Olá!
Domingo passado, mais uma vez dei um pulinho no Canindé para
acompanhar o calvário da Portuguesa, a mesmíssima Lusa que, apesar dos poucos
títulos, tem a simpatia de ser uma espécie de Robin Hood dos paulistanos,
sempre empedernindo as coisas para os grandes para depois tropeçar nos
pequenos. Isso era nos bons tempos. Mas hoje, ora pois, convive com a segunda
divisão do Campeonato Paulista e está fora das disputas nacionais, pela
primeira vez em sua história. Quotidianamente, a sua vida é um abismo eterno,
cujo fim parece sempre mais fundo.
Neste exato momento, a Portuguesa joga a Copa Paulista,
espécie de campeonato tampão que serve para ocupar os times paulistas no
segundo semestre, enquanto aguardam o desenrolar dos torneios nacionais. Serve
mais para negócios do que propriamente para disputa: o prêmio do campeão é uma
vaga na série D do Campeonato Brasileiro e a honra dúbia de um título
considerado de segunda linha. Exceção feita ao Juventus, que lota seu pequeno
estádio aos domingos pela manhã, é um festival exibido a poucas moscas, esta
que vos fala inclusa. O que me leva? Já expliquei no texto acima citado, além
do fato de que, com o preço do ingresso de um jogo do Corinthians, dá para
assistir quase toda a tal Copa Paulista.
Dá dó de ver a fossa que a Portuguesa se enfiou. Ela está
disputando esse desmerecido campeonato pela primeira vez em sua história, atrás
da vaga perdida nas divisões nacionais. Sem demérito de ninguém, as semifinais
da quarta divisão do Brasileiro foram disputadas por Operário/PR, Atlético/AC,
Globo/RN e Juazeirense/BA, clubes que, somados, não tem um décimo da tradição
rubro-verde. O clube está todo largado, embora o estádio em si mantenha sua
dignidade à moda antiga. Lugar bom de ver jogo, daqueles escadões em que não há
restrições nem para quem quer assistir compenetradamente a partida (como eu),
nem para quem prefere ficar de pé, pulando e cantando. Um memorial, em suma.
Resolvi redigir este texto com dois propósitos: o de
demonstrar a afinação entre Futebol e Filosofia, especialmente no plano
estético; e tentar entender se esse destino é justo.
O que há para discutir de estético na atual situação da
Portuguesa? Ora, ora, é óbvio... Nietzsche só usou o exemplo da tragédia grega
porque não chegou a conhecer o clube do Canindé, por um lapso de meros vinte
anos. Teria diante de si uma espécie de materialização da sua visão sem a
necessidade de recorrer aos Apolos e Dionísios da vida, que deixaram de ser
moda a mais de 2000 anos. E é esse o grande defeito que o bigodão mais famoso
da Filosofia encontra no projeto socrático que seguiu ao modelo mitológico. Com
o primado da razão, perdeu-se o vínculo com a própria vida. Vamos entender
melhor essa coisa toda.
Diferentemente do que a cultura judaico-cristã preconiza com
seu monoteísmo, os gregos antigos subordinavam todos os aspectos de sua
realidade a diferentes divindades, cada uma delas com seus poderes e
idiossincrasias próprios. Havia deuses para tudo: para a morte, para o amor,
para os mares, para o comércio, para a justiça. Dois deles, Apolo e Dionísio,
regiam princípios que influenciavam não somente a produção artística, mas, por
reflexo, o modus vivendi de seus
humílimos súditos. Apolo era o deus da harmonia, da forma, das medidas
perfeitas, daquele que se sujeita a ficar horas e horas burilando um
detalhezinho de uma escultura ou de um traço. Ele se afasta de seu objeto de
criação para poder apreciá-lo de modo desapaixonado, sendo crítico de seu
próprio trabalho. Tem liberdade para criar, mas sempre dentro de um escopo que
lhe estabelece um determinado limite: a dimensão do quadro, o volume da pedra,
a área do palco. É, por isso, melhor representado pela pintura, pela escultura
e pelas artes cênicas. Já Dionísio é, em boa parte, o oposto de tudo isso. Ele
não aceita os limites impostos por uma circunscrição, sendo, portanto, o deus
da música, a arte que reconhece o improviso e que não tem um espaço para lhe
fechar, já que transcende a própria orquestra – seu som se espalha pelo
ambiente todo. Seu afastamento não se dá com relação ao objeto, mas de si
próprio. Dionísio se projeta para além de si mesmo, é o deus da embriaguez, do
derramamento e do delírio. Ao contrário de Apolo, ele não idealiza o mundo como
em um sonho; prefere se atirar nele,
viver a vida com tudo o que ela tem de bom e de ruim, já que o belo e a forma
perfeita não lhe dizem respeito. Não há projeto para Dionísio. Não lhe faz
sentido tê-lo. A vida é vida agora, e
só agora.
