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quarta-feira, 4 de março de 2020

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 10ª mirada (2ª parte): o distrito de Luís Carlos evocando os princípios e leis da Gestalt

Olá!


Eu não poderia falar de Guararema e omitir a sua linha de ferro. Somente achei que tinha coisas demais para falar em um só texto. Por isso, entendi por bem quebrar a tarefa em duas e, calmamente, focar-me mais especificamente em temas bem distintos. Isso corrige meu defeito da prolixidade e encurta um pouco a conversa nestes tempos de aversão a textos longos. Desta forma, vamos nos afastar do centro da terra do pau d’alho e caminhar até o distrito de Luís Carlos, que existe justamente em função do trem.


Eu já andei de maria-fumaça em Jaguariúna, já conheci a linha de Passa Quatro e a de São Lourenço, sem esquecer do Memorial do Imigrante de São Paulo, e talvez eu fizesse o mesmo por aqui. Acontece que cheguei muito em cima da hora para comprar as passagens, pelo simples e óbvio motivo de que estava andando por aqui e por ali. Quando fui à bilheteria, já estava tudo esgotado. Passons, vamos fazer de carro o trajeto. Com relação à estação de Guararema, tem a mesma carinha de século XIX de tantas outras que já vi por aí. Ela funcionou durante o período de 1876 até a década de 70, quando a decadência da Central do Brasil a tornou inútil.


Ele somente voltou a operar em 2015, desta vez como trem turístico, ligando o Centro de Guararema ao distrito de Luís Carlos, distantes nove quilômetros um do outro, e que desde 1914 procurava levar imigrantes para aquela região então desprovida de habitantes.


Seu nome deriva de Luís Carlos da Fonseca Monteiro de Barros, que, à época da inauguração, era chefe do segundo distrito da Estrada de Ferro Central do Brasil e foi um dos grandes entusiastas da construção desta estação.


É uma vila autenticamente cinematográfica, e foi utilizada por muitos diretores que precisavam criar uma ambientação que retomasse os princípios do século passado, em especial os tempos da chegada dos imigrantes às terras ainda pouco exploradas.


Uma homenagem a eles é feita por meio da área lateral da estação, chamada de Pátio dos Imigrantes. Vi lá nomes italianos, portugueses, espanhóis, alemães, árabes, ingleses e franceses, representativos dos trabalhadores da ferrovia e dos primeiros habitantes da pequena aldeia.


A reoperacionalização da estação levou à reforma não somente do prédio em si, mas de todo o entorno, com o antigo calçamento a macadame sendo completamente trocado e com um forte viés comercial, já que os trilhos trazem boa parte dos turistas que frequentam o Centro de Guararema.


No dia em que eu estava por lá, não vi a Velha Senhora, a locomotiva a vapor que é a vedete da linha. Talvez uma parte do trajeto seja feito com máquina a óleo, que não deixa de ser bastante antiga. Trata-se, no caso, de uma A. Gonigan australiana, de 1978.


A composição é menor que a de Jaguariúna, sendo utilizados três vagões de madeira, todos adaptados para necessidades de acesso. Antigamente, não se pensava muito nessas questões.


Por dentro, o perfil dos vagões é aquele menos popular, com bancos estofados e bastante espaço entre eles. Na inevitável comparação com Jaguariúna, lá os vagões não são de primeira classe, com bancos de madeira nua e mais apertadinhos. Aqui, portanto, temos mais conforto e menos reflexo histórico.


A principal diferença que temos aqui são os vagões caboose, que têm espaços abertos na terminação das composições, permitindo uma experiência diferenciada de viagem ao livre.


Pena que não deu tempo de pegar o trem, mas fica para outra. Até mesmo porque a própria vila é um espetáculo à parte. Absolutamente representativa no início do século XX, dá mostra completa do talento dos muratori italianos, os pedreiros detalhistas da simplicidade.


Um dos imóveis maiores é destinado a ser um espaço expositivo, onde, mais uma vez, o engenheiro Luís Carlos recebe reverência.


