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quinta-feira, 5 de maio de 2016

5 anos de Aporias Plurais – sobre o que motiva e o que desmotiva a atividade filosófica

Olá!

Efeméride importante. Há exatos cinco anos eu inaugurei este espaço, dadas as facilidades proporcionadas pela internet gratuita e a necessidade de desenvolver um projeto pedagógico. Gostei da brincadeira e a mantive até hoje, já com uns novos propósitos.


Nunca pretendi fazer deste blog um espaço puramente acadêmico, e sim um humilde norte para estimular a interpretação filosófica de espertos rapazes e cultas garotas, apoiado em duas constatações: ainda que surpreendente, há muita juventude interessada no pensar filosófico, mas que não sabe exatamente onde achá-lo. Por isso mesmo, vou dando minhas dicas de livros, filmes e etc. para que nossos mancebos e moçoilas possam tomar gosto pela coisa.

Um lustro! Deu tempo de produzir bastante coisa. Mas confesso que tem horas que bate um certo desânimo. Às vezes fico pesquisando um tema por meses a fio, principalmente aqueles que geram textos concatenados entre si, para ter, como resultado, quinze ou vinte visualizações. De vez em quando, alguém compartilha um desses textos nas redes sociais (devo agradecer muito ao Fernando Faria, que tem feito um grande trabalho de divulgação do meu blog) e o tal acaba ganhando um pouco de respiro, mas é raro. Fico com aquele encafifamento típico de quem acha que está falando muito, falando difícil, falando merda... Mas, raciocinando, chego à conclusão de que o formato blog está perdendo a força. A média de visitas a este espaço tem aumentado, pelo óbvio motivo de que há cada vez mais postagens, mas a consulta a textos novos declinou bastante.

Talvez eu devesse migrar de plataforma, usar o Tumblr ou o Wordpress, mas minha inabilidade atual com edição para internet chega a causar pena. Sou do tempo dos frames e do Front Page, tecnologias que se vão longínquas nesses tempos atuais (longínquo, no caso, são dez anos). Também pensei em criar um canal no YouTube, mas posso garantir a vocês, meus amigos, que escrevo muito melhor do que falo. E, além disso, precisaria fazer a edição, produzir uma vinhetinha decente, cuidar de conseguir um equipamento razoável, sem deixar de escrever o texto, transformado em roteiro, ora pois. E, por último mas não em último, minha figura não é, por si só, uma atração. Quem me conhece pessoalmente pode atestar.

Pode ser que um dia eu faça isso, mas não vai ser agora. Por enquanto, lutemos contra a pusilanimidade e prossigamos neste formato, e tentando descobrir a causa do sucesso do meu texto mais lido, escrito de maneira tão despretensiosa que quase não o publico. Quer dizer, o porquê de sua busca constante eu já descobri: se você digitar no Google os termos “eclesiastes” e “filosofia”, verá o fagueiro artigo na cabeceira da consulta:


O que eu não compreendo é o motivo da benesse concedida pela gigante das buscas. Como nunca pensei muito bem em termos publicitários, não sei como cheguei nisso, e como ninguém que torna uma escrita pública gosta de vê-la escondida (caso contrário, guardá-la-ia numa gaveta), aceito dicas de bom grado.

Minha patroa me pergunta às vezes porque não colijo meus pensamentos em livro. E há quem pergunte por que eu não parto para a produção de artigos acadêmicos de verdade, publicar em revistas e o escambau. Bom, por vários motivos.

O primeiro é que este espaço é um hobby atualmente. Por isso, não preciso esquentar a cabeça com prazos de entrega, periodicidade, disponibilidade de livros, ABNT e così via. Depois, os artigos acadêmicos podem ser mais úteis e precisos, mas são naturalmente mais chatos, e com isso não vou atingir o público que eu quero. Além disso, para pesquisar seriamente, precisaria de mais tempo, e não posso largar minha atividade principal. Fazer pesquisa significa produzir novidade, o que não preciso fazer no meu blog. Outra coisa: não sou um nome conhecido para chegar na academia e dizer “publicaê”. E, final e principalmente, pesquisa demanda dinheiro.

Ora (direis), vá aos cofres públicos! Faça um bom projeto de pesquisa e requeira verbas às instituições de fomento, quem sabe você não consegue mamar nessas gordas tetas? 1. Não gosto de leite. 2. Financiamento gera obrigação. 3. Atualmente, não tenho vínculo empregatício com nenhuma instituição de nível superior. 4. Vou contar uma historinha.

