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terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 8ª mirada: Santa Branca e o desespero de quem filosofa no cárcere

Olá!


Neste último mês de janeiro completei 30 anos de casado com a patroa. Isso não só representa um bocado de tempo, mas também um número redondo, daqueles que gostamos de anunciar para cima e para baixo com o elegante nome de efeméride. Vejam que ninguém festeja com estrépito seus 29 ou 31 anos, mas os 30 são especiais. Já falei de raspão sobre este tema em outro post, e não ficarei o remoendo, bastando isso para dizer que a coisa teve caráter comemorativo um pouco mais extenso, e nada melhor do que uma viagenzinha para fazê-lo.

Daí entra a segunda parte. Uma viagem de três dias não pode ser para longínquas paragens, a não ser que o que se queira seja andar de carro. Inicialmente, pensei em retornar a uma das muitas cidades que já havia visitado anteriormente, mas cheguei à conclusão de que estender os limites de algumas regiões era uma boa ideia. Desta forma, optei por retornar à Vertente Oceânica Norte, subir novamente no cesto da gávea e acrescer a ela três cidades da área chamada de Alto Tietê, sendo a primeira a pequena urbe de Santa Branca. É por lá que começaremos nossas histórias.


Santa Branca tem o epíteto de Cidade Presépio. Para entender essa designação, é preciso saber como é um presépio napolitano. Quando pensamos em um artefato destes, relembramos da cena cristã no nascimento de Jesus em um estábulo, ladeado por Maria e José, e assessorado por burricos e boizinhos. Normalmente, esse é o limite suficiente para compreensão de seu significado. No entanto, os italianos da cidade de Nápoles criaram o costume de inserir a representação da natividade em um contexto citadino, com a inclusão de ruas e de trabalhos de seu dia-a-dia, para demonstrar que a presença de Jesus está no centro de suas vidas quotidianamente. Como tudo em Santa Branca é bem pequeno e há muito casario antigo, a cidade passa a impressão de ser, toda ela, um presépio napolitano. Boa sacada.


Bem no centro do “presépio”, fica a igreja matriz, dedicada à própria santa. Parece óbvio, mas há cidades com nome de um santo cuja matriz é dedicada a outro, em estranho paradoxo. É comum receber a visita dos peregrinos que trafegam pela Rota da Luz, uma malha de caminhos destinados à romaria para a cidade de Aparecida.


Sua construção foi feita aos poucos, como é tão comum acontecer. Inicialmente era uma pequena capela em taipa de pilão construída por volta de 1830. Foi sendo sucessivamente ampliada, até chegar ao seu formato final no final do século XIX. Ela orna a praça Ajudante Braga, um benemérito que botou um bom dinheiro na igreja.


Este cidadão, um fazendeiro de nome José Ferreira Braga, dá nome também ao prédio que abriga a Câmara Municipal, uma construção interessante de taipa de pilão, térrea na frente da praça e assobrada nas ruas laterais, acompanhando o desenho do aclive, com aquelas janelas em arco típicas do começo do século XX.


No lado oposto, em uma casa bem mais modesta, fica situada a Secretaria de Cultura e Turismo da cidade. Fiquei muito bem impressionado com o atendimento do pessoal, e gostaria de deixar registrado. Aqui, pudemos ver como a cidade se identifica com seu epônimo.


Apesar de já ser final de janeiro, lá estava instalado todo um presépio mecanizado, por obra do artista local Sarkis Alwan, que incluía desde a manjedoura com a sagrada família até uma procissão da folia de reis móvel, tocada por uma corrente de bicicleta. Eu o deixaria instalado permanentemente.


O presépio ocupa a sala toda, com o espírito “napuletano” que eu mencionei logo acima, e traz ocupações típicas da região, como a cozinheira de doces, os currais, os monjolos, os ferreiros, os marceneiros, os tropeiros e as rodas d’água.


Fora esses, há muitos outros prédios antigos distribuídos por toda a cidade, especialmente na região central. É que Santa Branca entra exatamente no mesmo contexto das demais cidades de fluxo dos tropeiros que traziam e levavam produtos e minérios da orla portuária para as minas que ficavam além da Serra da Mantiqueira.


Como sói acontecer, essas rotas de tropeiros possuíam mercados onde se realizavam negócios paralelos ao transporte, porque, afinal de contas, já naquela época era preciso comer. Santa Branca ainda tem o seu e está bem preservado, embora seja a reconstrução de 1920.


Além da oferta dos produtos agrícolas da região, há uma boa quantidade de mudas de plantas, sendo que figueiras e pés de abacaxi estão em alta no momento. O Jeca na entrada é uma espécie de homenagem ao comediante Mazzaropi, que andou fazendo suas filmagens por aqui.