A síntese possível entre ambos está na tragédia (leiam meus
apontamentos já realizados sobre o tema neste texto), que reunia a arte
cênica do teatro com a arte musical do coro. Para Nietzsche, a antiga filosofia
de vida dos gregos plasmava os princípios apolíneos e dionisíacos da tragédia –
eles idealizavam e realizavam, sonhavam e viviam, equilibravam a visão que
tinham de si mesmos e do mundo que os rodeavam. Ao contrário do que nos
habituamos – que a arte esteja circunscrita a locais próprios – a tragédia,
para os gregos, é vivida na própria vida, ou seja, a arte está nos movimentos
do dia-a-dia. Não temos em nossa cultura uma ideia de vida como obra de arte, muito
embora eu me lembre muito bem das teatralizações dos diálogos de minha já morta
mãe com a ainda viva dona Madalena, bem mais velha. Ao saírmos das reuniões
mensais do Conseg* Liberdade, para reclamarmos da pouca segurança em nossas
maltratadas ruas, a cena se repetia idêntica. Caminhávamos todos juntos, até
mesmo para minimizar o risco da precitada segurança exígua, até que o tom de
voz de ambas ia aumentando. De repente, lá estavam as duas para trás,
gesticulando paradas contra o descaso do poder público, irritadíssimas.
Esqueciam dos riscos ao redor e nem se tocavam de que já estavam afastadas do
grupo principal, uns trinta passos atrás (cabe aqui um rápido aparte. As
reuniões do Conseg ocorriam na última quarta-feira do mês, terminando às 21:30,
aproximadamente. Quarta-feira é dia de futebol, o que aumentava minha pressa de
chegar em casa, derrubando a tese que eu mesmo propalava de que era necessário
ser rápido para evitar o ladrão). Podiam continuar andando e falando as
mesmíssimas coisas, mas é o espírito dionisíaco florescente que fazia-as ficar
cegadas. Não haveria um quinto da dimensão expressiva pretendida se não
parassem para praguejar contra a falta de segurança que elas mesmas
contribuíam, com aquela representação, a alimentar. Mas isso era uma
eventualidade. Para o grego, que precisava ser artístico até na retórica que
aplicava na ágora, o voto que damos aos políticos é uma espécie de mortalha do
élan criativo.
Isso porque, com a ascensão de Sócrates e sua ponderação
racional, o princípio dionisíaco foi sufocado. A vida do grego deixou de ser um
derramamento no turbilhão dos acontecimentos para que se perguntasse passo a
passo o que motivava suas ações, tudo muito bem pensado e baseado em um cuidado
excessivo com o futuro, tornando algo como uma mera espera pela morte, sem dor,
porém. Tudo isso foi reforçado mais tarde com o advento do Cristianismo e seu
espírito apostólico, que levou à Grécia e ao mundo todo a doutrina do prêmio post mortem da vida eterna. Os percalços
da existência terrena passaram a ser fardos a serem suportados, e não
contingências que reescrevem histórias, e, com isso, Dionísio morreu
definitivamente. O homem meramente apolíneo se caracteriza pela imposição de
limites, que não consegue mais afastar-se de si mesmo para ir além de si mesmo, e fica plantado em sua
cadeira de balanço e tricotando, enquanto conta os minutos para a chegada do
fim.
De forma que, com relação à Portuguesa, a ideia de tragédia
grega revive. Aqueles torcedores que formam o coro ao redor do campo não têm
propriamente consciência disso, mas o eixo da tragédia da Lusa não está no fato
de que, para frente, haja dias melhores, mas que haja dias. Então nada resta a
não ser viver o hoje, a torcer hoje. O torcedor da Portuguesa xinga mais do que
o normal por causa disso, porque sofre mais, porque tem o destino mais incerto,
porque o juiz rouba mais, porque os dirigentes são ainda mais incompetentes,
porque não há dinheiro e daqui a pouco não há mais estádio... É preciso vomitar
o que te faz mal exatamente no momento da ânsia, porque ele é o único que
seguramente ainda há.
