O centro de São Paulo é coalhado de igrejas. Como eu já
disse neste
texto, são praticamente só elas que testemunham tempos de outrora nesta grandiloquente
cidade, seja por causa da velosiana força da grana que ergue e destrói coisas
belas, seja porque se tratem de distintivos fortes de uma instituição que não
aprecia grandes mudanças, redundando em uma manutenção à História. De toda
forma, elas estão lá e são dignas de serem visitadas, independentemente da
religiosidade de quem o fizer, por um motivo muito simples: são belíssimas.
Têm para todos os gostos. A reprodução da igreja do Pátio do
Colégio, em seu estilo maneirista, extremamente simples e sólido, dá mostras do
tamanho da dedicação de seus artífices com recursos parcos. Para quem quiser
ver uma igreja antiga original, a mais velha de todas as remanescentes, a
recomendação é para a pequena capela de Santo Antônio, encaixotada no meio dos
prédios da praça do Patriarca. Já para quem é chegado em igreja como obra de
arte, há o barroco tardio e o rococó de igrejas como a São Francisco, o
mosteiro da Luz e a Nossa Senhora do Carmo, todas muito ricas nos detalhes de
seus altares e retábulos. A catedral da Sé é grandiosa e diferentona, com
referências tupiniquins misturadas ao neogótico que predomina em sua
arquitetura. Impressiona muito pelo seu tamanho e pela confusão que faz nos nossos
sentidos, mas ainda não é o clímax da expressão artística sacra desta capital
da garoa, na minha humílima. Este se dá no Mosteiro de São Bento, com seus
impressionantes vitrais e mosaicos, na ambientação que fica no meio caminho
entre o sóbrio e o soturno. Um templo não só para a religião, mas para a arte –
é ali que se pode ouvir o melhor canto gregoriano da cidade. Não há um único
centímetro quadrado onde não se possa apreciar detalhe a detalhe a mão humana a
serviço de uma divindade.
Por outro lado, há uma proliferação muito intensa de igrejas
evangélicas por toda parte. Talvez não tanto por estas bandas centrais, de
muito prédio e pouca gente, mas há bairros onde a evidência de uma nova relação
das pessoas com a religião é muito expressiva. Quando eu morava nas cercanias
do Jardim Elba, por exemplo, existia uma rua que parecia um autêntico túnel
pentecostal, com todas as denominações mais midiáticas e outras menores,
algumas muito curiosas. Aqui, não temos grandes preocupações estéticas com o
prédio utilizado, embora aquelas mais tradicionais guardem certa semelhança às
igrejas católicas, como é o caso das magníficas igrejas presbiteriana da Nestor
Pestana e metodista da Liberdade. Quando eu ainda era criança, era muito fácil
identificar um “crente”: mulheres eternamente de coque, saia comprida e sapato
fechado, seja qual fosse a idade; homens de paletó e bíblia sob o sovaco nos dias
de culto. Dizia-se que era possível diferenciar uma dessas pelo cheiro. Se
fosse de suor, era de um evangélico; se fosse de pó, era de um católico. De
fato, ao cruzar a Sé, todo santo dia estão lá vários pastores, berrando insanos
com uma bíblia à guisa de pandeiro, cercados de fieis com aleluias e mendigos
meio alheios, mais curiosos do que tocados. Hoje em dia o estereótipo está um
tanto queimado, mas ainda é gente que faz sua vida se pautar por aquilo que
está descrito naquele livro que espancam ou embebem de transpiração. Se sua
interpretação é correta, não vou julgar (acho impossível), mas o fato é que
toda a sua conduta está condicionada aos ditames de uma suposta entidade que
lhes guia, lhes protege, lhes abençoa, com muitos limites e restrições, mesmo
que seja indetectável pelo mais fino dos instrumentos. São capazes, alguns
deles, de sacrificar a vida em seu nome. O que representa um deus em um sistema
religioso? Como e por que eles dão uma pauta moral e uma regra de conduta a
seus seguidores? Como se pode interagir e definir seu nível de interferência na
vida dos seres humanos? O que é, afinal, um deus? Esse é o objeto de estudo da
Teologia.