Uma das atividades que vem ganhando certo incremento na cidade é o artesanato. Prova isso o fato de que a principal iniciativa neste sentido vem do âmbito privado, com um estabelecimento chamado “Casa da Arte”, que busca agregar os pequenos artesãos em um núcleo que facilite seu comércio.


Quem nos conta essa história é a Samira, a menina que estava lá não só atendendo os clientes, mas também acompanhando os trabalhos de arte-educação que também são oferecidos no local. De longe, o principal produto dos artesãos locais são os bonecos de pano, feitos de feltro e barbante.


Outra especialidade do pequeno município é a cachaça, a quem chamam genericamente de “santa branquinha”. Diz-se que, quando os alambiqueiros viajavam para São Paulo a fim de vender sua marvada, a mesma recebia este apelido por conta de sua origem. Há controvérsias, mas não importa. A pinga é forte toda a vida.


Foi na Casa da Arte que pegamos uma boa dica para o almoço. Já fora do centro urbano, há uma fazenda de estilo antigo que sedia o Engenho Velho, um verdadeiro espaço multiuso rural. O principal é o restaurante, que oferece comida caipira por quilo, nos espaços internos e no alpendre. Boa, por sinal.


Sempre lembrando que não faço elogios em troca de grana, porque meu blog é menos frequentado que jogos de terça-feira, mas porque realmente gostei do que vi/ouvi/comi. Há uma sala que contém um museu de objetos antigos, daqueles que explicam as manufaturas das fazendas e que tem objetos da prática diária.


Nos fundos do Engenho, há um morro onde um canal recolhe a água de uma nascente e que a distribui por toda a propriedade, sendo que um dos ramais desemboca em uma roda d’água, que era um dos poucos meios possíveis para obter energia em tempos pretéritos. A ação da água fazia girar a roda, que fica ligada a um gerador.


Para fazer o quilo no dopo pranzo, há uma trilha ao lado da roda, que leva ao alto do morro do engenho, em uma mata repleta de carrapichos, e que conduz a um lago que fica pela parte de trás da fazenda. Como eu tenho uma nuvenzinha nas costas, estava chovendo e bem escorregadio. Mas lasque-se. Fui assim mesmo.


Santa Branca faz parte da mesorregião conhecida como Vale do Paraíba, nome este derivado do Rio Paraíba do Sul, primordial para a vida da região. Às suas margens, bem na entrada da cidade, uma discreta obra guarda importantes informações históricas. Quem vem pela ponte de concreto, precisa descer do carro para olhar ao rio e ver uma antiga ponte metálica sustentada em dois pilares, já sem tablado e com seus acessos bloqueados e cobertos de mato. O que há de interessante nela é o fato de que foi projetada e construída pelo escritor Euclides da Cunha, que concluía a revisão de sua obra-prima, Os Sertões, enquanto tocava o projeto em 1902.


Um pouco mais acima, há a represa de Santa Branca, barrada pela usina hidrelétrica de mesmo nome. Nela, há uma série de reentrâncias que facilitam muito a vida de quem gosta de pescar. Em uma delas, conhecida como Toca do Leitão, ficam muitos barcos que usamos para navegar pelas mansas águas, ao lado de um bar onde dá para comer peixe fresco.


Devidamente forrados, restava a mim e à patroa suprir os latões com chopp, sem dois pastel, mas com calabresas enroladas na batata, uma especialidade da casa Choppi. Ficamos lá relembrando de coisas boas do passado, como pede a ocasião, para depois sair dançando na chuva em busca do hotel.


Voltemos rapidamente ao plano religioso, porque este será o mote do atual escriba. Mais do que em outros lugares, os santa-branquenses são muito ciosos da padroeira que os nomina. Se pensarmos em São Paulo, por exemplo, pouca gente sabe que a data de 25 de janeiro, fundação da cidade, coincide não com o nascimento do santo, ou com sua morte, mas com aquela atribuída à sua conversão. São Paulo é bem pouco cultuado em São Paulo. Não é o que ocorre aqui.


Há muitas representações de Santa Branca espalhadas pela municipalidade toda, incluindo não só nomes de comércios e estabelecimentos públicos, mas imagens concretas ou estilizadas, sempre mais ou menos com a mesma iconografia: a jovem ajoelhada, de mãos postas e com uma grossa corrente pendurada no pescoço.


Essa menina vivia na Cesareia, região onde hoje é a Palestina, na época em que o xará imperador Décio estabeleceu um dos éditos que, de quando em vez, obrigava os praticantes de outras religiões a prestar culto às divindades romanas. Isso tudo se deu por volta do ano 250.