Muito bem. Como já está bem decantado pela nossa operosa imprensa, vivemos uma crise sem precedentes na nossa história (o que não é verdade inconteste; basta que se tenha mais de 40 anos para lembrar bem da década de 80, mas não quero discutir política neste momento), gerando grandes contenções de gastos em todas as áreas onde o governo precisa injetar dinheiro. Algumas destinações de primeira necessidade, como saúde e educação, recebem quantidades brutais de verbas (se são bem empregadas, é outra história), e qualquer por cento que se reduza em seus orçamentos representa uma avalanche de (ainda) dilmas. Outras áreas não são tão agraciadas, para a nossa lamentação, como é o caso das pastas de Ciências e Tecnologia, mas, até mesmo pelo fato de não fazer ninguém morrer de fome diretamente, recebem cortes orçamentários proporcionalmente mais profundos. Tudo isso está lindamente explicado neste e neste vídeo do Canal do Pirula, e não vou tentar fazer melhor do que ele. Assistam lá e voltem cá.

Vejam como a discussão entre o financiamento da Ciência de base e a Ciência aplicada é importante. Não há como fugir do questionamento do uso prático de uma pesquisa científica, mas também não há como aplicar conhecimento se não o temos. Ciência de base inclui especulação, longas observações, cálculos complicados, tempo e mais tempo. É muito mais atraente falar sobre medicamentos, mas alguém teve que pesquisar sobre composições químicas antes disso; é atraente falar sobre cirurgias a laser, mas alguém teve que descobrir propriedades óticas primeiro; é atraente falar sobre carros elétricos, mas alguém precisou compreender o que é eletricidade um dia. Não se aplica Ciência sem se saber Ciência.

Mesmo assim, a Ciência de base ainda tem algum apelo e atrativo. Só em São Paulo, entidades como a Estação Ciência (fechado temporariamente), o Museu de Zoologia da USP, o Catavento Cultural e outros exibem a seus visitantes atrações como simulador de terremotos, fósseis, imersão em cavernas, corpo humano por dentro, modelos computacionais e, com isso, demonstram que a ciência de base desperta o interesse das pessoas até mesmo como espetáculo, porque são coisas que podem ser bastante curiosas e trazem respostas a algumas de nossas perguntas fundamentais. E são incríveis mesmo – uma pessoa cabeluda com a mão em um gerador de Van der Graaf sabe do que estou falando. Não é exatamente o melhor dos universos, mas é muito útil para cutucar o espírito científico e para divulgar a atividade acadêmica.

Mas o fato é que a grana está curta, e se já é difícil obter verbas para o financiamento das Ciências, que tem algum apelo junto à população, o que diremos do financiamento à pesquisa filosófica? Mais ainda: quem acreditará que pesquisar filosofia de base pode ser importante?

Sim, porque também temos essa diferenciação em Filosofia. Há áreas voltadas para a análise de atividades práticas, como a Filosofia Política, Filosofia da Educação e Filosofia da Ciência, e existe aquela Filosofia mais profunda, que discute o âmago e as causas mais primordiais das coisas, como a Metafísica, a Epistemologia, a Lógica, a Ética. A Filosofia de base discute temas abstratos como a verdade, o tempo, o ser.

E eu pergunto: quem conseguiria financiamentos para repropor o Ser? É claro que a pesquisa filosófica é bem menos cara do que uma pesquisa científica, que requer materiais, laboratórios, observatórios, equipamentos, cobaias e muitas coisas mais. Em Filosofia, os maiores gastos são com livros, que poderiam, em todo caso, ser acessados nas bibliotecas das próprias universidades. No extremo, será necessário adquirir um bom computador, contratar um tradutor, fazer algumas viagens e utilizar os serviços de algum biblioteconomista, de um historiador, de um arqueólogo, mas dificilmente atingirá o custo de uma pesquisa científica simples. Mas são custos que existem e que dificilmente podem ser suportados pelo pesquisador com seus parcos ganhos. E, de acordo com a natureza do objeto a ser pesquisado, o total auferido será zero.