Os times menores já se conformam com seu papel e, nos poucos
torcedores sinceros, já repousa cristalizada a consciência de que seu lugar é
aquele. Para os grandes, há a certeza de que, passe um ou dez anos, os títulos
virão, e virão em abundância. O luso não tem certeza nenhuma, e, por isso
mesmo, se entrega ao fluxo da vida, àquilo que ocorrer dentro do campo, o
teatro apolíneo daquilo que ele se constitui em coro dionisíaco. Vivem a vida
na tragédia do próprio time. Nietzsche se orgulharia dos verde-encarnados.
Agora, se tudo isso é justo ou injusto... Aí é mais difícil
de estabelecer. Ou melhor, não é, não. Aproveitando o menosprezo nietzschiano pela
racionalidade pura, digo que a torcida não merece o que está acontecendo
naquele largado clube da várzea do rio Tietê. Nem vou entrar na esparrela
barata e sentimental de dizer que o clube é dos torcedores. Não é. O clube é dos
sócios, que podem sobreviver à existência do futebol, como aconteceu com o
Atlético Ypiranga e o Guapira, que fecharam seus departamentos de futebol
profissional e vão seguindo suas vidas. Mas o time sim, este existe não somente
em função dos sócios, que, de resto, elegem os conselheiros que provocaram a
derrocada, mas principalmente de seus torcedores. E, ao contrário do Juventus,
que é o segundo time de muita gente, quem vai ao Canindé tem a Lusa como time
de coração, ainda que sejam poucos. Há exceções, como eu, mas a imensa maioria
dos que lá estão tem bandeirinhas penduradas na janela, tem chaveiros no bolso,
tem o envelhecido retrato do dúbio título de 73 na parede, além de caçar
infindamente roupinhas para seus bebês (tão fáceis de achar para outros times),
todos eles com a cruz verde emoldurada pelo escudo vermelho, os mais jovens
ladeados pelo leãozinho, os mais velhos pela saudosa Severa, a dançarina de
vira que a representava (eu resgataria este símbolo imediatamente). São pessoas
que amam o time a valer, sem ter um cartel extenso de títulos para esfregar na
cara de ninguém. É a síntese do amor puro e desprovido de racionalidade. Já
aqui encerro o debate, e tudo o mais que eu falar é irrelevante.
Mas o fato é que essa tragédia toda não surgiu do nada. Não
vou repassar a história quase centenária do clube, bastando relembrar o
fatídico Campeonato Brasileiro de 2013. Portuguesa, Flamengo e Fluminense
chegam à última rodada do Brasileirão precisando cada um de seus determinados
resultados para escapar do rebaixamento à série B. A Lusa depende só de si
mesma, e obtém um suficiente empate com o Grêmio, e se safa, restando ao
tricolor carioca o indigesto percalço.
Mas um fato novo foi detectado. Perto dos 30 minutos do
segundo tempo do embate retro, o jogador Héverton foi mandado a campo pelo
treinador rubro-verde. Este jogador, como foi dito depois, estava suspenso por
duas partidas e não poderia jogar. Discutiu-se muito o aspecto da validade da
comunicação feita pela CBF por e-mail, na sexta-feira anterior ao jogo, à
noite, para o advogado luso; o aspecto esportivo dos resultados obtidos em
campo e da pouca relevância que representou a entrada do jogador para os
placares; os precedentes em que outras equipes tiveram as penalidades
convertidas em multa; o histórico do beneficiado Fluminense que, mais de uma
vez, teve seus rebaixamentos revertidos; mas a irregularidade estava cometida e
o tribunal desportivo usou a letra dura da lei, abiscoitando quatro pontos da
Fabulosa, um obtido pelo empate na partida e três de castigo, o suficiente para
safar o Flu e arremessar a pobre Portuguesa ao inferno da segundona. Desde
então, sem o dinheiro da televisão e bons contratos de patrocínio, a queda foi
vertical. Em quatro anos, os lusitanos saíram da elite do futebol nacional para
a periferia dos desesperados, que vendem o almoço para barganhar a janta.
