Olá!
Vamos entrar em um novo estágio deste pequeno manual. Há
muitas áreas do conhecimento que já escapam do âmbito puro da Filosofia, seja
porque ganharam muita especificidade, seja porque desenvolveram métodos
próprios de pesquisa, mas sem deixar de guardar algumas penas da coruja de
Minerva em seus fundamentos. Até mesmo por isso, são ciências humanas das quais
faço uso frequente neste espaço, e que merecem destaque apartado, ora pois.
Em inúmeros cantos, por exemplo, comentei sobre as maneiras
e os porquês pelos quais os homens preferiram associar-se e viver juntos,
partilhando bens e gêneros de primeira necessidade, protegendo-se mutuamente e
dando manutenção ao grupo, cuidando das suas crianças e enterrando seus
defuntos. Essa malha ganha complexidade à medida que se torna maior, sendo
composta por indivíduos com anseios próprios, mas que, de alguma forma, se
submetem aos ditames do todo em que vivem. Essa vida em comum é o que se chama
de socius em latim, e é o que
modernamente chamamos de sociedade.
Sabendo que grupos sociais se inter-relacionam, podemos chegar à extensão máxima
do planetinha como campo de estudo, o que é realmente bastante coisa.
Percebendo e tentando compreender o funcionamento destes entes que englobam e
que superam as individualidades nasceu a Sociologia, que vamos analisar agora.
Se comparada à Filosofia, a Sociologia é uma criança cujos
dentes-de-leite ainda estão brotando. Isso não quer dizer que somente com a
modernidade nasceu a questão social. Encontramos inúmeras referências à vida em
sociedade nos socráticos, como o animal político de Aristóteles e a cidade
ideal de Platão, e mesmo antes, nos pré-socráticos e pré-filosóficos, como
Homero e Hesíodo, encontramos embaraços entre grupos humanos a tentar serem
resolvidos. No entanto, é apenas no século XIX que os fenômenos sociais passam
a ser objeto das Ciências. Estamos no âmbito do Positivismo, derivação direta
do otimismo com os avanços tecnológicos, que vê a Ciência como meio de resposta
muito mais eficiente do que a Metafísica e a Religião para sanar nossas
ambiguidades e problemáticas. Explica-se: diante da dor de cabeça, um
comprimido funciona muito melhor do que uma prece ou do que se especular sobre o
que é a dor, seu sentido, sua essência e o conformismo diante dela. As
respostas para os enigmas do universo estão no próprio universo, e não em
instâncias imateriais, é o que diz o saber científico. E, por isso, a Ciência,
o arauto do Positivismo, é considerada a única forma de conhecimento válido.
Tudo isso nos fala Comte, o
papa da corrente.
Muito bem. Acontece que a sociedade existe, como podemos
determinar empiricamente. E, como tal, merece e precisa ser estudada. Mas não o
será mais em termos especulativos, e sim científicos, submetida a um método que
permita aferições e medidas, que possa ser reproduzido e verificado. É nesse
âmbito que a Sociologia, agora como Ciência, vem à luz. Bem... Comte a chama de
Física Social. O termo Sociologia nasce depois, com um cara que veremos já, já.
Era preciso dizer, após isso, como deveria ser dado tratamento a ela, ou seja,
qual seria a metodologia que lhe daria respaldo. A Sociologia é do campo das
Humanas, mais difíceis de tratar em termos de reprodutibilidade do que as
Exatas, mas o desafio precisou ser enfrentado.
Como a Sociologia é ainda uma área do conhecimento bastante
recente, as linhas-mestras do seu pensamento são um tanto restritas. Não se
trata de simplificá-la; é só uma questão de cronologia. Se falamos de
Matemática desde Pitágoras, é natural que as correntes tenham se ramificado
muito mais, mesmo sendo do escopo das Exatas. Por isso, quando falamos em
Sociologia, três nomes brotam logo de imediato e são unânimes, porque
consolidaram o campo investigativo: Durkheim, Marx e Weber. Seus trabalhos são
extensos e vão além da análise social pura e simples. Por isso, nosso intento
aqui será apenas e tão-somente trazer o carro-chefe do pensamento de cada um
deles, aquilo que mais contribui para delimitar a Sociologia como Ciência.
Vamos seguir a boa e velha cronologia dos manuais e começar
pelo francês Émile Durkheim (de quem já falei aqui).
Como sabemos, toda Ciência tem um objeto bem claro de investigação. A Biologia,
por exemplo, não estuda pedras, a não ser naquilo que elas dão de apoio à vida.