A primeira coisa é delinear sua especificidade. É muito
comum que as pessoas confundam Teologia com Filosofia
da Religião, mas são coisas bem diferentes. Esta última se preocupa em
definir o que é o fenômeno religioso, que pode se focar apenas nos aspectos
psicológicos e antropológicos, por exemplo: por que o homem sente a necessidade
de acreditar em uma transcendência? Por isso mesmo, a visão da Filosofia da
Religião é mais estrutural e neutra, indiferente ao direcionamento a uma
religião específica. Já a Teologia já traz em si a assunção de uma divindade,
para só então estudá-la. Por esse motivo, é muito difícil estabelecer uma
Teologia geral, sendo mais comum vinculá-la a uma das tantas religiões
existentes: Teologia Cristã, Islâmica, Hindu e così via.
Theos, em grego,
significa Deus, parece meio óbvio. A Teologia pretende estudar a divindade não
como aquele alvo de fé tão comum a romeiros e peregrinos, mas a partir de uma
visão crítica, partindo do âmbito racional. É sabido que os conceitos de deus
não surgiram a partir de um olhar científico, mas da intuição que as pessoas
tinham acerca dos fenômenos que não compreendiam a origem. Como a religião é
uma prática antiquíssima, precede o registro escrito em milhares de anos, e os
relatos que lhe dão guarida são orais e misturados entre si. Por isso, a tarefa
do teólogo é verdadeiramente hercúlea, principalmente quando levamos em
consideração que a seriedade de seu trabalho estará presa à sua capacidade de
não se deixar levar por sua fé.
A Teologia é anterior ao fenômeno cristão, como já se sabe a
partir de estudos de filósofos pré-socráticos, mas é com ele que o termo se
consolida e ganha força, sendo o substrato da maior parte da Filosofia
praticada a partir da Idade Média. Mas a coisa não aconteceu tão rapidamente
quanto poderia se supor – entre Jesus e a implantação da Teologia cristã há um
lapso de uns bons trezentos anos. Os grandes “patrões” do mundo na época do
surgimento do Cristianismo eram os romanos, que possuíam o Paganismo como
religião. Em um primeiro momento, poderíamos pensar que os princípios
religiosos não eram tão presentes em sua sociedade, mas o fato é outro. O
comportamento de divindades e humanos era muito similar, já que os deuses nada
mais eram que homens com “superpoderes”. O deus cristão, ao contrário, se
apartava de seus fiéis. Era uma espécie de pai, que, se por um lado oferecia
proteção a todos, por outro exigia obediência cega e fidelidade. Viver a
religião cristã, portanto, fazia com que seu deus estivesse acima de qualquer
soberano. Além disso, sendo todos filhos de um mesmo pai, os cristãos imputavam
em si um conceito de irmandade estranho aos romanos. Isso fazia com que a
relação entre ambas as culturas tivesse pontos de tensão. Nesses primeiros
trezentos anos de existência, o Cristianismo alternou momentos de tolerância
com intensas perseguições, principalmente quando os altos governantes
necessitavam de algum subterfúgio para atribuir desgraças ou desviar focos.
Nesses tempos, o máximo que os cristãos faziam era dar manutenção à sua fé, em
locais desprovidos de indicações e com uma certa codificação interna, que lhes
permitia comunicar entre si e dando origem a muito da simbologia ainda hoje
adotada nas igrejas.
Somente no começo do século IV, com a ascensão de
Constantino Magno, os cristãos tiveram paz e respaldo oficial para sistematizar
seus dogmas. Partindo da premissa de que sua divindade é o centro do universo,
a Filosofia passa a se interessar cada vez mais pelo fenômeno Deus, e inicia-se
sua fase teocêntrica, que perdura até o Renascimento, e a Teologia é um de seus
braços mais significativos. Pensando especificamente na Teologia cristã, temos
três correntes mais consagradas. Vamos dar uma olhadinha nelas.