Ali, além das exposições transitórias (em minha passagem, havia uma série de reproduções de pinturas conhecidas por alunos da região), há também mostras permanentes com artigos da ferrovia, como esse belo painel de relógios de estação.


O outro prédio grande é utilizado como um receptivo turístico, onde se pode obter mapas da região e da cidade.


Entre os dois prédios, há uma viela que é dedicada a Elias Cecin Zoghbi, um imigrante libanês que foi um dos pioneiros do bairro. No final da ruela, há um grande painel com o desenho da Velha Senhora, uma locomotiva Baldwin de 1927.


No centro da pequena praça central, temos uma pequena capela dedicada a São Lourenço, padroeiro do local. É um dos tantos santos mártires que a igreja católica cultua, com uma curiosidade que já relatei neste texto: ele morreu queimado, mas, ao contrário da costumeira exposição direta ao fogo, aqui tivemos um santo "grelhado". Por isso, sua imagem costuma vir acompanhada de uma grade de churrasqueira.


De resto, toda a área é ocupada por restaurantes, bares e comércio de artesanatos.


A ordenação das casinhas deu meio que uma bugada na minha cabeça. Elas são dispostas de maneira tão bem encaixada entre si que em nada lembram o padrão Bombaim que costumamos ver em Terra da Garoa, onde cada um faz as coisas ao seu modo. Parece mais coisa de Piet Mondrian, o profeta do concretismo geométrico. Dei umas opiniões aqui.


É que eu tenho uma sensação de complementaridade tão forte ao ver as casinhas que a sua proximidade parece estender sua linha ao infinito, como se o ritmo das paredes fosse o mesmo dos trilhos: perdem-se nos confins do horizonte.


É claro que isso não é possível de obter com fotos, mas dá a impressão de que eu buscava uma sensação de totalidade que desse sentido ao contexto da vila. Resolvi o problema com a imagem disposta em um livro.


Isso tudo é loucura? Não. Isso tudo é Gestalt. Vamos falar sobre isso.

A psicologia da Gestalt surge em um momento de profunda divisão entre os adeptos da psicanálise, que exploram o inconsciente, e os behavioristas, cujo grande foco é o comportamento. Sua proposta é dirigida para a maneira como percebemos o mundo e de que maneira isso influencia nosso aprendizado.

A brincadeira toda começa com um insight interessante, quando Max Wertheimer, psicólogo tcheco, em uma viagem de trem, observou o semáforo de sinalização de uma estação que era composto por duas lâmpadas. Entretanto, como cada uma delas acendia e apagava em um momento específico, a impressão que passava era que a mesma luz rolava de um lado para o outro, como se fosse apenas uma. Isso o inspirou a realizar experiências com percepções sensoriais para dar base ao entendimento de como adquirimos elementos do mundo exterior. Em colaboração com Wolfgang Köhler e Kurt Koffka, elaborou um teste com base na alternância de pontos luminosos. Era muito simples: dois círculos instalados em uma superfície plana podiam ser acendidos e apagados, sem que ambos pudessem estar ligados ao mesmo tempo. Se estes pontos eram acesos com uma diferença muito grande de tempo, percebia-se claramente se tratar de dois elementos distintos, com uma transição muito evidente. Por outro lado, se alternância era muito rápida, a percepção era a de que havia dois círculos acesos ao mesmo tempo. Quando se chegava a uma determinada velocidade de alternância, a coisa acontecia – tínhamos a sensação de que o círculo se movimentava, ora para a esquerda, ora para a direita. Ao contrário do que pode parecer a princípio, não se trata de uma mera ilusão de ótica, mas de uma característica da percepção. É o que estes psicólogos denominaram de movimento aparente, produzido por aquilo que foi denominado como fenômeno phi.