Idem com a velha confusão entre Arqueologia e Paleontologia. Uma estuda a
cultura de povos antigos, a outra estuda espécies antigas. De cara dá para
perceber que a primeira é ligada às Ciências Humanas, e a segunda às Ciências
Naturais. Se você achar um caco de panela velha em seu quintal, deverá procurar
um arqueólogo; se achar um ossinho esquisito, um paleontólogo – não se engane
mais. Essa definição do que a Sociologia deve estudar é o que Durkheim fez
muito bem, além de batizar esta nova ciência.
Durkheim cria o conceito de fato social para delimitar o campo de estudo sociológico. Ou seja,
não é qualquer coisa que ocorre em uma sociedade que faz parte do mecanismo social.
É preciso que, para ser elegível como fato social, um fenômeno atenda a alguns
requisitos. A base do raciocínio é a ideia de que a sociedade é mais do que a
mera soma dos indivíduos que a compõe. Os acordos que são constituídos
socialmente superam as vontades de cada um, e trazem a obrigação de cumprir
normas e regras, ainda que estas não estejam escritas, mas que sejam parte de
um hábito consensual. Por isso, o fato social, em primeiro lugar, é coercitivo:
há um mecanismo que obriga a sua existência. É óbvio que o que mais salta aos
olhos é o cumprimento da lei, que determina, por consenso de representantes
eleitos ou de concessão do poder, o que é passível de punição e o tamanho da
pena. Mas há outros dispositivos de pressão social que funcionam de maneira
igualmente eficaz, como a habitualidade, a noção de moral, a etiqueta. Senão, o
que explicaria o uso de paletós e gravatas em pleno verão nas nossas terras
tropicais? Há uma confluência tácita de que terno é sinônimo de elegância e de
que é desrespeitoso comparecer a um evento formal fora de trajes ditos
elegantes. A pessoa se obriga a tais desconfortos porque há um escape de seu
interesse individual, e vai suar às bicas porque a sociedade lhe coage.
Outra caracterização do fato social é sua exterioridade com
relação a indivíduos. Isso significa que a sociedade é um organismo
independente dos organismos que a compõe. Não importa se a sociedade é formada
por Maurícios e Mateus; se forem trocados por Tarcísios e Tadeus, dá na mesma,
continua sendo uma sociedade, com todas as suas características. O que
significa isso? Que, ao olhar para um fato social, como o processo educativo,
por exemplo, examinaremos os papeis dos atores, e não os seus ocupantes.
Veremos existir um diretor, alguns professores e vários alunos, e não o diretor
Toninho, os professores Lalau e Vera Lúcia e os alunos Décio, Rogério e
Ricardo. O fato social é impessoal, e, se um fenômeno não puder ser dissociado
de um indivíduo, então não estaremos falando de um.
Por fim, um terceiro aspecto do fato social é a sua
generalidade. Isso significa que um fato social é aplicável quando se tratar de
um uso comum na sociedade onde se pratica. Como exemplo mais escancarado, temos
a utilização da língua portuguesa em território brasileiro. É um código
linguístico que forma uma unificação social através da compreensão comum. Mesmo
um surdo-mudo, através da língua de sinais, se fará compreender pela estrutura
da linguagem mútua. A generalidade se dá porque a sociedade se caracteriza por
algum nível de coesão. Mesmo em uma suposta sociedade anômica há um nível de
consenso nas consciências que faz com que certas regras sejam estabelecidas.
O resumo da ópera durkheimiana é que não são os indivíduos
que compõem a sociedade, mas a sociedade que molda os indivíduos, e, nesse
sentido, o fato social é aquele que deve ser analisado por si só,
independentemente dos elementos subjetivos que lhe propulsam.
A seguir, vamos falar sobre o alemão Karl Marx, tão polêmico
e decantado hoje em dia em Pindorama. Enquanto Durkheim define um objeto de
estudo para a Sociologia, Marx lhe prescreve um método. Como já falei neste
post, Marx define uma Filosofia da História não linear, que se dá pela
movimentação entre polos contrários, que chamamos de materialismo histórico
dialético. A mola propulsora desta navegação entre extremos antitéticos é seu
grande conceito sociológico: a luta de
classes. Vamos esmiuçar.
As sociedades, vistas à distância, podem ser enxergadas como
uma entidade, com características próprias a cada lugar onde for observada.
