Viajante vai, viajante vem. Começamos o movimento de retorno a São Paulo a partir de Bananal (veja o relato aqui), mas com uma cidade ainda por visitar: São José do Barreiro. Depois de Queluz, Silveiras, Areias, Arapeí e da precitada, fizemos nosso pouso último nesta também pequena e também interessante cidade, que tem, a se distinguir das demais, um diálogo mais bem resolvido com a natureza que a cerca. É a cidade onde melhor se pratica o trekking na redondeza.
Começamos passando por uma povoação chamada Formoso, um
vilarejo perdido na mata, cuja principal atração é um clube de campo chamado de
“Clube dos 200”, transformado em hotel-fazenda. Esse mesmo clube é mantenedor
de boa parte de Formoso, inclusive das escadarias que dão acesso à igreja
local...
... que vem a ser esta aqui, dedicada a Sant’Ana:
Sim, também aqui temos o mesmo tipo de arquitetura de todas
as cidades visitadas e analisadas anteriormente, como o casario tipicamente
feito de taipa.
São José do Barreiro, no entanto, está um dedinho à frente
de suas vizinhas. É um dos poucos lugares onde encontramos culinária mais
típica, com muitos doces e produtos extraídos de suas abundantes águas. Para
dar um exemplo, encontramos um peixe de comer rezando no restaurante abaixo,
muito simples e bem servido.
Mais uma vez, a igreja principal da cidade tem o estilo
barroco tão característico da região e da época, muito parecida, aliás, com
várias das que podemos encontrar no centro de São Paulo...
... e com a consequente praça em extensão ao seu adro. Adivinha
o que tem lá? Isso, um coreto. E muitas, muitas flores.
Algumas obras arquitetônicas são exclusivas do lugar. Um dos
casos é o Cine Teatro São José, bastante diferente de tudo o que vimos por
aquelas bandas. Infelizmente, o equipamento não está sendo utilizado, mas dá
uma mostra de que também por lá foram vividos tempos de esplendor.
Outra exclusividade é o Cemitério dos Escravos, coisa muito
atípica. Tentando fazer uma transposição no tempo, é possível supor o quanto a
área era retirada em relação à área urbana. O primeiro obstáculo é uma pouco
convidativa escadaria...
... acompanhada pelo abandono, infelizmente. Todos os
túmulos estão em péssimo estado de conservação, devidamente profanados,
completamente tomado pelo mato, e não vi nenhum sinal de recuperação.
Lá conheci a Nicole, uma menina de seus 12 ou 13 anos que se
apresenta como guia da cidade, com o intuito de obter alguns trocados. Ela foi
esperta o suficiente para coletar alguns dados sobre o cemitério, e nos
informou que o local foi palco de algumas batalhas da Revolução
Constitucionalista de 1932. Mais tarde, pude verificar a veracidade da
história. Ligeira, a menina.
Mas, de um modo geral, tivemos uma certa frustração ao
constatar que, apesar de possuir um aparelhamento mais robusto em termos de
apoio ao turista, eles não estão, digamos assim, trabalhando como devem.
Exemplo peremptório: a casa de Turismo (belo prédio), lá no fundo à esquerda, estava fechada, tanto na
sexta-feira quanto no sábado!Estranho isso. Tenho falado neste espaço tão insistentemente
da necessidade de estruturação do turismo como alternativa válida para a
recuperação da região, e, quando o órgão existe, não funciona. Fica a dica para
os administradores de São José do Barreiro que por ventura venham a ler este
texto.
A Cleuza, dona da Pousada dos Guimarães, onde ficamos hospedados por lá, contou-nos um pouco deste tipo de deficiência: que o poder público quer, mas os guias informais são um pouco avessos à regulamentação. E a discussão continua. De qualquer forma, observei um sopro de alento. Bem ao lado da Câmara Municipal, está em fase final de acabamento a construção de um corredor cultural e de uma casa de artesanato. Espero que o turismo esteja na pauta de implantações.
Como sói acontecer quando há um entrecruzamento de recursos
hídricos e relevo acidentado, há muitas cascatas perdidas pelo meio das matas.
Abaixo, a trilha que conduz ao Cachoeirão do Formoso, bastante íngreme e
escorregadia:
Outra cachoeira na qual molhamos pés e bundas é a Cachoeira
da Mata, uma graça de lugar, bem típico da região, com a habitual água gelada e
leito recoberto de pedras (onde, inclusive, a cara-metade fez a mais importante
escoriação da viagem, uma bela torção no pé, que rendeu uma visita ao
pronto-socorro, já em Sampa).
Em todas estas cachoeiras, vemos a beleza do trabalho da
natureza. A erosão produzida pelas quedas d’água é responsável pela lenta
formação de piscinas naturais, mais ou menos profundas, de forma que a água
represada pode se prestar confortavelmente ao nado. São remansos tão calmos que
é possível levar crianças (com os devidos cuidados, evidentemente).
A abundância de água permitiu ao homem trabalhar a natureza
em seu proveito, e a represa do Funil é fonte de renda e subsistência para uma
significativa parte da população local, além do óbvio abastecimento à área
urbana.