Essa experiência por si só é bem interessante, mas, no fundo, levou apenas à constatação de que a percepção precisava ser estudada em sua estrutura, muito além do mecanicismo dos behavioristas ou da quase-metafísica dos freudianos. Nascia assim uma psicologia preocupada com as formas e modo como os objetos se apresentavam aos sentidos do homem que ganhou o nome de gestalt. Essa palavrinha alemã pode ser traduzida como totalidade ou estrutura, mas a melhor expressão possível, no meu entender, se dá com o termo configuração. Isso porque o fenômeno da gestalt se dá através da maneira com a qual os componentes de uma determinada sensação se relacionam entre si, de modo a haver uma configuração que faça o cérebro trabalhar de determinada maneira. Em outras palavras, aos olhos de quem vê, cada conjunto de elementos se constitui em uma gestalt, uma configuração. E essa “conversa” entre elementos é regida por princípios e leis que derivam de nossa atividade cerebral.

Dificilmente uma estrutura está desacompanhada em uma percepção. Uma gestalt é, primordialmente, uma configuração do todo perceptivo que normalmente é composta por outras gestalten*. Vamos para o exemplo. Este é um símbolo bastante conhecido para quem é do mundo do futebol:


Quando a observamos, estamos despreocupados com suas partes. Vemos o todo e resgatamos em nossa memória o seu significado. Entretanto, quando olhamos a imagem analiticamente, podemos perceber como ela é composta por partes, que, isoladamente, mantém algum tipo de sentido.


Ou seja, uma gestalt é um conjunto de gestalten, que podem ser focadas pormenorizadamente de modo a demonstrar como uma configuração apresenta sentido novo ao se relacionar com o espectro maior do todo. Vejam que, a partir de agora, teremos uma gestalt que, isolada do conjunto anterior, tem o significado de bandeira de São Paulo.


O processo de decomposição pode ser levado até o momento em que não haja mais sentido nos elementos remanescentes, ou que tenhamos uma gestalt composta por um único item, como podemos ver abaixo, no mapinha do Brasil já isolado, que ainda guarda seu significado próprio.


O que Wertheimer e colegas notaram é que o efeito phi nada mais era do que uma gestalt. É uma configuração tal que nosso cérebro percebe como movimento algo que, na verdade, é estático. Nada mais do que uma maneira com a qual a mente adquire informações do mundo exterior a partir da relação intrínseca entre os elementos que o compõe. Por esse motivo, sempre que estudamos a psicologia da forma, comete-se o equívoco de sermos bombardeados com ilusões de ótica. Isso não é um erro em si, mas uma visão meio limitada da realidade do que é o fenômeno perceptivo. Mas, por fim e por tudo, por que as coisas acontecem desse jeito?

A resposta está no isomorfismo psiconeural. O processo de aquisição dos sentidos se dá através de nossos órgãos destinados para tal, mas eles, por si só, apenas levam os estímulos ao cérebro. Cabe a este fazer as interpretações que, como é comum em uma espécie que vive do simbólico, podem não ser o sentido estrito do que observamos. É como o distintivo citado anteriormente, que não tem concreção alguma por si só, sendo uma espécie de “catado” de objetos se não houver um processo de construção de significado. As configurações que são apresentadas possuem uma forma de correspondência cerebral e é assim que a nossa massa cinzenta interpreta o que está sendo apreendido pelos sentidos. Trocando em miúdos, o cérebro “encaixa” o conteúdo dos sentidos em um conteúdo da consciência e com isso constrói a representação – há uma correspondência entre a configuração física e a lógica mental. Por isso o termo isomorfismo: “estrutura igual” em grego. E é através do aprendizado que aumentamos nosso acervo mental, dando mais possibilidades de correspondência com fenômenos do mundo exterior. Por isso a psicologia da gestalt é tão importante para a Pedagogia.

Essa é a hipótese fisiológica da coisa que, evidentemente, não é fácil de provar. Mais simples são as constatações fenomenológicas, que demonstram ter a Gestalt uma série de leis e princípios que são maciçamente utilizadas no âmbito da educação e, principalmente, da publicidade. Vou fazer o meu trabalho e trazer os principais itens, desde já lembrando que já foram descritos mais de cem. Como este não é um tratado, vou falar sobre um punhado deles, aqueles mais óbvios.

