Olá!
No meu último texto, relatei o rolê que dei pelas
paragens de Passa Quatro, mas, dados os preços desumanos dos hotéis para
mochileiros cox... motorizados, fiquei hospedado lá perto, um pouco mais alto
na serra da Mantiqueira, no hotel da Nilce (Thomaz). É a cidade de Itamonte.
O nome Itamonte é uma daquelas misturas que revelam a
imbricação de culturas, tão comuns nos neologismos, quando aglutinamos radicais
de origens diversas. No caso, temos a justaposição dos termos ita, de origem tupi, e que significa
pedra, com o termo monte, que
significa monte mesmo. Ou, sendo mais rigoroso, vem do latim mons, que significa uma massa mais
elevada em relação ao nível médio do terreno. No final, Itamonte quer dizer
“monte de pedra”, e é isso mesmo, porque estamos em uma coleção infinita de
sobe-e-desce. Apesar disso, a área urbana da cidade se estende ao lado da
rodovia, onde corre em região plana, repleta de bicicletas e pastelarias, com
algumas casas de artesanato de palha.
Dentre os cestos, tapetes, baús e descansos de panela,
encontram-se artigos feitos de outros materiais, como as poltronas de bambu, os
enfeites de madeira, as bonecas de bucha e as cuias de cabaça. Ou mesmo
expressões menos utilitárias e mais livres do artesão, que tem uma ideia na
cabeça e uma cabaça na mão, e vê um dinossauro à sua frente. Este é o Nuno, que
poucas modificações sofreu para ser personificado.
Na elevação onde se situa a cidade antiga, fica localizada a
tradicional igrejona, que, na verdade, não é a original, como se pode perceber
pela sua incomum forma ogival. É a paróquia de São José de Itamonte, antiga São
José do Picu, que, aliás, era o nome da cidade. A igreja original tinha aquele
visual barroco típico, mas que hoje é só uma placa memorial na porta da atual.
Pena.
Falei do Picu. É o ponto mais identificado com Itamonte,
algo como um Cristo Redentor para o Rio de Janeiro. Trata-se de uma pedra
enorme, que servia de referência para os tropeiros que se encaminhavam do porto
de Paraty para o interior de Minas Gerais, e que se assemelhava a uma barbatana
de tubarão no dorso da serra.
A pedra do Picu fica próxima à entrada da Serra do Itatiaia,
que fica na tríplice divisa dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
Gerais, e que engloba um dos pontos culminantes do Sudeste, o pico das Agulhas
Negras. O próprio Picu é bastante alto, ficando a mais de 2100 metros de
altitude. Uma névoa seca em dias muito quentes dá a ele uma visão nublada,
mesmo sem uma única nuvem no céu.
Há duas maneiras para se chegar ao Picu. Uma delas, a
vertente sul, é para alpinistas. Já a estrada da Capelinha permite se chegar
bem mais perto de carro, mas estávamos em dias secos, e o poeirão da estrada
pôs as rodas do pobre e valente Bedelho a patinar, de modo que, em uma ladeira
mais íngreme, ficou impossível de prosseguir.
O jeito foi encostar o carro e continuar a pé. Observando
nossa desventura, o seo Orlando,
agricultor da região, sugeriu que avançássemos por dentro das fazendas. Se a
subida era mais pesada, por outro lado era mais curta e bonita. Além disso,
havia um riacho no meio do caminho para refrescar a nuca, e ainda ofereceu
leite tirado na hora...
... o que, educadamente, mas sem perda de um segundo, recusei de bate-pronto. Não mamei
nem na minha mãe, que fará na vaca! Mas a patroa gosta de leite, e fez as vezes
da casa com prazer, lançando mão de uma garrafinha d’água arrolada em nosso
patrimônio.
A trilha para o Picu não é das mais complexas, só é difícil
de achar, pelo menos pela rota do seo
Orlando. Perdida em meio a pastos e “calipais”, a picada por vezes não se
forma, fazendo a caminhada virar um jogo de adivinhação. Entretanto, estou de
férias, e tentativa e erro fazem parte da brincadeira.
