Era uma vez um tempo em que os homens não se preocupavam
muito com o ambiente que os rodeava. Havia uma profusão tão grande de meios
naturais que não parecia haver riscos em se derrubar uma boa parte das
florestas, extinguir uma boa parte das espécies ou transformar uma boa parte
deste ambiente em meio urbano, mais apropriado às comodidades típicas do lento
progresso tecnológico. É bem verdade que, aqui e ali, fosse notado um aumento
das tosses, a troca da poeira pela fuligem, um acinzentamento do horizonte, o
sumiço de bichos tão comuns em outras eras, mas a vinculação entre os fenômenos
era toldada pelo conforto e pela acumulação. Acontece que os tempos passaram, e
a falta de cuidado empilhada por milênios de relações conturbadas vai cobrando
seu preço, representada por temperaturas elevadas constantes e uma umidade tão
baixa que enchem nossos narizes de escaras. Será que não perdemos nossa noção
de participação do meio natural? Será que nosso distanciamento com o que éramos
originalmente não nos leva a uma situação pior daquela que tínhamos
anteriormente? Será que temos riscos reais de pôr tudo a perder? Será que ainda
há algo a fazer? Essas são as perguntas que fazem brotar um campo recente para
a coruja de Minerva plainar, a Filosofia Ambiental.
Pelo fato de ter se destacado o mote do ambiente das demais
áreas de investigação filosófica, dá a impressão que a Filosofia nunca se
preocupou com questões ambientais. Não é verdade, até mesmo porque o
primeiríssimo tema abordado pelos filósofos ocidentais foi justamente a questão
do cosmos, qual a origem e o fundamento último das coisas, chegando à arché, já
tão explorado neste espaço. E é claro que não dá para falar do universo sem
falar da natureza que nos rodeia. Basta que se veja quantos tratados
denominados De Natura (Sobre a
Natureza) possuímos na Filosofia pré-socrática. Anaximandro, Anaxímenes,
Heráclito, Parmênides, Melisso, Empédocles, Anaxágoras e outros compuseram
textos assim denominados e que se preocupavam em tratar da questão. Ora,
direis, quando esses filósofos falam de “natureza”, não é sobre arvorezinhas e
bichinhos, mas sobre aquilo que é inerente às coisas, o que é a natureza das
coisas, seu ecochato. Eu sei disso, mas hás de concordar que o mundo em seu
estado natural é a melhor forma que temos de descrevê-lo e entendê-lo pelo que
ele é. Não vamos fazer explorações botânicas ou paleontológicas no meio da
Praça da Sé, mas em meio mais rústico, o mundo como seria se não houvesse a
interferência humana. Sendo assim, investigar a natureza das coisas exige um
tal nível de regresso às origens que somente a podemos encontrar no mundo
preservado, e isso nos faz ter um elo com essa Filosofia mais antiga. Ademais,
estes filósofos não faziam a distinção entre o homem e a natureza que passou a
ocorrer a partir dos sofistas e seu antropocentrismo, radicalizado a partir da trinca
clássica Sócrates-Platão-Aristóteles. O homem era tão parte do mundo quanto a
arvorezinha e o bichinho, ou seja, não era apartado do meio natural. E mais
ainda, uma parte da metafísica da arché
era baseada na ideia de elementos naturais como basilares na composição do
cosmos: Tales com sua água, Xenófanes com sua Terra, Anaxímenes com seu ar e
Heráclito com seu fogo, além da mistura de todos eles proposta por Empédocles.
Portanto, a Filosofia não nasce descolada do meio ambiente, apenas acontecia
que a relação entre homem e natureza possuía linhas de divisão mais borradas. A
questão se torna mais importante somente após a Revolução Industrial, quando a
interferência humana se torna muito mais significativa. E influente. E
perigosa.
É óbvio que o salto entre a filosofia da physis e as revoluções técnicas não foi
tão abrupto. Do intimismo do homem como parte da natureza dos gregos antigos,
passamos para a visão do homem como objeto de estudo, que possui um tempo
distinto do meio natural e uma possibilidade de conhecer que não se encontra em
qualquer outro ser. Platão dá a nós uma visão desconfiada com relação aos
nossos sentidos: tudo o que podemos apreender dos objetos são suas aparências –
o verdadeiro conhecimento está no intelecto. Dessa forma, a nossa interação com
o ambiente que nos cerca, incluindo o natural, é passível de erro. Esse é um
nascedouro, quase embrionário, de um afastamento cada vez mais crescente com a
ideia do homem natural.
A coisa não muda de figura no período teocêntrico da Idade Média.
Apesar de se ter em mente que Deus cria tudo o que existe, incluindo homem e
natureza, este primeiro é um ser especial, criado para ser o herdeiro das
benesses divinas. De acordo com a escrita bíblica, Deus dá ao homem a primazia
sobre todo o restante do universo, ao fazer dele uma imagem de si próprio.
Desta forma, há uma espécie de hierarquia relativa ao domínio sobre o cosmos.