Diz o Martirológio Romano que, como outros mártires, a pequena Albina (seu nome de batismo) resistiu a muitas torturas para fazer com que sua fé fosse abalada. Foi lançada na prisão, onde manteve sua atitude orante, o que deu origem à sua imagem mais conhecida. Foi por fim decapitada e teve seu corpo colocado em uma barca, que, lançada a esmo, foi aportar na cidade de Scauri, onde seus restos mortais estão até hoje, no altar da catedral de Gaeta.


Uma guria tão jovem ser morta apenas pelo fato de que professa uma fé diferente do que entendem ser correto os poderosos de plantão não é só uma crueldade e uma covardia, mas uma reação inesperada de um organismo que, prioritariamente, quer sobreviver. E então podemos parar para pensar no drama da expectativa do martírio. Já fiz minhas observações sobre este tema em um texto que se centrou em Giordano Bruno, mas a coisa aqui é outra. No começo do Cristianismo, os mártires proliferaram aos borbotões, sempre pelos motivos mais abjetos, como a simples defesa do direito ao culto. Ainda que a própria Igreja Católica reconheça o caráter mítico das narrativas sobre os mártires mais antigos, o fato é que sempre são apresentados como exemplo de abnegação e de fé, e são reverenciados por todo o mundo. São Jorge, São Sebastião, Santa Bárbara, Santa Luzia (com seu cavalinho comendo capim) ... Todos eles dão um recado universal, que suplanta a mera fé cristã – são heróis das causas, e admirados até mesmo por nós, incréus. Mas toda a sua força não os afasta da angústia da morte iminente. Ponho-me no lugar da pequena menina Branca, colocada diante de um verdugo, e eu abjuraria em cinco minutos (ou menos). Mas a minha régua é muito diferente dessa hoje em dia, por isso é preciso cuidado na análise.

Não temos muitos registros além daquilo que sua devoção nos conta, e a ossada no pé do altar da igreja em Scauri é atestada apenas por uma tradição, o que coloca um bocado de dúvidas sobre sua veracidade. No entanto, a crítica é favorável tanto à sua existência quanto às circunstâncias mais gerais de sua prisão e martírio, o que legitima seu drama. Entretanto, ainda que fosse interessante, não temos nenhum relato pessoal recolhido para melhor compreender esse motor além da generalidade mais óbvia, a fé que movia os mártires. Não nesse caso específico, pelo menos. Porque temos uma história muito boa e com certa semelhança para contar, e, desgraçadamente, de um filósofo. Trata-se de Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius, ou, mais simplesmente, Boécio. Com um roteiro bastante semelhante aos mártires cristãos em geral, nosso romano enfrentou o martírio por ter sido considerado um traidor do declinante Império Romano, em uma acusação reputada como injusta. Ficou um longo tempo no cárcere, onde escreveu sua principal obra, A Consolação da Filosofia, na qual enfrentou dois problemas extremamente delicados: a teodiceia e o livre-arbítrio. Vamos a eles.

Em sua obra, Boécio adota a personalização da Filosofia como se esta fosse uma deusa, e estabelece com ela uma estrutura de diálogo fortemente influenciada pela retórica platônica, onde ele se insere em uma posição de aprendiz enquanto a mulher que surge à sua frente possui o altivo aspecto da sabedoria. O livro se desenrola em um velejar que vai da poesia para a prosa, sendo a primeira síntese e conclusão dos desenvolvimentos da segunda, dando-lhe um ar muito sofisticado. Para além do tom lamentoso, Boécio quer compreender o que é o bem e o mal e como Deus, sendo o sumo Bem, permite que os justos sofram. É isso que chamamos de Teodiceia, um estudo que foi nomeado muito mais tarde pelo alemão Leibniz, mas que vem sendo aplicado há muito tempo já, sendo uma disciplina de estudos nas faculdades de Filosofia ainda hoje, em especial nas confessionais.

Teodiceia é um termo grego que significa “justiça de Deus”, e nada mais é do que uma tentativa de entender o problema do mal. Ora, direis, essa é uma questão válida unicamente para adeptos de religiões que tem um deus benevolente como ente supremo, no que concordarei. Mas é preciso pensar em dois aspectos. O primeiro é que a existência de uma divindade nestes moldes é filosoficamente aceitável, e o segundo é que Boécio é um mestre da Lógica, como já explanei neste texto, e o modo como seus argumentos são construídos são uma pérola da Filosofia.

