Olá!
Alguém por aqui já comeu cambuquira? Trata-se de um uso
tipicamente mineiro, e que consiste no cozimento de brotos de legumes,
notadamente a abóbora, mas que por vezes também tem como objeto o chuchu (Xuxu?
Chuxu? Xuchu?), a abobrinha e o pepino. E é também o nome da cidade cuja visita
passo a relatar neste momento.
Cambuquira, em tupi-guarani (caá-ambykyra), significa algo como erva jovem, que é uma tradução
livre para broto. Ainda tenros, eles são molinhos, ficando parecidos com um
refogado de couve após o preparo. Essa iguaria dá nome à cidade, mas não se
sabe ao certo se o motivo é a sua profusão na região ou se se trata de um
antigo senhor de escravos que guardava essa alcunha, em razão de sua
preferência gastronômica. O fato é que um dos seus principais atrativos é outra
característica culinária – a produção de doces. Há uma fábrica muito famosa no
local, que produz a batida, uma espécie de rapadura já moída, que fica
enclausurada em uma palha de milho.
Essa pode ser a vedete, mas tudo o que se pensar em termos
de doces de leite e de frutas está disponível para os candidatos a engorda, o
que é um autêntico drama para nós, diabéticos, como já havia falado neste antiquíssimo post. Sim, há algumas coisas sem açúcar, para meu gáudio e
proveito.
A igreja matriz da cidade é dedicada a São Sebastião, e foi
construída no alto de um outeiro, como é comum de ocorrer. Os algarismos
romanos acima de sua porta denunciam o ano de sua fundação: 1920.
Em seu interior, os fundos do altar-mor são a sede da imagem
do padroeiro, um antigo soldado romano dos primeiros séculos, que resolveu
sucumbir ao invés de renegar sua fé. Eu não teria essa coragem. Ao seu lado, a
dupla de beatos regionais: o padre Victor e a Nhá Chica.
Do lado de fora, no adro onde foi erigida a antiga capela do
município (infelizmente demolida), há um grande pátio em que se pode observar a
homenagem a uma benemérita local. Trata-se da irmã Laura Motta, que dedicou seus
dias à população mais pobre, e que levou para lá o conceito de Alcoólicos
Anônimos, para tentar tirar a turma do funil de suas respectivas desgraças.
Em Cambuquira, novamente encontramos os Parques de Águas,
que acabam por se constituir no principal atrativo do lugar. Esta cidade,
aliás, se orgulha de ter sido premiada com a segunda melhor água mineral do
mundo pela revista VIP Exame. É um parque bem arrumadinho, que tem seu jeitão
de praça interiorana.
Além dos chafarizes, há espelhos d’água e antigos
equipamentos de medição e controle, com muitas árvores e pontos de descanso
espalhados por todo o parque, fazendo-o ideal para momentos reflexivos, tão
caros a quem gosta de dar tratos à bola, como eu.
Mais equipado que o de Lambari, o parque de Cambuquira
possui um balneário, denominado Spa das Águas, onde são praticadas atividades
de hidroterapia, relaxamento, sauna, banhos termais, talassoterapia e outras
benesses da crenologia, que já dei uma pintadinha neste texto aqui.
Também diferentemente do que se vê em Lambari, que concentra
todas as suas águas em um mesmo quiosque, o que temos aqui é a individualização
de todas as fontes, divididas pela sua composição química. Ao todo, no parque
maior, são cinco as águas oferecidas: férrea (seca no dia), gasosa, sulfurosa
(em reforma), magnesiana e a Roxo Rodrigues, gasosa fraca que é a mais antiga
do parque.
A lagoa do parque, aparentemente, é bom lugar para pesca, já
que vi uns peixes bem robustos nadejando para lá e para cá. Só não sei se é
lícito ou não. No fundo, isso não me importa, porque meu gosto pela pescaria é
inversamente proporcional ao prazer na degustação dos escamosos acepipes. Acho
o lago suficiente para ter uns barquinhos, e não sei se nos fins de semana eles
são disponibilizados ou não. A conferir.