Já disse que a torcida não merece o desgosto que vive. O
clube em si também não, como instituição. A Portuguesa revelou uma infinidade
de craques para o futebol tupiniquim (vejam este texto) e até mesmo já
foi considerada um dos clássicos do estado. Sim, meninos e meninas fãs do
esporte bretão. Portuguesa versus Corinthians-São Paulo-Santos-Palmeiras já
foram jogos de cachorro grande, que valiam esse rótulo. Sem contar o clássico
lusitano, na peleja contra o carioca Vasco da Gama. Sempre disputou as
principais competições do Brasil e tinha jogadores indicados ao escrete
canarinho, como provam Djalma Santos, Jair da Costa e Zé Maria, campeões
mundiais jogando pela Portuguesa. É, por isso, relevante para o futebol.
Tentar entender a própria Portuguesa como culpada por seu
amargo destino é esquecer que, como instituição, ela é neutra. É bem verdade
que certas entidades são más em si mesmas, bastando pensar em associações racistas
como a Ku Klux Klan ou órgãos terroristas, mas há gente que confunde uma
instituição com as pessoas que as dirigem. Um bom exemplo é a recente onda de
demonização do Estado, mas também ele é uma instituição neutra, sendo bom ou
ruim dependendo do que se fizer dele. É claro que na ótica brasileira, com
governos inchados e corruptos, as opiniões ficam obnubiladas, e essa galera
aponta Estados de pouca interferência como exemplos de eficiência
administrativa. Se vivêssemos na Escandinávia, talvez nossa visão sobre tamanho
do Estado fosse outra. A Portuguesa, nesse sentido, é uma instituição quase
neutra. Alíás, é uma entidade que tem um propósito bom. Seu nome completo,
Associação Portuguesa de Desportos, denuncia que um grupo de pessoas de uma
determinada colônia resolveu se reunir para praticar esportes. Só isso. O clube
em si é só mais uma vítima.
Portanto, e mais uma vez, e obviamente, o problema está nas
pessoas, que
- usam os regulamentos da
forma que melhor convém a quem mais interessa;
- comandam outros clubes que
poderiam se alinhar à causa da Lusinha. Pensem em Brasileirão sem os
clubes paulistas;
- gerem iniquamente recursos
que não lhe pertencem;
- estão cagando para quem
não tem culpa, justamente os precitados clube e torcida.
Isso porque os dirigentes, sabendo (mas não aprendendo) o
quanto a Portuguesa é feita sob medida para ser prejudicada, nunca a prepararam
adequadamente para viver sua própria realidade com autonomia. Permitem que se
vilipendie o clube, quando não o fazem eles próprios, e não se preocupam com
uma dignidade mínima para o seu nome, com um lugar mínimo, que não deveria ser
o atual, definitivamente. Mas que é onde se chegou. Por isso, mais do que uma
estrutura injusta, que sempre vai privilegiar os clubes maiores, a culpa maior
está no próprio corpo diretivo, que, no mínimo dos mínimos, sempre trabalhou
com um horizonte irreal.
Vai bem a Lusinha na Copa Paulista. Ontem o jogo foi meio
desinteressado, já que a mesma está classificada antecipadamente para a próxima
fase, quando o torniquete será naturalmente apertado, e o adversário Taubaté já
está matematicamente eliminado. Mas o time vai pegando coesão e entrosamento,
mesmo com a repetição de certos erros, como a troca incessante de técnicos e
jogadores, e a falta de um meia de ligação. O craque do time, Marcelinho
Paraíba, tem 42 anos e nunca jogou nessa função. Seu futebol está visivelmente
melhor do que no sonolento empate com o Nacional, no comecinho da competição.
Principia lentamente a aparecer um esmaecidíssimo brilho naquilo que hoje vemos
como sombras, uma vontade de potência que Nietzsche enxergou em todos os
organismos vivos, mesmo que seja para dar o último respiro.
Recomendação de leitura:
Mais do que recomendável, o livro abaixo é uma das essências
para compreender o pensamento nietzschiano, onde é explorada a composição
dualística da cultura grega.
NIETZSCHE, Friedrich. O
Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
* Os CONSEG’s – Conselhos de Segurança são agrupamentos
comunitários em que são discutidas questões relacionadas à (oh!) segurança dos
bairros. O ápice é a reunião mensal, onde são levadas as reivindicações aos
diferentes órgãos afetados. Além das óbvias polícias, costumam estar presentes
representantes da prefeitura, dos órgãos de trânsito, da guarda municipal,
eventualmente dos bombeiros e outras entidades municipais e estaduais.
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