A primeira é a Patrística,
que tem esse nome porque seus pensadores foram os primeiros a dar formatação
mais concisa à igreja florescente, sendo chamados, por isso, de “pais da
igreja”. Seu principal nome é Santo Agostinho, que empresta todo o fundo
platônico que o Cristianismo tem em seus primeiros tempos: uma Cidade de Deus
plasmada pelas ideias divinas é o ápice de onde a decaída Cidade dos Homens, o
lugar onde vivemos, deriva. A igreja é o caminho salvífico por onde o fiel
transita de uma para outra, ou seja, do defeito para a perfeição. Também
cuidaram muito do enfrentamento às heresias, que eram doutrinas dissonantes ao
entendimento que os próprios pais da igreja vinham procurando.
Os dogmas patrísticos predominaram até o século IX, quando
uma nova corrente começa a preponderar. Trata-se da Escolástica (aquela que é da escola, culta), cuja principal
característica era menos instrumental e mais metafísica do que a Patrística.
Neste momento, temos o corpo dogmático da Igreja Católica já consolidado, e a
mesma é detentora de muito poder. A Escolástica busca conciliar fé e razão,
tentando provar que ambas não são incompatíveis. Sua principal cabeça é São
Tomás de Aquino, que acrescenta a dialética do aristotelismo ao discurso
platônico dos patrísticos. Ele, por exemplo, busca provas da existência de Deus
não em uma mera subordinação da razão à fé (“crer para compreender, compreender
para crer”), mas nos próprios fundamentos da natureza, como as relações de
causa e efeito ou de necessidade e contingência.
Passado muito tempo, já no século XX da nossa era, uma
terceira corrente escapa da metafísica e dá uma guinada ética na Teologia,
sendo muito mal recebida por setores conservadores da Santa Sé. É a Teologia da Libertação, nascida com o
padre Gustavo Gutiérrez. Segundo essa corrente, Deus deve ser visto menos como
objeto de adoração circunscrito às igrejas e mais como pai que distribui graças
a todos os seus filhos, independentemente de origem ou classe social. Faz culto
muito melhor aquele que, imitando Deus, cuida do seu irmão do que aquele que passa
horas em oração e jejum. Para os teólogos da libertação, o mandato divino está
muito mais presente nos miseráveis e necessitados do que no culto em si, em
especial por conta da urgência de sua situação, afinal, se a prece alimenta a
alma, o pão alimenta o corpo, e é esse o que morre. Como essa corrente não se
baseia na análise direta de Deus, mas das pessoas que, em última instância, são
seu reflexo, faz do estudo social seu fundamento mais sólido, o que lhe apontou
para o marxismo, o que causa câimbras nas mentes mais tradicionalistas.
A premissa principal dos teólogos tem um aspecto
epistemológico: é possível conhecer deus, seja ele qual for? Nas principais
escolas, crê-se que sim, ao menos em parte. Religiões que somente se pautam na
tradição oral não costumam queimar tanto a mufla com minudências normativas. Já
nas religiões de livro, que são aquelas em que há um texto sagrado que é
considerado divinamente inspirado (Bíblia, Corão e outros), este acaba se
tornando a principal fonte de estudo do deus em epígrafe, ainda que certas
vertentes admitam outras origens de fundamentação. Uma delas é o próprio
Catolicismo, que entende existir um mandato que lhe foi legado e que seus
dogmas possuem o mesmo valor das disposições bíblicas. Os protestantes
discordam veementemente desta posição, adotando a doutrina da Sola Scriptura, que afirma ser a Bíblia
a única fonte de conhecimento sobre o deus cristão. Uma crítica a cada um: o
magistério católico permite idas e vindas dogmáticas que lhes tira solidez,
atribuindo aos sabores e humores do seu episcopado as interpretações teológicas
que dão guarida à sua doutrina; por outro lado, a sola scriptura é autofágica – qualquer interpretação da Bíblia está
fora da Bíblia. Pode parecer que este argumento é falacioso, mas imagine duas
interpretações postas lado a lado, ambas extraídas diretamente do texto
bíblico. Qual é melhor? Se buscarmos elementos externos, como o contexto de
época, escritores contemporâneos aos fatos, registros arqueológicos, estaremos fora da Bíblia, e isso nos deixa órfãos
e circunscritos a um livro muitas e muitas vezes contraditório. Talvez por isso
haja um número tão grande de denominações ditas protestantes.