No alto, o Deus criador de todas as coisas. Em seguida, o homem, sua imagem e
semelhança. Por fim, todo o restante da natureza. Apesar de reconhecer o homem
como proveniente do mesmo Deus, dá-se a ele um estatuto de dominador, que pode
decidir seu uso e seu destino (“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse:
Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre
os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move
sobre a terra. E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente,
que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê
semente, ser-vos-á para mantimento. E a todo o animal da terra, e a toda a ave
dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde
será para mantimento; e assim foi” – Gn 1:28-30). Aliás, se considerarmos que é
da natureza que o homem extrai sua perdição, ainda que simbolicamente,
perceberemos que a relação com o meio natural possui sua dose de conflitos.
Afinal, é pela influência da serpente e do fruto da árvore no centro do jardim
de Éden que se concretiza o pecado da desobediência e da vontade de
autossuficiência, considerados mortais na exegese judaico-cristã. Não parece
que estas predisposições influenciem diretamente nos problemas ambientais
contemporâneos, mas percebam como vai se formando um cerne que opõe ser humano
e sua ambiência.
Nós já sabemos como termina a Idade Média. Paulatinamente, a
Ciência que a tudo observa empiricamente vai apresentando mais resultados e
melhores explicações acerca da realidade do que faziam os tratados teológicos.
Cada vez mais desvinculados de aspectos mágicos, o homem mais uma vez se volta
para o mundo que lhe cerca. A pesquisa substitui o vaticínio na predição dos
fenômenos, e é constatada a maior eficácia de fármacos em relação a rezas e
mandingas, dentre outras miudezas. Evidentemente, esse olhar que novamente se
vira para a natureza vem com componentes diferentes daquele dos gregos da velha
guarda. O que temos agora é que pensamos não mais como conviver com o meio natural, mas como usufruir dele e essa diferença é fundamental. O advento do
Capitalismo reforça o aspecto de utilidade dos recursos, especialmente sob o
ponto de vista de produção de riquezas. Não há mais um valor intrínseco em um
vasto território arborizado, se em seu lugar puderem existir pastos ou campos
cultivados. O braço direito da expansão comercial é a tecnologia. Cada vez
mais, as técnicas agrícolas permitem alcançar áreas impensáveis para a cultura,
estendendo os limites antes refreados pelo alcance dos braços ao potencial
produtivo da máquina. A natureza torna-se um óbice, e não uma aliada.
Tudo isso nasce de uma perspectiva mais mecanicista e menos
holística, criada a partir do momento em que o mundo é desmembrado em suas
pequenas engrenagens motoras. Há uma certa perda na relação de causalidade: não
é imediatamente perceptível que o despejo feito no rio sujará a mesma água que
será utilizada para irrigar as plantações ou dar de beber ao gado. Ou melhor
raciocinando: primitivamente, há tanta disponibilidade de recursos que parece
que os mesmos nunca faltarão. Notem como esse pano de fundo intelectivo agrava
ainda mais a separação entre homem e meio. No antropocentrismo, tínhamos uma
distinção entre homem e animal; no teocentrismo, entre homem possuidor de
espírito e mundo bruto. Agora, temos um completo desenlace entre homem e o
restante do mundo. É levada ao paroxismo a questão do domínio da humanidade
sobre o território que habita, e este é cada vez mais amplo, pela técnica que
se desenvolve mais e mais. Poucos filósofos ainda mantêm algum tipo de
pensamento totalizante, como Baruch de Espinoza, mas mesmo ele é ultrapassado
com a aproximação de eventos como a Revolução Industrial. Vejamos: Espinoza
entendia que o universo era composto por uma e apenas uma natureza, sendo que
nosso holandês era, por isso, enquadrado como um monista. Mas, em geral, o
monismo vem de braço dado com teses materialistas, que acreditam que nada há
além daquilo que os sentidos estão aptos a captar, e não há uma instância
metafísica que ultrapasse nosso entendimento. Não é esse o pensamento
espinoziano. Para ele, só há uma substância de onde emana todas as demais:
Deus. Não havendo outra fonte de onde se origine o cosmos, Deus não só está
presente em tudo; ele É tudo. Ao contrário do que queriam as religiões em
geral, Deus é imanência pura: está em toda parte e é toda parte. Se por um lado
esse panteísmo exclui o aspecto transcendental divino, por outro dá sacralidade
a tudo o que existe. Mais que isso, dá unidade. Homem e natureza, neste
contexto, são uma só coisa. Mas, como dizia a crítica da época, o panteísmo de
Espinoza era uma forma criativa de ateísmo, e ateus nunca foram muito bem
vistos. Sendo assim, um crescente Capitalismo que encontrou a escusa
weberiana da obtenção do acúmulo fez muito sucesso, pelo motivos óbvios.