Princípio da pregnância – Alemães gostam de criar termos e isso nos dificulta a tradução, mas nós vamos sempre tentar. Pregnância é uma expressão que nos indica uma tendência a termos mais facilidade em reconhecer preferencialmente figuras bem estruturadas. Em outras palavras, o cérebro tende a interpretar com mais facilidade elementos visuais que nos são colocados com simplicidade e pouco paradoxo. Vamos fazer uma comparação:


Temos aqui os escudos dos dois principais times gaúchos da atualidade: Internacional e Grêmio. Percebam que, independentemente do valor estético de cada um deles, é extremamente mais simples ler o conteúdo do segundo do que do primeiro. Nele, está escrito “Grêmio” e acabou, sem deixar nenhum tipo de dúvida: é uma gestalt com alta pregnância. Com relação ao Inter, a elegância no entrelaçamento das iniciais faz com a pregnância abaixe, já que não é possível bater o olho e identificar a sequência das letras, e até mesmo o reconhecimento destas é mais complexo, por exemplo. Neste caso, temos um caso de baixa pregnância.

Princípio da super-soma – este é um dos fundamentos mais básicos de todos da teoria da gestalt. Ele indica que o todo não pode ser conhecido simplesmente pela observação de suas partes, já que há uma questão decisiva: a configuração destas partes faz com que se varie o significado do todo. Assim sendo, a soma das partes não significa o todo. O todo é algo diferente da soma das partes, é uma realidade própria. Vejam o seguinte exemplo: temos o distintivo do São Paulo, conhecido por sua simplicidade:


Apesar de não ter uma quantidade imensa de elementos, ainda assim possui partes próprias que podem ser visualizadas individualmente.


Se reunirmos novamente todos esses componentes de maneira aleatória, é evidente que não teremos o escudo do São Paulo, a não ser que respeitemos toda a configuração que o caracterize.


Nosso conhecimento prévio pode até fazer com que percebamos se tratar de um distintivo, mas que certamente não é o do clube que representava originalmente. Desta forma, podemos notar que há algo que vai além da soma das partes para garantir um determinado significado.

Princípio da segregação figura-fundo – quando observamos a totalidade de um estímulo sensório, percebemos que alguns elementos se destacam mais do que outros, pelas mais diferentes razões: centralidade de posição, nível de contraste entre os componentes, colorações mais fortes ou mais fracas, movimento, texturas e muitas outras. Essa capacidade de isolar e evidenciar certos objetos em detrimento de outros é o que se chama de segregação figura-fundo. Figura, no caso, é o elemento de identificação mais forte, enquanto fundo é todo o horizonte que cerca a figura.

Não é tão fácil quanto parece estabelecer qual elemento exercerá a função de figura e qual será seu fundo. Cores berrantes tendem a chamar mais atenção dos sentidos, mas nem sempre isso é verdadeiro. Vejam, por exemplo, o escudo do Lille, clube francês da cidade homônima:


Ele é todo composto por cores fortes, mas é nítido que acabam por formar o fundo, ainda que a figura seja de uma cor normalmente neutra, o branco. Do cão mascote do clube, somente temos a silhueta monocromática. Isso demonstra como a forma, por vezes, prepondera na percepção em relação a outros fatores.

Princípio da tendência à estruturação – pelo que falamos até agora, podemos ter a impressão de que as gestalten somente estimulam o cérebro estaticamente, ou seja, que todas as correspondências isomórficas já estão prontas lá, só esperando ser acionadas. A questão é que os nossos neurônios não são passivos desse jeito, e estão sempre em busca da melhor configuração possível, de forma a compreender uma estrutura como algo inteligível. E dá-lhe correr para aproximar, unir, assemelhar e agrupar os elementos perceptivos de uma forma. Observemos uma das camisas mais bonitas do futebol brasileiro, a do Cruzeiro (peguei a imagem no Mercado Livre):


A dinâmica aqui é muito simples: a camisa azul escuro representa o céu noturno onde a constelação do Cruzeiro do Sul, à guisa de distintivo, tem destaque absoluto. Só que nós conseguimos fazer essa interpretação justamente por termos a propensão a estruturar nossas observações, como fazemos com as estrelas neste caso. Não são simplesmente astros soltos, mas agrupamentos por proximidade e semelhança que, inclusive, remetem a uma estruturação que não está explícita – a forma de cruz que empresta o nome à constelação.

