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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Selvageria e bailes funk

Mas a multidão não acompanhou a canção da garota. (...) A massa se movia devagar, como um único corpo, em direção à máquina que cintilava como prata. No rosto da multidão havia ódio. No rosto da multidão havia  um temor supersticioso. O desejo de aniquilação final estava no rosto da multidão. - Thea Von Harbou, in Metrópolis

Olá!

No final do mês passado, tivemos um caso muito triste que ocorreu em nossa cidade, o linchamento do motorista de ônibus Edmilson dos Reis Alves. Tive uma surpresa muito grande ao ver sua foto estampada nos jornais: eu o conhecia, dos tempos em que morava no Jardim Elba. Não associei seu nome de imediato; existem muitos Edmilsons e, na verdade, conhecia-o por seus apelidos: Paraná, Maringá ou Palmeirense. Peguei ônibus muitas vezes com ele, conversávamos em alguns momentos. Era um cidadão de boa paz, veterano daquela linha (314J – Liberdade/Parque Santa Madalena). Foi arrancado de seu ônibus e espancado porque se sentiu mal ao volante e colidiu com alguns carros e uma moto. Parece que chegou a ferir uma pessoa, o que motivou a barbárie.

Vamos tentar recorrer novamente a Freud para buscar uma explicação (Devo lembrar que escrevo, principalmente, para a juventude. Isso acaba por me levar a falar sobre alguns conceitos básicos. Àqueles mais letrados, peço um pouco de paciência).

Freud desenvolveu uma importantíssima teoria acerca do funcionamento psíquico. Para ele, o equipamento mental possui três divisões, com diferentes funções, a quem denominou de instâncias. A primeira, a mais ancestral, depositária dos instintos e desejos, foi chamada de Id. Nele residem os impulsos inconscientes, sede das atitudes impensadas, do imediato, das taras. É lá que estão situados os desejos, as pulsões agressivas e tudo o mais que nos torna semelhantes aos seres instintivos, que se movem sem articulações abstratas.

Em oposição à impulsividade do Id, temos o poder refreador do Superego, formado pela interiorização dos princípios e regras morais impostas pelo meio em que se vive. Também esta instância é inconsciente, e participa com um sentido de punição e de limitação à ação do Id.

Entre ambos, habita o Ego. Esta é uma instância consciente, racional, que busca estabelecer um equilíbrio entre o poder impulsivo do Id e a ação restritiva do Superego. Com isso, o Ego impede que haja o predomínio de uma das instâncias inconscientes sobre a outra. Um indivíduo com preponderância do Id assemelhar-se-ia a um animal, que busca atender seus instintos impensadamente; se fosse dominado pelo Superego, sofreria uma tal imobilização de suas ações que provavelmente procuraria a ocultação. Nesse sanduíche, portanto, o papel da fina camada de recheio do Ego é tornar a vida possível.



Ora, onde estavam a racionalidade do Ego e a repressão do Superego nesta hora? O assunto é muito complexo, e necessitaria de uma leitura muito mais profunda do que agora, mas vamos lá assim mesmo!

Como disse anteriormente, o Superego se forma a partir das contingências morais impostas pelo ambiente. Elas são absorvidas pelo indivíduo na medida em que suas ações, prioritariamente estabelecidas pelo Id, vão sendo reprimidas no decorrer de sua vida. O Superego breca o Id, e o faz de maneira inconsciente. Como nasce de circunstâncias externas ao indivíduo, é sumamente importante ter em mente que os freios do Superego dependem da sociedade em que se vive, e nesse ponto precisamos ter um olhar antropológico sobre a causa em questão. E, neste ponto, é preciso reconhecer que vivemos em uma cultura da violência. Vejamos alguns exemplos:

1. Em 2005, foi realizado um plebiscito para que se decidisse sobre o desarmamento. Em linhas gerais, sou contrário à consulta popular sobre temas tão pontuais, mas o recado passado foi tremendamente claro: a população brasileira prefere continuar ter à sua disposição um instrumento de defesa do que confiar na eficiência do poder institucionalizado para efetuar essa tarefa. Não discuto o resultado, mas tenho medo de que esse pensamento seja oriundo de uma tendência à violência residente no inconsciente coletivo do brasileiro;

2. Os filmes de ação estão prenhes de derramamento de sangue, de uma forma como nunca se viu antes. Não basta mais supor a situação de violência, é preciso que esta seja escancarada. Se as tripas não estão visíveis, se a cabeça não foi arrancada, se a arma não varou o corpo da vítima, não há satisfação, o filme é fraco, não é para “machos”;

3. O esporte da moda é o MMA, tanto que a própria rede Globo engoliu seus princípios e passou a transmitir estas lutas como eventos grandiosos, em que seu principal locutor é escalado para narrar as lutas. Não compreendo como esses espetáculos podem ser considerados esportes. O grande mérito do esporte está justamente em sua capacidade de exercer um combate simulado, onde a vitória não representa o massacre do adversário, mas sim a superioridade de uma das partes. Esse não é o objetivo do MMA, UFC ou coisa que o valha. O gozo só é atingido se o adversário cai desfalecido no chão. Se isso não é cultura da violência, então não sei qual é o nome.

Diante desse conjunto de circunstâncias, não é de se estranhar que as instâncias psíquicas limitadoras sejam mais laceadas, mais frouxas. E, em um grupo de funkeiros enfurecidos, basta que um deles saia do limite do razoável para que os demais o sigam, em um processo comum no ser humano chamado de mimese.

Mimese quer dizer imitação, e desta palavra originou-se o termo mímica. Já notaram que quando uma pessoa boceja várias outras também o fazem? É a mimese agindo, inconscientemente. O mesmo se presta à moda, às atitudes, é assim que se forma o inconsciente coletivo. Cerca de 20 pessoas, segundo os jornais, agiram no espancamento. Estas 20 pessoas agiram desmedidamente, desproporcionalmente, irracionalmente. E aí vem a minha grande questão: em um grupo de 300 pessoas, 20 foram para a porrada. Ok. E as outras? Por que não intervieram? O motivo é claro: também elas concordaram com a selvageria. E isso é o que mais me preocupa no caso.

Recomendação de leitura:

Como já disse anteriormente, Freud possui uma obra muito completa e complexa sobre a mente humana. Recomendo o seguinte livro para que se possa aprofundar um pouco mais em suas teorias:

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.

PS: que pena que o termo "funk" tenha se vulgarizado de tal forma. Tivemos excelentes artistas do gênero, como Parliament-Funkadelic, Earth Wind & Fire, Tim Maia e seu sobrinho Ed Motta...

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