Como eu já disse, Boécio se sentia injustiçado na prisão, e certamente tinha poucas esperanças de um desfecho diferente da morte. O questionamento dos motivos pelos quais não era protegido do mal que sofria era inevitável. A musa filosófica criada para seu diálogo, preliminarmente, recorda ao infeliz que, dado ao caráter transgressivo das ideias, o filósofo está sempre em risco, bastando o exemplo da morte de Sócrates para ilustrar. Mas o problema específico do mal está no engano de seus benefícios. O mau, quando pratica o mal, busca exatamente a mesma coisa que o bom: a felicidade. Por exemplo, se eu extorquir o público que atendo, busco vantagens materiais que podem me proporcionar tudo aquilo que eu desejo. Entretanto, há o risco e eu o conheço: ora de punição, ora de vingança, ora de desprezo. Uma aura de angústia perpassa a alma daquele que busca a felicidade através da prática do mal, sem contar o castigo que certamente virá, seja pela mão dos outros homens ainda nesta vida, seja pela justiça divina, no pós morte.

Isso não invalida a observação de que os bons sofrem. No entanto, dada a limitação do alcance da compreensão da humanidade, não se percebe o substrato que permeia a realidade, que é a providência. Boécio entende que o mundo, mutável por natureza, se movimenta através das formas distintivas imutáveis da consciência divina. A razão de Deus é o constructo pelo qual o destino se estrutura. Dessa forma, as coisas são exatamente como devem ser, ainda que a mente humana seja incapaz de percebê-las assim. E essa é a origem primordial da prática do mal mencionada a pouco. Os homens praticam o mal aos outros e a si mesmos sem essa percepção.

Sendo as coisas desse jeito, com a providência regendo os destinos do mundo, é necessário entender que as sinas individuais e coletivas estão escritas e que o livre-arbítrio não passa de uma ilusão. A resposta que Boécio oferece para este desafio tem base na diferença entre o tempo humano e o tempo divino. Como homens, vivemos em um transcurso que nos faz ter um passado, um presente e um futuro, e intuitivamente tentamos atribuir esta mesma lógica ao tempo de Deus. Entretanto, se admitirmos que Deus possui o atributo da onipresença, não devemos supor que essa totalidade está apenas no plano espacial, ou seja, de que ele esteja presente em todos os lugares ao mesmo tempo, mas que também esteja presente em todos os tempos simultaneamente. Essa diferença existe porque o conceito de finitude, tão cristalizado na única certeza humana da morte, não pode ser aplicado a quem é eterno. Deus, sendo também onisciente, tem conhecimento simultâneo de todos os fatos e fenômenos, já ocorridos ou por ocorrer, porque essa é uma dimensão nossa. Esse "antes", "agora" e "depois" não faz sentido algum a quem tem tudo posto a todo tempo. O único tempo em Deus é o presente.

Entretanto, o fato de que Deus seja presciente não significa que a providência torne o destino fixo, apenas que ele saiba o que cada um fará de acordo com o que lhe for dado. A grande conclusão de Boécio é um conformismo. Devemos aceitar o destino porque não está ao nosso alcance intervir nele com nossos parcos meios, restando-nos a certeza de uma justiça divina para os desequilíbrios causados pelo mal, como ele e a pequena Santa Branca precisaram enfrentar.

O pensamento de Boécio é daqueles com os quais podemos concordar zero por cento, mas que é absolutamente admirável pela alta qualidade da lógica aplicada e à agudeza dos argumentos, embora, na forma platônica com que é utilizado, careça de originalidade (o que, sejamos francos, não é uma necessidade absoluta). Mas, substancialmente, o texto de Boécio nos mostra como a razão tem, também ela, uma espécie de instinto de sobrevivência, no sentido de não se abater pelo desespero. É preciso lembrar que Boécio escreveu sua obra não somente aprisionado, mas também nos intervalos das torturas, o que justificaria qualquer outro tipo de revolta. Entretanto, ele escreve uma obra humana, calcada na esperança de que seu sofrimento não seja uma mera contingência, mas algo que pode ser explicado racionalmente.

Da noite passada dançando na chuva, com o som do sambinha de boteco se distanciando cada vez mais, ficamos entregues ao nosso destino comum, eu e a patroa, e relembramos nossa passagem diante da estátua de Santa Branca. Meio bêbados, porém ainda conscientes, apenas libertados de nossa timidez, tivemos vontade de perguntar à jovenzinha se valeu a pena tanto sacrifício. Pelo menos ela tem uma história linda para contar. Bons ventos a todos e até a próxima mirada.

Recomendação de leitura:

Vai para a magnum opus de Boécio, que deu base para este texto. Uma prova de que a produção medieval não é só Teologia, mesmo quando tangencia com o tema.

BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

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