Assim, podemos falar em uma sociedade alemã, uma sociedade brasileira e assim
por diante. No entanto, quando olhamos estruturalmente, verificamos não
possuírem uniformidade. Há vários estratos e camadas, formando grupos que
possuem algum elemento de coesão, mas que se distinguem de outros e se lhe
opõe, em maior ou menor nível. Alguns desses grupos não possuem diferenças
irremediáveis, e podem conviver sem conflitos (embora nem sempre isso ocorra). Já
entre outros, o estado de tensão é permanente. Por exemplo: imigrantes andinos
chegam ao Brás e povoam os cortiços locais, por conta de sua mão-de-obra
barata. Eles constituem uma classe, a dos imigrantes, que é mal recebida por
outra, a dos nativos. Estes se opõem com veemência, reclamando da
desvalorização dos salários e da diminuição da disponibilidade dos empregos,
gerando uma inquietude entre ambas. Percebam como uma realidade empurra a
outra. Uma classe foge da miséria e a outra não quer dar elementos para que a
mesma miséria se avizinhe. No final, há a síntese, até mesmo porque, ao se
escalar o nível, nota-se que andinos e locais pertencem, eles mesmos, a uma
mesma classe, mais abrangente: a dos pobres, que se oporá à dos remediados, e
que, somadas, se oporão à elite. Esse impulso espiral compele (ou força) as
situações a saírem de suas estagnações, e rumar para seu lado oposto, porque,
obviamente, não faz sentido que caminhem para o lado pior.
Segundo Marx, é o sob o prisma da luta de classes que todo
fenômeno social deve ser compreendido. Se o dólar subiu, se há poucas vagas nas
creches, se a escolaridade melhorou, se há mais crimes contra a vida que contra
o patrimônio, deve-se encontrar quais são os interesses das classes envolvidas
no fato e deslindar a dialética que redundou em seu desfecho, em sua síntese.
Finalmente, vamos falar de outro alemão, também ele pilar sociológico:
Max Weber (de quem já falei neste
texto). Se Durkheim propõe um escopo e Marx um método, Weber dá à
Sociologia suprimento para outra necessidade científica – os modelos,
essenciais à capacidade de realizar predições. Isso é feito através do que foi
chamado de tipo ideal.
Um tipo ideal é um modelo social que independe da sua
existência concreta para a análise do sociólogo. O senso comum pensaria em tipo
ideal como modelo de perfeição, mas não é nada disso. “Ideal”, no caso, indica
que o modelo existe na ideia, e não obrigatoriamente no mundo prático. Desta
forma, ao invés de trabalhar com realidades palpáveis e complexas de se obter,
a pesquisa social utiliza modelos abstratos que permitem a sua substituição.
Mas de onde o pesquisador extrai o tipo ideal? Do mesmo
lugar que outras Ciências: de um processo de indução, e, para isso, lança mão
de uma quantidade suficiente de dados estatísticos, que
são a grande ferramenta de trabalho da Sociologia. Weber detectou a
impossibilidade de deter a totalidade de informações de um determinado
organismo social, e concluiu que amostras significativas podem constituir
perfis que permitem prever características coletivas como um todo. Eu vou aqui
fazer um exemplo-brincadeira para explicar. Observada a sala onde trabalho,
temos as seguintes preferências esportivas:
Eis que temos que o tipo ideal da sala adora futebol e
fórmula 1, curte um pouco de basquete, mas não gosta de vôlei e boxe. O tipo
ideal, neste caso, tem um encaixe perfeito, que é o indivíduo D***. Veja que,
enquanto indivíduo, o cidadão W*** é o exato oposto dessa tendência, um
contramodelo, mas se você socialmente quiser colocar uma TV para nossas horas
de folga, terá que priorizar futebol e fórmula 1, com alguma coisa de basquete.
Essa é a preferência do grupo, sintetizada em seu tipo ideal. Pode deixar vôlei
e boxe para lá, W*** que se lasque. É óbvio que isso é um chiste para
aporrinhar o colega de gosto exótico, mas é uma maneira eficiente de abranger
maiores fatias de uma determinada população em uma decisão governamental, por
exemplo.
Minhas remissões aos três autores são meramente superficiais
neste post, há muito mais para extrair deles, com teses absolutamente geniais
sobre suicídio (Durkheim) e capitalismo (Marx e Weber). Mas, para dar uma
palhinha sobre suas contribuições seminais à Sociologia, parece-me suficiente.
Bons ventos a todos.
Recomendação de canal:
Recomendo o canal Sociovlog, do Robson Lima, um professor e
pesquisador jovem e muito claro, que fala sobre vários temas ligados à
Sociologia, indo muito além da santíssima trindade mencionada no presente
texto. Segue o link:
https://www.youtube.com/channel/UC_-q4wp-W3B6HJW_mqI4Cmg
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