Outra coisa muito interessante no parque é uma gigantesca
figueira que fica no meio do caminho entre as fontes e a piscina de água
mineral, provavelmente o ponto mais frequentado de todo o parque (pelo menos é
o mais barulhento, dada a quantidade considerável de crianças). É daquelas
árvores que demonstram como a natureza pode vencer a obra humana, com suas
raízes arrebentando todo o cimentado ao redor. Dizem que elas são proporcionais
ao tamanho da ramagem, o que me gera uma imagem mental impressionante. A
solução, no caso, é dar espaço à expansão das necessidades do vegetal, como foi
feito lá.
Cambuquira possui um segundo parque, bem menor, chamado
Marimbeiros, no distrito de mesmo nome, e que fica bem à beira da estrada que liga
a Lambari. Dizem se tratar de região histórica, porque é para lá que os negros
libertos do núcleo urbano foram enviados após a abolição.
Até mesmo por seu tamanho mais acanhado, seus visitantes são
mais os locais e aqueles que esperam por aquela água em específico, já que a
variedade é bem menor. Há um único quiosque onde são concentradas seis bicas de
água ferruginosa, um tanto desagradáveis ao primeiro gole, mas plenamente
suportáveis, ainda mais para quem tem anemia.
Quase na saída da cidade, uma casa se destaca na paisagem. E
não é uma casa comum, com uma atividade qualquer. É o Antiquário Presente
Passado, algo que eu não esperaria encontrar em uma pequena localidade do
interior mineiro. Este é o seu aspecto externo:
Já era cair da tarde, mas o estabelecimento ainda estava
aberto. Como há um bom café sendo servido como negócio paralelo, fui secar
algumas xícaras, enquanto dava um volteio pelas antiguidades. Há muitos móveis,
alguns abajures, uma prateleira cheia de quinquilharias, peças de porcelana e
coisas para remexer nossos baús interiores, como máquinas de escrever e
rotuladoras, dinossauros hodiernos que eram tão típicos de nossos escritórios.
Mas há sempre algo que nos chama uma atenção a mais. A
patroa estava enlouquecida com uma luminária absolutamente intransportável no
pobre Bedelho, um carro pouco mais do que popular, para o bem do orçamento. Da
minha parte, vidrei em um grande troféu, daqueles clássicos, lindos, feito de
latão martelado e muito antigo. Na sua inscrição, a referência ao que
representava: Festival do SPR –
Corinthians vs. SPR – 30/12/1928.
Era certamente um dos muitos torneios amistosos disputados
pelos clubes paulistas em priscas eras, quando ainda não existiam competições
em nível nacional. Não resisti à tentação de assuntar com o dono da loja sobre
o objeto. Ele opinou se tratar de um jogo entre Corinthians e Santos, mas acho
que há algum engano. A inscrição na taça é clara: SPR. Trata-se do São Paulo
Railway, time dos ferroviários da Barra Funda, que deu origem ao ainda hoje
resistente Nacional A. C. (que recordei nestas mal digitadas linhas). De
qualquer forma, é uma peça raríssima, e resolvi arriscar a pergunta fatal:
Quanto você quer nela? De repente, dá para fazer um esforço, pagar parcelado,
revender para um dos clubes envolvidos... Afinal, é coisa digna de fazer parte
de um museu, talvez até mesmo da Federação Paulista. Como estou em Minas,
talvez não se tenha dimensão exata do que este objeto representa...
Quinze mil. Quinze mil cédulas de dinheiros tupiniquins
empilhadas uma sobre a outra. Não dá para alguém da minha classe social
dispender quinze mil golpistas em uma peça para colocar na sala 3 X 3, tomando
o lugar do aquário. O dono da loja entende do riscado e dá provas da minha
ingenuidade. E aí o que era um objeto admirável vira um armatoste inaproveitável: o que era belo, vira velharia; o que era
uma conquista, vira um montoeiro de metal mal batido; o que era um símbolo, se
converte em seu material concreto e nada mais. Nada que valha o que eu não
tenho – quinze mil pratas.