É só do meio para o final do século XX que os recursos
naturais dão sinais claros de esgotamento, e começamos a sentir falta de uma
doutrina integralizante, que conseguisse medir consequências antes da execução
das causas. Às crises nos preços do petróleo se somaram os primeiros sinais de
aquecimentos global e outros prenúncios de potenciais catástrofes. É fácil
perceber as alterações no ambiente com exercícios simples. Eu tenho quase 50
anos, o que, na história da humanidade, não passa de um átomo. Nasci e sempre
vivi na cidade de São Paulo. Na minha infância, havia um pacote de pequenos
bichos que são difíceis de ver hoje em dia. Pirilampos eram muito comuns.
Piolhos de cobra eram abundantes em época de chuva. Havia gafanhotos e grilos
audíveis em qualquer noite e em qualquer lugar. Havia também os temíveis
chupa-sangue, uma espécie de besourinho vermelho que os mais velhos faziam
questão de nos tocar terror. Hoje em dia, todos esses insetos são raros de se
ver. Só tem baratas e baratas e mais baratas, que dominarão o mundo logo mais,
quando nenhuma outra espécie puder resistir às condições climáticas do
planetinha. Ah, e há pernilongos, muitos, de todas as formas e cores. Esse
desnível, perceptível em nossas próprias vidas, podem ou não ser causados pela
humanidade, mas são empiricamente detectáveis, não há dúvida. Perguntem a seus
avós porque o epíteto de São Paulo é “Terra da Garoa”. Hoje ele não faz mais
sentido, e por quê? Por alterações climáticas, simplesmente. A névoa matutina é
rara, e dias com temperatura mais baixa que dez graus são contáveis nos dedos
de uma só mão nos últimos vinte anos. E a discussão descamba improdutivamente
para o campo da antropogênese das mudanças climáticas. Que importa se o
aquecimento é causado ou não pelo homem? O que precisamos discutir é O QUE
podemos fazer para minimizar o problema, porque é ele que vai nos matar.
A Filosofia Ambiental surge, como se pode ver, com um forte
propósito ético. Parece muito semelhante à Ecologia, mas difere desta porque
uma é Ciência, e a outra é especulação, como toda boa disciplina filosófica. A
Ecologia estuda as relações do meio ambiente com os seres que nele habitam
(ecologia significa Estudo da Casa em
grego), ou seja, não há viés ético obrigatório no seu objeto, mas é a partir
dela que passamos a fazer a investigação e a levantar hipóteses, e essa é a
conexão que há entre ambas. A Filosofia Ambiental, por seu turno, tem na sua
conta a questão dos valores. Um exemplo é a discussão do especismo, uma espécie
de racismo com relação a outras espécies, que tratei neste
e neste textos,
já bem antiguinhos. A ideia base é racionalizar a relação entre homem e
ambiente, levantando questões que antes eram mal pensadas. Já tratei do tema
por estas plagas, ao discorrer sobre a ecologia
profunda de Arne Naess, o utilitarismo
ecológico de Peter Singer e a hipótese
de Gaia de James Lovelock. Em todos eles, transparecem conceitos que
incomodam. Uma Filosofia que sirva para dar base a uma nova visão que tenhamos
sobre o mundo obrigatoriamente precisa nos mover. Isso dá uma certa cara
ideológica à defesa do meio ambiente, o que é ruim. Ecologia e ética ambiental
não deveriam fazer parte somente da pauta da esquerda (para recordar dos
cuidados a tomar com os estereótipos e pacotes ideológicos, leiam mais aqui),
mas o fato é que o tema, por ser naturalmente político, cai na mesma armadilha
da polarização, tão frequentemente disponível aos nossos incautos pés nos dias
de hoje. Dizer, como dizem os defensores do modelo liberal que, por exemplo, a
cobertura vegetal se restabelecerá em pouco tempo se restituídas suas condições
originais oculta duas questões mais delicadas – quando haverá alguma vontade de
restabelecer um meio já devastado e o que existirá para fazer essa
recomposição, já que não há o milagre da reposição das espécies extintas.
No fundo, no fundo, era inevitável que a Filosofia se
enveredasse por esse campo do modo como o fez e que as reações viessem. Temas
como poluição, uso de defensivos, esgotamento do solo, expansão agrícola, ameaças
de guerra, poderio econômico na administração da terra, todos eles dizem
respeito a todos nós, ainda que estejamos longe das arvorezinhas e dos
bichinhos, e isso PRECISA nos interessar. Afetam nossa vida, e isso é o motor
do pensamento problematizador. Mas afetam também os nossos ganhos, o modo como
pautamos nossa evolução histórica, e tirar o rei do trono é sempre um processo
doloroso. Bons ventos a todos, enquanto houver vento.
Recomendação de leitura:
Os acordos internacionais prometem muito e entregam pouco. A
crise ambiental afeta também o mecanismo social. Ao colapso ecológico seguirá,
inexoravelmente, o colapso financeiro e de todo a humanidade como conhecemos.
Este é o assunto tratado pelo professor Luiz Marques, da Unicamp, em um livro
repleto de embasamento, para que ninguém diga que são bobagens. Não deixem de
ler.
MARQUES, Luiz. Capitalismo
e Colapso Ambiental. Campinas: Unicamp, 2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário