político e
social. Independentemente do aspecto geográfico (meio ambiente), toda uma
comunidade é transformada pelo contexto histórico. Vejam, por exemplo, o que é
uma aldeia em um tempo de colheita ou na passagem dos carros de guerra. O que é
uma vila de trabalhadores em tempo de opressão ou de revolução. Ou o que é um
sindicato em tempos prósperos ou miseráveis. O que uma pessoa faria em uma
situação, não faria em outra.
A principal crítica a esse modelo mecanicista é a reificação
do homem, reduzido a uma máquina que, mesmo pensante, não faz escolhas. Mesmo
quando o faz, suas opções são contaminadas pelos bons e velhos três fatores,
que o guiam. O cientista que conseguir fazer a leitura destes fatores
conseguirá até mesmo descrever a predestinação do indivíduo e da comunidade.
Resumindo a ópera: não existe ato de espontânea vontade; quando se pensa tê-lo,
há uma triste ilusão. O acaso e o livre arbítrio não existem; tudo é
determinado.
O Determinismo, longe de ser um pensamento restrito,
conquistou adeptos que persistem até hoje. Mas, especialmente quando do seu
surgimento, teve um leque de influências extremamente amplo, a ponto de fazer
nascer uma das mais prolíficas correntes literárias modernas: o Naturalismo e
seus romances de tese.
O Naturalismo possui a mesma base conceitual do
Determinismo, ou seja, o homem é fruto de fatores extrínsecos e intrínsecos que
conduzem sua existência sem qualquer tipo de ingerência pessoal. A ficção
desenvolvida é muito próxima da realidade (muitos autores consideram o
Naturalismo como um braço cientificista do Realismo, com o que concordo). A
partir da fundação desta escola, todos os aspectos humanos, por mais tabus que
se constituam, são abordados com uma crueza pouco vista até então. A ação dos
instintos chega ao seu paroxismo: a sobrevivência e os atos sexuais permeiam e
justificam toda sorte de mazelas. O homem não maquina, mas é uma máquina;
antes, cede a impulsos.
O Naturalismo é impessoal. Seus romances quase são artigos
científicos, onde um determinado grupo social é esmiuçado pelas premissas
mencionadas anteriormente. Há uma tendência em focar grupos marginalizados,
onde nada mais se faz do que se tentar provar os porquês de sua condição,
sempre inevitável e fruto de um encadeamento lógico. Apesar de parecer
contraditório, o movimento teve uma visão patológica sobre a sociedade e pôs em
tela os sofrimentos de classes antes pouco mencionadas na arte, como os
homossexuais, os negros, os trabalhadores de mais baixa casta.
Este roteiro aparentemente engessado dá a entender que o
Naturalismo gerou poucas obras de qualidade, mas isso não é verdade. Começando
por Émile Zola, seu principal autor, um dos grandes mestres da palavra de todos
os tempos, passando por Abel Botelho e Eça de Queiroz em Portugal (se bem que o
segundo não se prende unicamente à escola) até chegar ao Brasil, com Aluísio
Azevedo, Julio Ribeiro, Inglês de Souza, Adolfo Caminha e companhia bela. Todos
muito recomendáveis.
Então é isso. Não me parece que Lindoia e Águas de Lindoia tenham
sentado e esperado o mundo girar para escrever seus destinos, mas é sempre
interessante pensar que há fatores com os quais não esperamos, e mesmo mexem no
nosso jeito de ser sem que percebamos. Esse é, no meu humilde entender, o
grande mérito das correntes que expus neste texto.
Recomendações de leitura:
Não consegui achar os livros de Taine em português. Mas ele
não escreveu um livro específico para descrever suas teses sobre o
Determinismo. Fê-lo no livro abaixo (em espanhol):
TAINE, Hippolyte. Introduccion
a la historia de la literatura inglesa. Aguilar: Buenos Aires, 1977.
Recomendo também dois livros do Naturalismo. O primeiro, o
mais importante da literatura mundial:
ZOLA, Émile. Germinal.
São Paulo: Abril Cultural, 1972.
E o segundo, o mais importante da literatura brasileira.
AZEVEDO, Aluísio de. O
cortiço. São Paulo: Saraiva, 2015.
* Como pode ser lido nos comentários, a Prefeitura local informa que o balneário não se encontrava fechado na data em que o visitei, apenas estava vazio...
* Como pode ser lido nos comentários, a Prefeitura local informa que o balneário não se encontrava fechado na data em que o visitei, apenas estava vazio...
Olá! Gostaríamos de saber em qual dia da semana e horário esteve em nossas instalações, por favor. Envie-nos um e-mail para balnearioaguas@gmail.com
ResponderExcluirObrigada
Olá!!!
ExcluirQue legal!! Gostei de saber que meu blog interessou vocês... Aliás, parabéns pela rara atenção. Observando as datas das fotos, vi que estive em Águas de Lindoia no dia 22/01/2015.
Olá!
ResponderExcluirOs espelhos d’água não ficam fechados, eles são abertos ao público gratuitamente das 7h30 às 17h de terça à domingo, assim como as fontes, jardins, sendo tarifados apenas serviços e piscinas, sendo que serviços de spa funcionam apenas até às 12h30. Se com “fechado” você quis dizer “vazios”, então está correto. Os espelhos não são abastecidos com nossas águas azuis já faz alguns anos por problemas de infiltração, problemas estes que no momento não temos recursos para solucionar, mas estamos trabalhando para isso!
O Balneário Municipal de Águas de Lindóia, como tantos outros do Brasil, pertenceu ao Estado de São Paulo, no caso dos outros balneários cada um pertencia ao seu Estado, claro, o que impedia a administração municipal de realizar quaisquer melhorias por lei. Depois de sua municipalização, a atual diretoria está à disposição para quaisquer esclarecimentos a respeito das dificuldades e planos e projetos de melhorias.
O e-mail direto da diretoria é balnearioaguas@uol.com.br