Princípio da constância perceptiva – se estamos falando em elementos que são percebidos pela mente sempre da melhor maneira possível, é possível deduzir que os gabaritos isomórficos saberão se defender de certas variações que, mesmo mudando a configuração apresentada, representam o mesmo objeto. Só com um exemplo para ficar mais compreensível. Vejam a foto das camisas do São Caetano abaixo:


Elas são irmãs gêmeas, compradas no mesmo dia e local, a porta do estádio Anacleto Campanella. Tanto eu como você podemos facilmente perceber isso, mas, se olharmos apenas e tão somente a foto, oticamente poderíamos achar que uma tem a metade do tamanho da outra. Entretanto, este princípio nos diz que saberemos compensar esse tipo de diferença, e que o objeto é o mesmo. Isso vale para quando vemos alguém se afastando, ou algum objeto de ponta-cabeça – apesar da configuração diferente, nossa percepção sobre o elemento é constante.

Princípio da transponibilidade – é a primazia da forma com relação aos demais elementos, e o fato de que esta independe do material com o qual é feita. Essa relação de dominância permite que estabeleçamos o que é prioritário em uma gestalt – uma casa é uma casa, seja de madeira, de pedra, de alvenaria, grande, pequena, longínqua, próxima e etc. Vamos de exemplo:


Estes dois distintivos tem uma diferença fundamental na composição de cores. Na camisa de São Jorge, vemos o escudo original do Corinthians, com sua configuração habitual. Na homenagem a Ayrton Senna, temos o mesmo escudo totalmente dourado. A materialidade da cor não importa. É a forma do escudo que nos identifica se tratar do símbolo maior do clube em tela.

Princípio da unidade – embora seja importante compreender que uma gestalt é constituída por gestalten menores, também precisamos entender que há uma quantidade mínima de elementos necessária para que possamos compreender um objeto como tal, distinto dos demais. Isso é o que denominamos de unidade. Vamos pegar como exemplo uma camisa do simpático Nacional, repleta de anúncios:


Compreendo a necessidade de produzir meios para a sobrevivência, mas esse monte de anúncios enfeia a camisa à beça. Notem, no entanto, que cada um dos elementos é distinguível dos demais por conta da lei da unidade, que reconhece cada um deles isoladamente nesse oceano publicitário, incluindo o quase perdido distintivo tricolor. E a própria camisa pode ser reconhecida como uma unidade em si, apesar de tantos elementos diferentes que a compõe.

Lei da unificação – tem a ver com a harmonia na distribuição dos elementos de uma percepção, em contraposição a arranjos pouco confortáveis. É derivada dos princípios da pregnância e da unidade, e pode ser bem exemplificada por conjuntos simétricos e com balanceamento bem construídos das formas e cores. Caso do distintivo do Botafogo:


Eu não sou botafoguense, mas esse escudo tem tudo de bom. É simples, com linhas bem definidas, poucos penduricalhos, perfeita simetria lateral, cores firmemente contrastantes com fácil segregação de figura-fundo e proporções corretamente arranjadas, de modo a lembrar, de fato, um escudo de guerra.

Lei da proximidade – elementos próximos em uma estrutura tendem a se agrupar em nossa percepção, ao invés de serem vistos como objetos dispersos. Vamos analisar o novo escudo da Juventus de Turim:


É fácil de notar como há dois traços recurvos pretos na forma de jota formando a figura. No fundo, há um terceiro jota meio que escondido entre ambos, na cor branca. Os três se unem para formar a percepção. Além disso, o conjunto parece formar um escudo, usando a lei do fechamento, que veremos já, já.