O caminho é composto pela transposição de um morro que se
encerra em um riacho, para depois começar a subida pela vertente que dá na
Pedra do Picu. À medida que se aproxima do riacho, a mata ciliar vai se
adensando, de modo que, no interior do mesmo, quase não se vê o céu. É a melhor
oportunidade para se ensopar inteiro, bem como engolir alguns litros de água, o
que fizemos. Isso porque o morro do Picu é pelado, tem ângulo desafiador e não
é pertinho, não.
É um trajeto curioso. Passado o riacho, aquela pequena
protuberância que se via ao longe surge imponente e onipresente. E dá-lhe
andar. A caminhada morro acima parece fazer tudo ficar mais longe...
... mas que oferece uma bela vista panorâmica. Burramente,
tirei poucas fotos do lugar.
Itamonte possui um circuito denominado “Volta dos 80”, que
consiste em 80 Km de estradas rurais que ladeiam parques e reservas ambientais.
Além da Serra do Picu e do Itatiaia, já citados, também faz parte do município
a Serra do Papagaio, outro remanescente de Mata Atlântica protegido pelos
órgãos de meio ambiente.
Nas suas fraldas, encontramos a Cachoeira do Escorrega, que
tem a presumível forma de um tobogã. Encostamos na porteira de propriedade do seo José Lino, bom de papo, e de lá
descemos para o acidente geográfico.
Ela fica em um dos braços do rio Capivari, que tem suas
nascentes nas partes altas serranas, e vem serpenteando por vales e gargantas
até chegar neste recanto.
Trata-se da água mais gelada que eu já tateei na minha vida.
Cinco minutos de banho são suficientes para o corpo ficar todo adormecido,
dando uma pálida ideia do que acontece com aqueles russos loucos que gostam de
nadar nas lagoas geladas com a cara cheia de vodka. Os pezinhos da patroa,
inclusive, ficaram bem vermelhos após a clássica selfie bípede.
Água gelada, porém cristalina. Passado o escorregador e o
pequeno bolsão, a água retoma seu curso morro abaixo, formando novas quedas d’água.
Há ainda no mesmo pedaço a Usina dos Bragas, pequena
hidrelétrica desativada, que até a década de 70 forneceu energia elétrica para
Itamonte e cidades circunvizinhas. Seu lago artificial permanece lá, sendo que
as comportas são abertas eventualmente, por ocasião das cheias de verão.
Cerca de 80% da área de Itamonte é composta por reservas
ambientais. Estamos em um local de alto interesse ecológico, e que luta para
manter suas características intactas, ainda que a custo de um desenvolvimento
econômico mais lento. Mas é o que resta a fazer após séculos de exploração
impensada, e de devastação das florestas nativas para fins de expansão da
agropecuária e da instalação das cidades. Pode parecer incrível, mas cidades
como São Paulo e toda a região metropolitana eram muito semelhantes ao que
podemos enxergar nestas paisagens. Afinal de contas, faziam parte de um mesmo
sistema geográfico, hoje quase inteiramente degradado: a Mata Atlântica, que
recobria todo o litoral brasileiro e penetrava pelo interior do país. É um
bioma do tipo Floresta tropical, com alto índice de espécies endêmicas, dada a
variação física e climática da área que abrange, incluindo regiões costeiras
que se estendem do Nordeste brasileiro até o litoral argentino. Por mais
ambíguo que possa parecer, é no Sudeste que a Mata Atlântica se encontra mais
bem conservada, especialmente no estado de São Paulo. Mas não se iludam. Não se
trata de consciência biológica, mas dificuldade na utilização de terrenos
extremamente íngremes, como são os paredões serranos.
O resultado é que os remanescentes de Mata Atlântica são
bastante fragmentados e há grandes faixas de isolamento entre si. Desta forma, a
área de ocorrência de determinadas espécies fica terrivelmente reduzida, e os
acasalamentos passam a se tornar cada vez mais endogâmicos, o que é
perigosíssimo para elas. O que explica isso é que a falta de variabilidade
genética faz com que as espécies se exponham a circunstâncias que podem até
mesmo dizimá-las. É o que se chama de homozigose. Vou explicar melhor isso.
Não é preciso nem falar que os filhos se parecem com os
pais, não é verdade? Os olhos de um, o queixo de outro, e assim vai, numa
mistura que reproduz o acervo genotípico de cada um dos ascendentes, em maior
ou menor proporção. Mas não é só nos caracteres externos que os filhos “puxam”
os pais. O funcionamento todo do organismo pode ser influenciado
hereditariamente. Minha família, por exemplo, tem um longo histórico de doenças
cardíacas. Minha bisavó tinha, minha avó tinha, minha mãe tinha. E eu, batata,
fiquei sabendo no mês passado que algo não vai bem. Claro que não há como
isentar a dieta tipicamente mediterrânea de suas culpas, mas o fato é que há
algo geneticamente transmitido que nos estraga a maquininha. Já o lado da
patroa é composto por atletas, que mantém o coração batendo mesmo após a morte.
Exageros à parte, os registros de problemas do coração do lado dela são raros.
Desta forma, o produto de nossas brincadeiras tem a chance de herdar um coração
melhorzinho pelo lado da mãe. Se eu tivesse filhos com uma prima, a chance de
transmitir o defeito de fabricação seria dramaticamente maior. Uma das
explicações do tabu relacionado ao incesto parece, inclusive, ser uma reação
atávica à homozigose, um arquétipo inscrito no inconsciente coletivo, como imagina Jung. Essas são as peripécias da genética.
O mesmo se aplica na natureza como um todo. Quando uma
espécie qualquer fica restrita a uma área muito pequena, os cruzamentos
endogâmicos são os mais frequentes, e a variabilidade genética é muito baixa.
Se a espécie for atacada por alguma bactéria que se mutacionou de forma a lhe
causar grande prejuízo, e sendo todos os indivíduos muito semelhantes, é
possível que naquele microambiente toda ela seja extinta. Caso haja mais
variedade, uma boa parte dos indivíduos será resistente ao patógeno, e a
espécie sai fortalecida.
É por isso, e não por um capricho sentimentalóide, que é
importante fazer com que esses diferentes fragmentos se comuniquem. Poder-se-ia
dizer que bastaria transferir indivíduos de um polo para o outro que o problema
estaria resolvido. Claro que a coisa não se resolve com um passe de mágica
assim. A adaptação de diferentes espécies nem sempre é fácil de entender. Pode
ser que uma espécie esteja mais adaptada à alta umidade e salinidade do ambiente
costeiro, e afastá-la desse habitat, sob a mera alegação de que a cobertura
vegetal de um local mais interiorizado é idêntica, pode ser fatal. O melhor é
que a própria espécie se transfira de um local para outro por conta própria,
através de várias gerações, se necessário.
Os reducionistas de plantão dirão que o melhor é derrubar as
cidades e todo mundo meter uma tanga de índio, esperando que a vegetação retome
seu local original. Em termos de natureza, seria o ideal. Mas não queremos
abrir mão de nossas cidades, como se fossem um fantasma que assombra nossa
sobrevivência. Como manejar a floresta, então?
A solução mais razoável são os corredores biológicos, porque
as criações de parques e reservas, apesar de serem boas ideias, não resolvem o
problema da homozigose. Estes corredores são caminhos que interligam os polos
isolados de um determinado ecossistema, de modo a permitir a passagem dos
animais entre eles sem a necessidade de transpor obstáculos construídos, como
estradas e povoações. Essa ideia não é nova, e é possível observar no mapa que
alguns deles já estão naturalmente projetados:
Um desses corredores ligaria a região de Campos do Jordão ao
Parque Nacional do Itatiaia, seguindo aproximadamente a rota da via Dutra,
ladeando a divisa entre São Paulo e Minas Gerais. É uma região da Serra da
Mantiqueira onde há incontáveis fragmentos de floresta original, e que estão
relativamente próximos um do outro.
Em tese, seria uma ligação razoavelmente simples, sem
grandes obras humanas a serem superadas. A mão do homem está mais visível nas
plantações e nos pastos, o que, por força de lei, de indenizações ou da
conscientização dos proprietários rurais, possibilitaria a reserva de uma faixa
de terreno adequada ao trânsito animal. O problema maior é quando há uma
rodovia de grande circulação no meio do caminho, como a mesma Dutra retro
mencionada. Ela é o principal óbice para a ligação entre dois ecossistemas
gigantescos, a Serra da Mantiqueira e a Serra do Mar, que poderia ser feita
entre o Itatiaia e a Serra da Bocaina, mais ou menos no ponto abaixo:
Como essa ligação seria possível, eu não sei. Só consigo
pensar em um aprofundamento na via, de modo que, sobre esse túnel, deixasse-se
florescer novamente a vegetação nativa. Não sei a viabilidade técnica, o custo
de tal obra, a dimensão necessária para que a passagem seja eficaz e nem se
seria necessário fazer outros pontos de ligação, o que, olhando para os mapas
acima, não parece muito fácil. É preciso ainda atenuar os pontos de pressão
antrópica, como o excesso de ruídos e luminosidade, além dos riscos de
atropelamento e caça. Tudo isso é complexo demais, reconheço.
Mais importante do que tudo isso, no entanto, é pensar em
como se chegou a esse ponto, em que qualquer solução se volta à atenuação do
problema, e não à solução. E, ainda mais levando em conta que está na moda
resistir às evidências de que enfrentamos um processo de aquecimento global,
muitas vezes percebemos que há uma deficiência na percepção de que teremos
problemas no futuro. As teses do sociólogo britânico Anthony Giddens podem
trazer um pouco de luz ao assunto.
Giddens lê a modernidade como um processo de desconexão
entre tempo e espaço percebidos e reais. Isso significa que, antes dos dias
atuais, a humanidade traduzia seus tempos através de seus espaços, e é muito
simples de entender isso se pensarmos no dia-a-dia de um camponês e compará-lo
com o de um trabalhador urbano. Pensando no trabalho da terra, vemos o
agricultor que acorda com o raiar do dia, pelo cantar das cigarras ou pelas
estridências de um galo. Seu trabalho é executado até o momento em que sente o
sol a pino sobre sua cabeça, e ele já sabe que é hora da pausa para o almoço.
Retoma suas tarefas até o entardecer, quando se recolher à casa novamente. Lá,
já escuro, senta-se à beira de seu alpendre e lá fica, jogando conversa fora,
até que sente sono, e este é o indicativo de que chegou o instante de ir
dormir, para retomar seu ciclo novamente no dia seguinte. Ele reconhece a
altura e a tonalidade das nuvens para saber se haverá chuva ou não, ou observa o
voejar baixo das aves para a mesma coisa. Sabe quando é tempo de plantar e de
colher observando a maturação das culturas; aliás, sabe o que plantar e o que
vai colher. Todo o seu tempo se baseia no fluxo das mudanças espaciais que
ocorrem ao seu redor, seja no imediatismo do quotidiano, seja no tempo
estendido das estações do ano. Enfim, há um forte vínculo entre o tempo real e
o tempo percebido, porque há toda uma espacialidade a lhe guiar.
Já o trabalhador urbano tem muito menos elementos espaciais
a lhe orientar. Sim, ele tem um espaço que o cerca: a fábrica ou o escritório,
que o isola do contato com o mundo e que não tem grande significado em sua
atividade. Para ele, o importante é o relógio e o calendário. Há um despertador
que o acorda no momento exato, para chegar antes do apito em seu posto de
trabalho. Suas interrupções no expediente tem a precisão de sua vaga no
refeitório, já não importando se há chuva, se há sol, neve, granizo, eclipse ou
apocalipse. O mesmo apito lhe indica o fim da jornada. Sua sazonalidade se
baseia nas previsões de férias, feriados e dias santos. Nada que lhe pauta as
divisões do tempo tem um casamento sólido com a natureza, ou mesmo com o espaço
artificial que lhe rodeia. É o só o tic-tac do relógio, sempre igual, que diz
os momentos em que as coisas podem ou devem ser feitas.