Imaginem a seguinte situação: o conhecimento consagrado diz que a Filosofia nasce a partir dos gregos. Queremos investigar e repropor essa tese, e, para tanto, precisamos viajar para a África, berço mais antigo da humanidade. Precisaremos nos encaminhar para lá, detectar as fontes históricas, conversar com os acadêmicos locais e tentar extrair alguma sistematização do conhecimento que possa estar fugindo da base mitológica, à semelhança do que aconteceu na Grécia. Sendo semelhante e anterior o leque de temas propostos por essa primeva Filosofia, teríamos que perscrutar os caminhos que conduziram essas linhagens de pensamento aos gregos, se é que tal fato aconteceu. E com isso mudaríamos a data de nascimento do pensamento racional.

Isso tudo é muito lindo, mas vamos cair na pergunta pragmática: serve para quê? E a resposta não é muito animadora, já que, a princípio, serve “apenas” como conhecimento. Não haverá uma revolução científica, não haverá uma transformação histórica, não haverá uma reforma ética, não haverá a redescoberta da roda. Teremos mais saber, e somente o futuro dirá o que faremos com ele. A Filosofia, que já convive com especulações sobre sua utilidade, não tem grandes armas para se defender. E o agente de financiamento mete o fúnebre carimbo de “rejeitado”, selando com o túmulo o projeto de pesquisa.

Mas as coisas não são assim e já é hora de que haja uma melhor divulgação filosófica, incluindo os pensamentos mais fundamentais. Mencionei acima a Filosofia da Educação, que é indistinguível das correntes pedagógicas adotadas pela escola do seu filho, meu caro amigo. Construtivismo, Comportamentalismo, Criticismo e outras vertentes não sobrevivem sem a Epistemologia, área da Filosofia que versa sobre o conhecimento. Com relação à Filosofia Política, que é a discussão racional sobre as relações de poder, e que geram todas as discussões entre direita e esquerda, podemos falar em Marxismo, Monarquismo, Liberalismo, mas não podemos falar em nada disso sem ter em mente a Ética, que é a área da Filosofia que trata das relações humanas. E sobre Filosofia da Ciência, vou me alongar um pouquinho mais.

Os antigos gregos possuíam uma metodologia de investigação que se baseava na dedução, e que não dependia muito da experimentação e da observação, o que nos afasta dos métodos científicos como os conhecemos hoje. Quem primeiramente descreveu cuidadosamente um sistema em que múltiplas variáveis deveriam ser recolhidas e comparadas foi Francis Bacon, ainda no século XVII (já falei dele neste texto). Era o indutivismo, onde cada observação de um fenômeno era candidata a derrubar todo o conhecimento formado até então. A Ciência parte definitivamente para o empirismo, e esse método perdurou até o começo do século XX, quando Karl Popper, que mencionei no mesmo texto, introduziu o conceito de falseabilidade, uma das grandes características da pesquisa hodierna.

Basicamente, a diferença entre ambos é muito sutil. O empirismo de Bacon dá força a uma indução na medida em que encontre elementos que confirmem a tese. Por exemplo: uma minhoca vive na terra, duas minhocas vivem na terra, três minhocas... Bacon procura sempre mais minhocas para reforçar sua conclusão. Já Popper vira o foco: ele vai procurar a minhoca que não vive na terra. É o que ele chama de ponto de falseabilidade – uma circunstância que invalida a conclusão. Quanto mais testes sofrer a teoria, mais forte ela se torna. E mais ainda: uma proposição somente pode ter caráter científico se ela possuir esse ponto. Tudo o que não puder ser falseado, não é científico. É Filosofia, é Religião, é Metafísica, é Arte, mas não é Ciência.

Mas mesmo o sólido modelo de pesquisa de Popper não passa incólume a críticas e revisões. Paul Feyerabend, filósofo austríaco, por exemplo, faz críticas virulentas à tentativa de encerrar a Ciência em uma metodologia fechada. Para ele, toda a história de descobertas científicas está marcada por mudanças de rota, detalhes insólitos, acaso e tortuosidades que não podem, nem em sonho, ser previstas pelas folhas limpinhas de um método. O ponto em comum de todas as descobertas é um só – sempre que se tentar encaixar uma experiência em uma norma, haverá a possibilidade de se fazer um desvio dessa norma.

Algum problema nisso? De jeito nenhum, no pensamento de Feyerabend. Essa liberdade de acontecimentos é rigorosamente necessária para o surgimento do novo. Sob pena de não se progredir, os cientistas de escritório precisam supor mais, mexer mais, até mesmo sonhar mais. A regra é: o único método válido para a Ciência é o vale-tudo, chamado pelo pomposo nome de anarquismo epistemológico. Não se pode pautar unicamente pelo racional – é também necessário buscar no absurdo.