Lei da semelhança – objetos com características semelhantes entre si tendem a se agrupar no plano perceptivo. É uma tendência nossa fazer categorizações, de modo a enxergar os membros distintos como sendo mais próximos do que podem efetivamente ser. Apelarei para o distintivo do equatoriano Emelec.

Temos aqui dois pontos de semelhança a serem considerados. As vinte e quatro estrelas na barra superior de fato são semelhantes, o que reforça a percepção de agrupamentos, mas as letras bicolores são contrastantes com relação à cor, dando uma sensação de segregação, que só é vencida pela forma. Mas há algo a agrupá-las: a linha de corte imaginária agrupa as metades superiores e inferiores pela cor do conjunto, e não pelas letras individuais. Portanto, a semelhança pode se dar por uma gama relativamente grande de fatores.

Lei do fechamento – se tem alguma coisa que causa um incômodo em nossa mente é a sensação de incompletude. Procuramos desesperadamente dar sentido a formas que insinuam alguma coisa, ainda que falte algo para completá-la, em um processo um tanto semelhante ao que acontece com a pareidolia. Essa é a tendência ao fechamento de formas abertas tão utilizada na publicidade e, pasmem, em escudos de times de futebol! Vejam o do Ajax da Holanda:


A rigor, temos alguns meros rabiscos pretos dentro de um círculo vermelho. Embora sejam traçados que simplesmente insinuam uma forma, nossa mente vai procurar completá-los de modo a formar o barrete, o rosto barbudo e os ombros do guerreiro mitológico grego que doou seu nome ao clube de Amsterdam.

Lei da continuidade – outra tendência de nossa mente é tentar prever os movimentos que uma determinada forma pode ter. Interrupções bruscas prejudicam a fluidez e parecem tornar mais difíceis as compreensões de uma forma. A sucessão de elementos, ainda que sofra descontinuidades, traz consigo uma propensão em torná-los contínuos, e aí eu posso enquadrar meu bug com os predinhos do distrito. Além disso, alongamentos de partes fazem sugerir uma rota dos movimentos, como no símbolo do Red Bull Leipzig:


Percebam os riscos laterais nos tourinhos. Eles dão a impressão do movimento circular de um salto para o ataque, além de sugerir uma certa velocidade no encontrão futuro. Percebam que os movimentos propendentes à circularidade são mais pregnantes do que angulaturas muito agudas. De fato, quando viramos uma esquina, mesmo que a trajetória tenha a forma de um cotovelo, não mudamos de direção simplesmente virando o corpo, como se fôssemos robozinhos. Há uma certa gradualidade na linha imaginária que produzimos que demonstram uma naturalidade nos movimentos arredondados.

Lei do caráter de participação – Uma parte dentro de um todo tem características definidas pelo seu contexto. Nem sempre uma parte terá a mesma participação em diferentes gestalten, como o raio que significa mau tempo em sentido estrito, mas pode representar ódio em um sentido figurado. Além disso, um eventual mau posicionamento de um único elemento não desvirtua o sentido geral do todo. Olhem com atenção esse antigo escudo do Bragantino:


Apesar da troca das letras do nome, não há nenhum tipo de dúvida com relação ao que ele representa. Conseguimos interpretar perfeitamente o que está escrito, sem a necessidade rigorosa de ter tudo no seu lugar. Além disso, nossa pressa faz com que tendamos a produzir uma “leitura dinâmica” artificial, o que é uma armadilha em provas de lógica ou de português.

Ufa! Que texto gigantesco, mas acho que valeu a pena. A vila do seo Luís Carlos, engenheiro, funcionário da companhia ferroviária, traz não só uma revisita ao passado, mas a possibilidade de compreender um pouco melhor o modo como observamos o mundo ao nosso redor. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

A Gestalt tem sido mais bem considerada pela Publicidade do que pela Psicologia. Não sei se isso não é um equívoco, mas em Pedagogia é vital. Na minha faculdade, eu estudei através desse livro:

KÖHLER, Wolfgang. Psicologia da Gestalt. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.

* plural de gestalt

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