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terça-feira, 15 de outubro de 2019

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (29 – História da Filosofia)

Olá!


Muito embora eu já houvesse passado há muito tempo da juventude, ainda havia em mim um bom tanto de idealismo quando entrei na faculdade de Filosofia. Eu já sabia que pesquisar ou ensinar não seriam provavelmente minhas atividades principais, mas um troco extra dando aulas à noite ou escrevendo artiguinhos não seria nada mau, especialmente em tempos sombrios como os que vivemos hoje.

Uma das obrigações concorrentes do curso era a prestação de um longo estágio, que incluía análise de plano gestor, projeto político-pedagógico e atividades de sala de aula, com observação, participação e regência. Nas duas escolas em que estagiei, o começo foi o mesmo: sentar no meio da trupe como se um aluno fosse, e acompanhar o professor no exercício de sua arte. Dava dó, em boa parte. Alguns dos alunos dormiam, outros conversavam em volumes crescentes, e uns poucos abnegados prestavam real atenção aos esforçados docentes.

Isso me incomodava um bocado, mas eu tive que relembrar dos tempos de eu-estudante-secundarista, e resgatar meu desinteresse por um monte de disciplinas. Mas também tive um despertar da autocrítica enquanto parte da minha consciência de (futura) classe. As aulas de Filosofia eram tratadas como se fosse uma espécie de História II, começando com os pré-socráticos e chegando aos nossos dias. Até mesmo para mim a coisa era meio pesada, porque via no miúdo coisas que eu estudava mais profundamente na faculdade, tornando a aula arrastada. “Quando chegar meu momento de reger, vou tratar do assunto de maneira mais dinâmica, abordando temáticas, e não uma enxurrada de autores ligados pelo fio histórico”, era minha intenção.

Chegado tal momento, o meu supervisor de estágio mandou-me preparar os planos de aula, dando a mim liberdade para optar entre a continuidade ao seu trabalho ou o tratamento de algum tema lateral. Achei que tinha chegado a chance.

Quando eu sentei na mesa da cozinha de casa para rabiscar as linhas gerais do meu projeto de aula, começaram os problemas. Tamborilando com a caneta sobre meus lábios e olhando para o picumã que pendia do cantinho do teto, comecei a traçar um plano que sempre travava no mesmo ponto. Se eu quisesse falar de ética, teria que começar em Sócrates; se quisesse falar de conhecimento, iria começar ali também. Se eu pensasse em metafísica, teria que ir antes ainda. Se apelasse para a estética, começaria de Platão. Mesmo que eu fosse tratar de assuntos atuais, eu começava a fazer o retrocesso mental: “Isso vem disso, quem antes vinha daquilo, e que mais anteriormente vinha do outro”, em uma linha de eterno retorno (nada a ver com Nietszche). 

Mudei de estratégia. E se eu falasse do painel político de então? Já vivíamos em tempos de polarização, e seria inevitável tocar em temas como liberalismo e marxismo. Mas como eu falaria em Marx sem citar Hegel, e como falar de Hegel sem mencionar Kant, e como tratar de Kant sem conhecer Descartes e Bacon? Como falar de liberais sem mencionar os filósofos da Revolução Francesa e do contratualismo? É possível fazer isso, mas sem substância nenhuma, e esse não pode ser o objetivo de um professor. De achismo, o mundo está cheio, vitaminado por uma internet que mais confunde do que ajuda. Ao contrário do que dizem aqueles que tanto desmerecem a classe, o professor tem o dever moral de ser um lastro para onde possamos correr nos momentos em que nos crivamos de dúvidas.

Não foi propriamente um momento de desânimo, mas uma espécie de reconhecimento. Não temos como fugir da História, e é dela que devemos extrair nossa matéria-prima. Se queremos ensinar temáticas, é preciso ter o eixo histórico como rotor e, a partir dele, fazer florescer os diferentes temas. Para ensinar Filosofia, é preciso conhecer essa tal de História da Filosofia, e é sobre isso o que falaremos agora.



Se pensarmos em qualquer atividade humana, observaremos uma linha condutora de suas transformações. Traçando a história do futebol, por exemplo, vamos encontrar a milênios a prática do episkiros grego, do harpastum romano, do kuju chinês, do kemari japonês, os vetos na Idade Média e a modernização no século XIX, com a formalização de regras que o tornarão já muito semelhante à sua forma atual. No entanto, com a Filosofia a linha não é tão reta. O perfil cultural de uma época sempre é sentido em uma prática, mas, como a Filosofia está intimamente ligada ao cerne do pensamento humano, é possível perceber que sua flutuação está sempre colada aos acontecimentos históricos, muitas vezes até mesmo os precedendo. Por este motivo, podemos notar que sua evolução e divisão temporal é muito semelhante ao que os historiadores atribuem à História Geral.