Claro que Feyerbend construiu suas teses na medida certa para “socar” a metodologia de Popper, mas muitas de suas assertivas são coerentes, e, principalmente, feitas para provocar e tirar a comunidade científica da comodidade.

Já a crítica de Thomas Kuhn, filósofo norte-americano, está ligada à falta de uma perspectiva histórica na aplicação dos métodos científicos. Isso porque o racionalismo que caracteriza a Ciência não a tira do lapso temporal. A Ciência existe no tempo como todos nós, e se transforma através dele, também como todos nós. E são essas transformações que fazem com que o conhecimento científico mude radicalmente. Para entender melhor, Kuhn lança mão do conceito de paradigma.

Paradigma é um conjunto de representações que formam um modelo consensual a ser seguido. Como existe um acordo entre todos os atores, o paradigma é a matriz a partir da qual toda a atividade científica evolui. Da formação de um paradigma e de sua aceitação, nasce a Ciência Normal, que nada mais é que o conjunto de atividades que seguem determinado paradigma. Veja a semelhança que Kuhn dá entre um paradigma e um dogma...

Acontece que Kuhn observa que, de tempos em tempos, surgem hipóteses que fogem aos ditames do paradigma e da ciência normal. A princípio, como o paradigma é bem consolidado, estas hipóteses são consideradas meros desvios e erros na aplicação da metodologia. Na medida em que vão surgindo mais e mais evidências que corroboram a hipótese destoante, o modelo começa a entrar em crise. E, na medida em que a crise se amplia, ocorre o fenômeno: o paradigma anterior explode, e surge um novo paradigma. Essa é a revolução científica, como chamada por ele mesmo. Esse repente no surgimento do novo paradigma faz com que a tese anterior seja defendida a todo custo pela maioria da comunidade acadêmica, e o convencimento, este se dá aos poucos.

Assistimos inúmeros destes casos na história da Ciência: antes de Darwin, o fixismo era normalmente aceito por gente do calibre de Linneu. Antes de Copérnico, todos achavam que Ptolomeu já tinha matado a charada com o geocentrismo (e mesmo Copérnico foi superado por Kepler). Antes de Pasteur, a geração espontânea era uma solução francamente aceita pela comunidade científica. E todos eles precisaram segurar a barra de montanhas de contestações. Ou seja, o paradigma novo surge repentinamente, mas sua aceitação é progressiva.

A falseabilidade de Popper e as novas propostas de Kuhn e Feyerabend não são transformações científicas; são epistemológicas, são filosóficas. São aplicadas para a Ciência, mas nascem da Filosofia, e daqueles questionamentos mais profundos: o que é a verdade? É possível conhecê-la? ISSO é filosofia de base, que deriva para uma Filosofia “prática”. Seria melhor prosseguirmos na dedução aristotélica e na indução baconiana para praticarmos Ciência? É onde estaríamos se a Filosofia não apontasse novas metodologias e caminhos. E, com isso, espero humildemente colaborar para diminuir a sensação de que a Filosofia é coisa inútil. Já me sinto melhor.

Portanto e finalmente, meus bons leitores, convido vocês a refletir sobre os indicativos que fazem decidir quais pesquisas devam ou não ser realizadas. O critério de utilidade é significativo, mas não pode ser definitivo, sob pena de ficarmos dando voltas e mais voltas ao redor do conhecimento disponível, sem grandes perspectivas de sair do lugar. Uma hora as ferramentas disponíveis se esgotam, e precisaremos novamente filosofar sobre as perguntas mais arquetípicas para encontrar soluções. Ou não?

Recomendações:

O canal do Pirula é excelente para quem gosta de discussões sobre Ciências. Suas séries sobre Criacionismo e suas explicações sobre temas como cladística e migração de espécies são primorosas. Vale a pena assistir (lembrando que vídeos longos não são um problema para mim).

https://www.youtube.com/user/Pirulla25

Feyerabend é, antes de tudo, um contestador. Seu livro parece pretender menos estabelecer uma metodologia (ou falta de) do que ser um libelo contra o cerceamento do livre pensamento científico. Afinal, tolher a liberdade do cientista significa impor alguns limites que podem dificultar o alcance da pesquisa.

FEYERABEND, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

E, finalmente, a obra-prima de Thomas Kuhn, onde está exposta sua tese de vinculação da história ao progresso científico.


KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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