É o tipo do valor em que você nem se anima em usar técnicas
judaico-otomanas de negociação, porque ainda que se consiga chegar a um
abatimento de 80%, três pilas ainda é muita grana. É o que eu disse: há um
valor X em que há uma inflexão. Você deixa de ver a representação do objeto e
passa a considerar apenas o aspecto concreto. Se estivesse sobejando, talvez eu
pensasse diferente. O que será, afinal, que faz com que um símbolo represente
tanto para nós, caniços pensantes?
Já falei sobre os símbolos neste e neste texto,
escritos em tempos imemoriais, mas era época em que eu escrevia ainda mais
superficialmente, então acho que dá para aprofundar. Percebam como os símbolos
estão tão presentes em nossas vidas, como o ar que respiramos e não nos damos
conta. É um processo que se inicia com o nascimento, quando conversamos com
nossos bebês e esperamos ansiosamente que eles nos reconheçam e nos lancem seus
primeiros gu-gu-dá-dás. Lentamente, o processo simbólico dá ao neo-humano uma
característica que lhe individualiza como espécie no reino animal: a palavra.
Os dispositivos da linguagem podem até fazer algum sentido para os demais
animais, mas sempre se relacionando diretamente ao concreto. É só no humano que
temos a abstração da abstração e o símbolo dentro do símbolo. Um exemplo: estou
vestido com uma camisa de time, o Corinthians retro citado. Ela possui cores e
um brasão peculiar, que lhe identificam. Só que esse brasão é composto por uma
série de outros elementos simbólicos, como a bandeira do estado de São Paulo,
que dentro de si tem outros símbolos, como o mapa do Brasil, cujo nome por sua
vez é também um símbolo, já que o país poderia ter qualquer outro nome (até
mesmo Argentina).
O que é um símbolo, portanto? Em uma tradução mais ou menos
livre, a palavra significa “aquilo que ajunta”. É curioso, mas seu oposto é
diabolo, “aquilo que separa”. Isso mesmo, o tinhoso, cramunhão, capiroto, Pero
Botelho e tantas outras designações. O que é juntado no símbolo? Um significado
abstrato a uma realidade concreta, sendo possível substituí-la em uma relação,
assim como o pronome toma o lugar do substantivo para possibilitar uma melhor
expressão. Nesse sentido, é uma espécie de transcendência do que algo é em si
mesmo para se apresentar ao outro. É o caso típico da linguagem. Há uma ideia,
um pensamento ou um sentimento que precisa ser transmitido, exatamente como
estou fazendo agora. Lanço mão de um código quer permite a mim a expressão e a
quem me lê a compreensão. Tudo isso é conseguido por intermédio de símbolos. No
caso, a junção de letras.
Somos animais simbólicos. Ele é tão intrínseco a nós que não
podemos nos dimensionar fora desse modelo de pensar. É o que diz Ernst
Cassirer, o maior expoente da Escola de Marburgo, corrente alemã que traz à
tona novamente a epistemologia de Immanuel Kant, de quem já tratei neste post. Reciclando rapidamente, Kant diz que existe uma diferença entre as
coisas como são em si mesmas e como as percebemos, já que cada um de nós tem
sua própria maneira de processar a razão.
Nunca se poderá, segundo o alemão, ter a exata noção de como a razão de
uma pessoa interpretará o objeto colocado à sua frente: a pessoa terá para si apenas a sua própria
representação do objeto. Essa “coisa-em-si-mesma” é o noumeno, e sua representação é o fenômeno.
Resgatados estes pontos, vamos entender o que Cassirer lhes
acresce. Kant, tendo por princípio que todo conhecimento possível é fenomênico
(já que não se pode conhecer os objetos em si mesmos), é só na Ciência que o
podemos ter, porque é através dela que se pode fundear uma matematização dos
fenômenos, o que fornece algo imprescindível ao saber seguro: a objetividade.
As leis científicas, no geral, e a mecânica newtoniana como seu grande avatar,
são, portanto, provedoras de conhecimento universal e necessário, válido em
qualquer tempo e qualquer lugar.