Mesmo em casos singelos é possível notar o privilégio
natural e a maneira de lidar com ele. Vejam que interessante arco feito de
árvores e bambus localizado na rodovia dos Tropeiros, principal via de acesso
da cidade:
E também é legal a quantidade de libélulas e sapos no
pedaço, como o nosso cidadão noturno aí debaixo:
Mas a grande atração é o Parque Nacional da Serra da
Bocaina. Já falei, em meu texto sobre a cidade de Areias, sobre a sensação de
exiguidade do homem colocado diante do mundo, mas essa sensação é muito maior
no sobe e desce do acesso a ele. Li na internet que o pico do Tira Chapéu, em
suas proximidades, é o ponto mais alto do estado de São Paulo (sem considerar
as formações compartilhadas com Minas Gerais e Rio de Janeiro). Tudo o que eu
falei até agora sobre São José do Barreiro é visto em dobro nessa região:
cachoeiras, trilhas, rios. Tudo isso cercado por despenhadeiros admiráveis, e
serpenteados por uma estrada em processo de pavimentação.
Ao falar sobre o encontro entre homem e natureza, penso
imediatamente em Filosofia Ambiental, ramo recente, que tem o norueguês Arne
Naess como principal protagonista.
Protagonista, no caso, é a palavra exata. Naess foi um
ativista ecológico dos mais engajados, chegando, inclusive, a se acorrentar ao
Mardalfossen, uma cachoeira norueguesa que se encontrava ameaçada pela
construção de uma represa, além de ter sido aclamado presidente do Greenpeace na década de 80.
Arne Naess deu ao mundo o conceito de ecologia profunda, que ele desenvolveu a partir da leitura de uma
obra do escritor, naturalista e ex-guarda florestal estadunidense Aldo Leopold.
No livro Pensar como uma montanha, Naess
encontrou sua inspiração em uma passagem em que é descrita a caça a uma loba
nas montanhas, onde Leopold conta que, após atirar na mesma e correr ao seu
encontro, teve uma experiência inédita: ao encontrar o animal agonizante, ainda
conseguiu captar em seu olhar moribundo toda uma ligação entre si mesmo, o
ambiente e todos os seres que o compartilham. É como se ele, montanha e loba
estivessem ligados por um único laço, desmanchado agora, neste momento em que sua
intervenção desarma o equilíbrio antes existente e só posteriormente captado,
já tarde demais. É o que chamamos modernamente de insight.
Naess sentiu todo o drama de Leopold em si mesmo, e passou a
conjecturar qual deveria ser o papel do homem em sua interação com a natureza.
O princípio básico de uma relação salutar para o planeta seria uma mudança de paradigma
– o homem não mais deveria dominar a
natureza, mas reconhecer-se como parte integrante dela. O homem deveria buscar
incessantemente a harmonia com seu
ambiente. Franciscanamente, o homem deveria chamar o lobo, a montanha e tudo o
mais que há sobre a terra de seus irmãos.
Para tanto, seria absolutamente necessário que a humanidade reconhecesse a
natureza como possuidora de valor em si mesma, não superável pelo seu valor
como recurso de exploração. Afinal, o homem é mais dependente da natureza do
que o inverso.Mas isso não significa que o homem seja um mal para o mundo.
A partir do momento em que se der o reconhecimento de sua igualdade com todos
os demais seres no direito de existir, o próprio homem ganha esse mesmo
estatuto. E como se deve reconhecer isso? A partir do convencimento de que o
planeta tem recursos limitados e vive em delicado equilíbrio, e que somente a
partir de uma atitude responsável será possível a sobrevida. Naess propõe o
conceito do “eu ecológico”, ou seja, uma sintonia e uma percepção de que pertencemos
à biosfera. E isso engloba o que tantos filósofos anteriores chamavam de “consciência
de si”, aquela percepção imediata de tudo o que se passa ao nosso redor. Essa
consciência engloba o reconhecimento da finitude e da propensão natural em
buscar sua própria preservação e de sua espécie. Esses fatores são poderosos
aliados para que a defesa do meio ambiente se transforme em força ativa:
somente cuidando do mundo, cuidamos de nós mesmos.
Arne Naess, aos olhos desprotegidos do consumismo, pode
parecer o que se convencionou chamar de “ecochato”. Não, ele não é um ecochato.
Ele foi um homem que soube encontrar na defesa da natureza uma porta ativa para
a ética e, no final das contas, para a Filosofia como um todo. Hoje há milhares
de organizações que buscam a defesa do ambiente. Naess foi um de seus
pioneiros. Se gostamos de visitar lugares bonitos como São José do Barreiro,
precisamos, obrigatoriamente, aprender algumas dessas lições.
Recomendação de leitura:
Ainda quero falar melhor sobre Aldo Leopold. Por esse
motivo, vou recomendar sua obra em momento oportuno. Quanto a Arne Naess, podemos
apontar como leitura gratificante a seguinte obra (infelizmente não achei
edições em português – a que segue está em italiano, mas há várias em inglês):NAESS, Arne. Ecosofia. Milão: Red Edizioni, 1994.
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