Quando pensamos em uma História da Filosofia, devemos fazer um mea culpa e reconhecer nosso eurocentrismo, mas não se trata unicamente de uma questão de primazia da cultura ocidental, e sim de preservação de fontes seguras. Sabemos da existência de filosofias africanas e asiáticas altamente elaboradas, mas ou elas são muito fragmentárias no registro, ou são predominantemente orais, ou fundeiam menos nossa cultura predominante do que a origem grega. Esses são alguns dos motivos pelos quais nossas academias dão relevo maior a esse ramal. Não concordo substancialmente com essa conduta, mas é o que tem para a janta.

Assim como a História Geral, a Filosofia tem também sua pré-história. Os tempos inomináveis já marcavam a necessidade de que o homem satisfizesse sua sanha de saber. Acontece que não é tudo que está ao alcance de nossas mãos, e é no campo da suposição que estes antigos contribuintes operavam. No mais das vezes, coisas grandiosas exigiam causas grandiosas, e dessa lógica aparentemente simplista aparecem narrativas verdadeiramente complexas, onde deuses e entidades metafísicas intervêm no cosmos para torná-lo o que ele é. É a Mitologia, não exclusiva dos gregos, mas de todos os povos.

A História da Filosofia principia de fato quando há um ponto de inflexão na estrutura do pensamento. Tudo começa quando a mitologia grega e os mistérios órficos deixam de dar conta das dúvidas e aflições dos homens, e os pensadores passam a buscar as causas no próprio cosmos. O poder subjacente ao ciclo de causas e consequências não está mais em uma divindade, mas no logos, a razão humana que se entrega à Lógica. O primeiro a fazer isso que se tem registro é Tales, que buscava a arché, como expliquei em detalhes neste texto. Sendo uma busca pela constituição universal, esses primeiros pensadores foram conhecidos como filósofos da physis. No entanto, em termos de História, são mais conhecidos como pré-socráticos, os inauguradores da Filosofia Antiga.

Ainda no âmbito da Filosofia Antiga, as mudanças na polis grega fez surgir a primeira grande guinada da Filosofia. Os sofistas e Sócrates deslocam a análise do cosmos para o homem, fazendo surgir o antropocentrismo tão característico da Filosofia Clássica, o momento de máximo esplendor do pensamento grego, por onde ainda militariam Platão e Aristóteles. Na esteira destes mestres, surgem os filósofos helenistas, que aprofundam a discussão ética e elaboram códigos de conduta para a busca da eudaimonia. São os estoicos, os epicureus, os cínicos e os céticos, entre outros. Como já abordei todos, recomendo que vocês acompanhem os links para saber mais.

O curso da História, neste momento, fornece subsídios para uma viragem na Filosofia. O Cristianismo que vivia oculto nas catacumbas torna-se a religião oficial do Império Romano, hegemônico naqueles dias, e, com isso, seu modo de pensar ganha liberdade e preponderância. Os conflitos éticos até então discutidos perdem a relevância, uma vez que todas as suas respostas estão contidas na moral cristã. As discussões passam a ser voltadas para as relações com o deus monoteísta, uno e trino na concepção cristã, e no modo como a religião é reflexo da vontade divina. É a ascensão do teocentrismo. Mais do que uma Filosofia da Religião, a investigação intelectual se transforma em uma Teologia.

Embora a Idade Medieval da Filosofia não seja tão monotemática quanto se reputa, como já explanei aqui, o fato é que a discussão teológica foi o principal tema dos filósofos de então. Duas grandes vertentes se sucederam no entendimento filosófico-teológico deste longo período: a patrística de santo Agostinho, calcada no platonismo, e a escolástica de são Tomás de Aquino, que trouxe as ideias aristotélicas para o terreno do Cristianismo.