A novidade em Cassirer está justamente na questão da
objetividade. Segundo ele, a Ciência é uma forma simbólica como qualquer outra.
É bem verdade que certos fenômenos podem ser bem representados por fórmulas,
mas alguns deles são puramente abstratos. Por exemplo, quando falamos em
energia, podemos pensar em várias coisas. Podemos pensar em uma pilha, mas ela
é um meio de armazenamento, e não a energia em si. Podemos pensar em um raio,
mas ele é o rastro deixado pela radiação de uma força, e não a energia em si.
Podemos pensar em um objeto que se avermelha ao extremo, mas essa é uma reação
física à aplicação de uma energia, e não a energia em si. Podemos pensar em um
átomo, mas ele representa a dinâmica da interação entre várias energias, e não
a energia em si. Tudo isso são apenas representações, não são a coisa-em-si. O
mesmo pode se aplicar a tantos outros conceitos científicos, como a massa, a
gravidade, a força nuclear, o magnetismo, o tempo, o espaço... A Ciência é,
assim, mais uma formação simbólica. E, se esta é o que de mais objetivo podemos
ter, quanto mais não são prenhes de simbolismo as demais áreas do conhecimento
humano. Desta forma, Cassirer conclui que o noumeno
nunca é atingido unicamente por causa da variabilidade da razão humana, mas
também por estar completamente revestido de símbolos.
Dá a impressão de que Cassirer nos deixa pelados no meio da
neve, ao relegar a única objetividade possível da Ciência às teóricas
volatilidades de conhecimentos que admitem ainda mais o símbolo, mas é
exatamente nisso que está seu pulo do gato, as formas simbólicas. E o que são
elas?
Forma simbólica é o vínculo intelectual entre o conteúdo de
um significado e um signo sensível concreto. O próprio Cassirer diz que a
“cola” que prende um signo a um significado depende de uma “energia espiritual”
que nada tem a ver com transcendência religiosa, ou seja, a maneira com a qual
uma pessoa liga os sentidos possíveis de uma relação signo-significado. Isso
indica que o sujeito não é passivo nesta relação, e ele tem a capacidade
natural de lidar com simbolizações. Cassirer também dá três exemplos dessas
formas: a linguagem, o mito/religião e a arte. Todos são constructos
espontâneos humanos, derivados da impossibilidade de acesso direto à realidade.
Ocorre que, assim como eu sou capaz de articular com símbolos, também outras
pessoas o são, o que permite a edificação de uma interpessoalidade no reconhecimento
do plano simbólico. Como a relação do homem com o mundo é mediada por símbolos,
é meio óbvio que todos o façam e procurem estabelecer um comum acordo em sua
validade, e esse é o nascedouro da linguagem, da arte e dos mitos, e.g. Na
medida em que o homem é capaz de gerar significados, é capaz também de dar
sentido a coisas meramente conceituais, como o exemplo da energia, da massa et cetera que citei logo atrás. Logo, a Ciência não necessita de contraposição do
símbolo. Pelo contrário – é justamente ele que possibilita a Ciência.
E é isso. Não peguei o troféu, que, sendo conservador nesse
aspecto, acho a forma mais legal de todas: a taça. Desculpem-me aqueles que
curtem esses horrorosos troféus arte-moderna de hoje em dia, mas é a taça
tradicional que é imponente de verdade. Não peguei o troféu, deixe-o para quem
puder pagar e que continue a constituir o que ele tem de mais robusto – seu
valor simbólico. Não peguei o troféu, mas peguei um bom café e uma boa
oportunidade de filosofar. Até a próxima.
Recomendações de leitura:
CASSIRER, Ernst. A
Filosofia das Formas Simbólicas. Vol. 1. A Linguagem. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
Quando estive em Cambuquira, encontrei um livrinho sobre a
cidade que não me furtei em comprar. É uma espécie de almanaque, que conta
histórias e curiosidades esparsas, o que permite leitura rápida e fragmentada
sem nenhuma espécie de prejuízo. Fica a dica.
VILHENA, Sueli L. Fonseca. Casos, Causos e Acasos de Cambuquira. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial – MG, s.d.
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