Outras filiações religiosas não têm balizas tão claras e,
por isso mesmo, a preocupação teológica com o conhecimento de deus não é tão
intensa, recorrendo-se mais à intuição do que propriamente a uma construção
filosófica complexa, o que não quer dizer, de modo algum, que sejam compostas
por deuses e teologias simplistas. O precitado Paganismo possui livros que lhe
abordam, mas a Teogonia, a Ilíada e a Odisséia são perspectivas artísticas, e
não obras dogmáticas, a la manual de
instruções, o que, aliás, não são garantias de conforto interpretativo, não.
Querem um exemplo? Falarei da chamada cláusula
Filioque.
A questão é a seguinte. Nos meios cristãos, Deus é uno e
trino, ou seja, é um e três ao mesmo tempo. Essa confusa contradição lógica é
colocada na conta dos mistérios, uma falha epistemológica que não nos permite
conhecer certos aspectos mistagógicos. Afinal, se somos humanos, não temos
capacidade para apreender tudo o que Deus é. Whatever... A Santíssima Trindade
seria composta de Pai, Filho e Espírito Santo, e a grande discussão é se existe
alguma ordem de precedência entre eles. Sendo o Pai a entidade criadora e o
Espírito Santo o impulso executivo da ação do Uno, há que se concordar
facilmente que o primeiro é anterior, e, portanto, que o Espírito Santo procede
do Pai. A discussão é com relação ao Filho (o tal de Filioque): também ele procede do Pai, parece óbvio, mas e o
Espírito Santo? Procede só do Pai ou de ambos? O Credo (conjunto de declarações
que explicita a fé cristã) não deixava absolutamente clara a regra de
precedência entre as pessoas da Trindade, por isso havia discrepância na
cláusula Filioque, entre aqueles que diziam dever ou não constar como
precedência.
Não parece que vá fazer chover, ou mudar a cotação do dólar,
ou mesmo influenciar a zona de classificação da Libertadores, mas o fato é que
a longa e contraproducente discussão sobre a cláusula Filioque foi uma das
pimentas no caldo em ebulição que levou à separação entre as igrejas do
ocidente e oriente, o primeiro grande cisma da cristandade, que perdura até
hoje. Gerou heresias e morreu gente por causa disso. Quanto a esse problema, deixemos
para outro momento, mas quis expor esta divergência apenas para demonstrar o
quanto a discussão teológica pode ser exigente e detalhista. Em tempo: aqueles
para quem o Espírito Santo procede apenas do Pai são chamados de monopatristas; aos que creem na
procedência também do Filho, dá-se o nome de filioquistas.
É isso. Busquei só dar uma palhinha sobre a complexidade do
tema, que é muito variado. Ateus e agnósticos colocam o debate teológico no
mesmo âmbito do estudo da Mitologia, que será o próximo item desta série, mas o
que importa aqui não é a fé ou a crença, mas o fato de que um deus, existindo
ou não, é um objeto de pensamento racional, e, portanto, da Filosofia. Bons
ventos a todos!
Recomendações de leitura e canal:
Já havia mencionado a Patrística e a Escolástica em outros textos
deste blog, mas, com relação à Teologia da Libertação, é a primeira vez.
Recomendação básica para quando algum tema é muito polêmico: vá à fonte
primária e não deixe se levar unicamente pelos críticos. Saiba primeiro do que
se está falando para se alinhar ou discordar depois. Por este motivo, recomendo
o livro fundamental desta escola, que, como eu já disse, dá uma guinada radical
no pensamento dos católicos a partir do concílio Vaticano II:
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia
da Libertação. Perspectivas. São Paulo: Loyola, 2000.
Gostaria também de recomendar um canal, que, de certa forma,
pode parecer estranho que eu o faça. Trata-se do canal Dois Dedos de Teologia,
do Yago Martins. Filosoficamente, eu não concordo com muita coisa do que está
lá, mas o rapaz trata do assunto com os três pilares que eu considero
essenciais para considerar uma fonte útil de informação: conhecimento de causa,
inteligibilidade e RESPEITO. Segue lá:
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