Isso tudo nos dá a noção de que a modernidade tardia exige
uma precisão que a natureza não tem. Pensando em um fruto deixado à própria
sorte, e deixando de lado a hipótese do bicho em seu interior, não há como
garantir peso, tamanho e padrão de sabor. Isso é obtido à custa de uma
desnaturação no processo de produção que, embora seja muito eficiente, afasta
as características individuais do produto final.
Essa é uma indicação simplificada de um desencaixe entre o
tempo e o espaço, mas a teoria de Giddens é mais profunda. Há dois mecanismos
em que se dá essa espécie de assincronismo: os sistemas peritos e as fichas
simbólicas. Esmiucemo-los.
Imagine uma criançada jogando bola na rua. Com exceção de
algumas poucas regras fundamentais, tudo ali é feito na base do improviso. A
rua pode ser de terra, asfalto ou paralelepípedo. As balizas, demarcadas com
pedras, garrafas ou chinelos. Pode ou não haver carros estacionados, aumentando
a necessidade de drible. Os limites do campo são os muros das casas, e não há
um cronômetro para quantificar o tamanho das partidas, que são delineadas pela
quantidade de gols: 5 vira, 10 acaba, em sua configuração mais usual. Acabando
o jogo, começa outro, até anoitecer, começar a chover ou a mãe chamar. Tudo é
regido pelas contingências.
Agora pense em um jogo formal, valendo por um campeonato
qualquer. A partida é realizada em um campo com medidas oficiais, em dois
tempos de 45 minutos cada um mais acréscimos. São onze jogadores para cada
lado, com um árbitro e dois bandeirinhas a aplicar as 17 regras que regem os
movimentos, estabelecidas por um órgão legislativo e adotadas por uma federação
internacional. O espaço é cercado por arquibancadas e tribunas onde os
torcedores se acomodam. Chegam lá após adquirir um ingresso na bilheteria e
passar por uma catraca vigiada pela polícia, e por entre eles circulam os
vendedores de guloseimas e quinquilharias. Outros elementos podem estar
presentes, como os repórteres de campo e os locutores devidamente alocados em suas
cabines, uma ambulância para emergências, um placar, lanchonetes. Ao fim, os
pontos obtidos vão para a tabela engendrada pela federação que organiza o
campeonato. Tudo tem sua hora e seu lugar certo, de maneira devidamente
projetada e adequada para a prática desportiva.
Vejam o aumento de complexidade e diminuição de
espontaneidade que há entre os dois casos. No estádio onde se realiza a partida
formal há uma quantidade enorme de funções especializadas que são simplesmente
desnecessárias na pelada, e que existem porque confiamos a alguém a tarefa de
organizar um campeonato, de treinar um escrete, de controlar uma multidão, de
transmitir o jogo para todo o território nacional, coisas que não
conseguiríamos fazer no prélio entre a rua de cima e a rua de baixo. Isso é um sistema perito, que existem aos montes:
bancos, jornais, fazendas, sistema viário. Eles existem por conta da confiança
que temos em especialistas de construírem espaços adequados ao convívio. O desencaixe
que ele proporciona diz respeito à impessoalidade destes especialistas.
Simplesmente não sabemos quem são, mas acreditamos que são capazes de produzir
o que produzem.
O outro mecanismo é o das fichas simbólicas. Vamos pegar o exemplo do estádio e nos limitar a
um único elemento: o ingresso. A partir do momento em que você adquire a
papeleta, importa apenas que você garantiu o direito de entrar no estádio e
assistir à contenda. Não importa se você é grego ou troiano, homem ou mulher,
comunista ou monarquista, judeu ou budista, gordo ou faminto, José ou João,
garantista ou legalista, Beatles ou Rolling Stones, alfa ou ômega, trans ou
cis, Jambo ou Ruivão, feijão ou arroz. O máximo que poderá fazer diferença é a
camisa do seu time. De resto, você não será nada mais que o portador de um
ingresso, sem levar em conta nenhuma individualidade sua, ou seja, uma ficha
simbólica, um objeto de representação desligado do indivíduo, e que é simbólica
porque representa algo concreto, como a sua vaga na arquibancada, mas sem
representar a você mesmo, o ocupante da vaga. A mais bem definida ficha
simbólica é o dinheiro, mas há outras, como o voto ou os endereços postais.