A Filosofia Medieval perdurou por muito tempo, mantida substancialmente nos mosteiros, conventos e abadias, enquanto nos feudos em geral corria a vida mundana, com pouco espaço para o conhecimento que não fosse prático. Entretanto, a tomada de Constantinopla pelos turcos e o consequente ciclo de grandes navegações levou a Europa a uma mudança cultural sem precedentes. A importação de produtos desconhecidos, a coleta de animais e plantas inimagináveis e os relatos dos nautas sobre culturas improváveis sacudiu os ditames da Igreja e trouxe novos questionamentos e algumas respostas. Em seu interior, pensadores como Roger Bacon, Guilherme de Ockham e Roberto Grosseteste, ou fora dela, gente como Galileu Galilei e Giordano Bruno, ainda no fim da Idade Média, já começaram a se descolar do teocentrismo, mas é com Nicolau Maquiavel no campo da política que novamente o homem volta ao centro dos debates. Um retorno artístico e cultural à Antiguidade Clássica e o ressurgimento do pensamento científico, que os historiadores denominam de Renascença, dão começo à Filosofia Moderna.

Dois filósofos em especial dividem os rumos da Teoria do Conhecimento. René Descartes dá primazia ao raciocínio inato e funda o Racionalismo, enquanto Francis Bacon prefere a experiência e faz renascer o Empirismo. Ambas as correntes puxam inúmeros seguidores: Pascal, Leibniz, Espinoza de um lado; Locke, Hobbes, Hume do outro. Essa divisão e seus consequentes debates (por vezes acalorados) perdurará até a epistemologia kantiana, que modifica a compreensão que se tinha sobre a razão e dá um novo rumo à temática.

Grandes descobertas no campo científico são concomitantes a uma espécie de libertação das consciências do jugo dogmático dos sistemas político-religiosos representados pelas aristocracias. Ainda no âmbito da investigação humanista, o Iluminismo passa a mirar o homem como ser político. Este movimento quer soltar o homem das amarras da monarquia e do misticismo religioso, constituindo um fortalecimento do indivíduo. Vai desembocar na Revolução Francesa, e, a partir daí, o leque filosófico vai se desdobrar como nunca aconteceu antes. A transição para a Filosofia Contemporânea conta com o idealismo alemão que culmina com a fenomenologia do espírito de Hegel, que influencia diretamente Karl Marx e Friedrich Engels. Os voluntaristas reerguem a temática ética com Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. O Positivismo que é inaugurado por Comte tenta conduzir todo conhecimento para a via da Ciência, e muitos dos debates que se davam no contexto da Filosofia acabam sendo especializados, como a Antropologia, a Sociologia e a Psicologia.

Já no século XX, novas escolas procurar rever a Metafísica, como a fenomenologia de Husserl, a evolução criadora de Bergson e o existencialismo de Heidegger e Sartre, dentre outros. O marxismo sai da esfera revolucionária e vai motivar autores como Gramsci, Lukács e a Escola de Frankfurt. O foco da pesquisa filosófica passa a ser mais cada vez mais diversificado, incluindo pesquisas sobre a linguagem, o ambiente e a mente. E por aí vamos seguindo por novos caminhos, esperando para ver no que podemos ajudar daqui por diante.

Eu gostaria de fazer uma observação rápida. Temos visto nos últimos tempos uma forte movimentação no sentido de desqualificar os meios acadêmicos como repositórios do conhecimento, o que é bem visível nos ataques à Ciência feitos por teorias da conspiração. O que está no bojo de maluquices como terra plana, vacina autista e água alcalina é a incapacidade da academia em se comunicar com os leigos. Isso não vale somente para a Ciência, mas para a Filosofia também. Tornamo-nos tão herméticos e autossuficientes que esquecemos de que o público em geral não capisce un’accidente do que se fala no jargão. Às vezes, esquecemos de que nosso papel não é só pesquisar e produzir conhecimento, mas traduzir seus significados, senão continuarão a surgir charlatães que tão bem conhecemos e que, por saberem usar muito bem a linguagem a seu favor, conseguem fazer suprimir aquilo que levou anos, décadas e séculos para ser desenvolvido. E esse pessoal pode até mesmo se aproximar perigosamente do poder. Aí, nosso grito não valerá mais nada. A História ensina, é bom aprender.

Para finalizar, acho que alguém pode ter ficado curioso em saber como resolvi a questão do meu primeiro plano de aulas posto em prática. Pois bem, como nosso caro professor Arnaldo estava abordando Nietzsche, resolvi usar esse meu fenômeno epifânico e fui buscar as raízes budistas da vontade, passando por Kierkegaard e Schopenhauer. Modéstia à parte, ficou bem instigante e consegui um pouco de atenção da audiência, comprovado pela quantidade de cabeças que se encontravam erguidas. Pensando bem, vou explorar a questão aqui no blog, e é para logo. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Para quem se interessa por qualquer tema, é sempre bom ter um manual respeitável para dar algum tipo de base. O que eu tenho no meu criado-mudo é o seguinte:

ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990.

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