Esses mecanismos de desencaixe dão toda a base para as teses
de Giddens, inclusive a explicação que ele dá para as crises ambientais. Ele as
coloca na forma de paradoxo – apesar de saber que, a longo prazo, o modo de
vida moderno causará danos irreparáveis ao planeta, que invariavelmente
recairão sobre a sociedade como um tudo e a cada indivíduo como reflexo, os
homens continuam a predar o meio ambiente. Por que?
O exemplo maior vem do aquecimento global. A principal
hipótese da interferência humana diz respeito à soma entre desmatamento e
emissão de poluentes do efeito estufa. Tanto um quanto outro estão amarrados à
produção, que supre de elementos materiais a estrutura de vida da população: a
verdura vem de área desmatada, o carro vem de fábrica poluidora, e ele mesmo
também polui. Como há o desencaixe, o homem moderno não tem mais noção exata do
que se perde ao agredir sistematicamente a natureza. É como um jovem que se
droga hoje, mesmo sabendo que isso pode encurtar sua vida. Em um processo
psicológico semelhante à descontinuidade da mente (ou até mesmo por ele),
o tal moço não se projeta na velhice, e faz sua besteira assim mesmo. Ainda que
não se acredite que o aquecimento global seja antrópico, a agressão ao meio
ambiente continua a ser prejudicial. E o paradoxo se resolve pelo fato de que a
humanidade reluta em abandonar seu conforto ou diminuir seus ganhos – o pensamento
se torna imediatista, como o do operário que vê sair da sua máquina uma peça
pronta, e não como o lavrador, para quem o legume na mesa é um processo longo,
dependente de uma pilha de acontecimentos naturais.
Se os corredores saírem do papel e forem bem sucedidos,
existe alguma esperança de que as pessoas se convençam da importância da
preservação ambiental. Há uma desconfiança muito grande com políticas públicas
no Brasil, por motivos mais que justificáveis. Mas há trabalhos que merecem ser
vistos, como o que recomendo abaixo. Eu mesmo me animei bastante ao lê-lo. E
talvez as pessoas se comovam pela imagem simples que vi em Itamonte, do tucano
que vem com uma fruta no enorme bico, que lhe aparenta tirar toda a aerodinâmica,
desafiando a Física, mas que ainda assim o faz, talvez para alimentar seus
filhotes. E ter a dimensão de que a natureza não está nos sistemas peritos da
TV ou do zoológico, mas no seu próprio dia-a-dia, ainda que a quilômetros de
distância. Quem de nós, sem nenhuma conotação política, já viu um tucano da
janela lateral do quarto de dormir? Mas eles existem e importam.
Recomendações de leitura:
Anthony Giddens é um sociólogo ainda vivo, por isso é bom
ficar atento com sua produção intelectual, porque ainda podem surgir novidades.
Seus conceitos de modernidade tardia estão bem expostos no seguinte livro:
GIDDENS, Anthony. As
consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.
Para se sentir tocado por uma causa, é preciso saber o que
vem sendo proposto pelos órgãos públicos para a questão ambiental. Muito embora
o atual detentor do poder não seja dado a preocupações com plantinhas,
bichinhos e indiozinhos, há trabalhos de fôlego realizados alguns anos atrás.
No endereço abaixo, temos o resultado de uma pesquisa que me enche de orgulho
pela sua qualidade, até mesmo como peça de leitura, e que comprova que o
trabalho do funcionário público é estigmatizado. Leiam porque é essencial:
A versão em livro é:
AYRES, José Márcio et al. Os corredores ecológicos das florestas tropicais do Brasil. Belém:
SCM, 2005.
Os mapas utilizados neste post foram extraídos do Google Maps.
Nenhum comentário:
Postar um comentário