Olá!
Viagens têm percalços, todos sabemos bem. Alguns são
bastante comuns no dia-a-dia dos diabéticos. Tomamos litros e mais litros de
água, no desespero de nosso organismo em diluir a montanha de glicose que nos
tritura por dentro, o que faz com que nossas bexigas estejam frequentemente repletas.
Tudo bem, aliviar-se atrás de um matagal não chega a ser exatamente um
problema. Mas, naquele momento, havia uma coincidência a dar complexidade à
causa. A patroa, tendo em vista a empolgação nas fontes de São Lourenço,
encontrava-se aperreada, e, não tendo a facilidade anatômica para aproveitar
montículos e muretas, criou a demanda do pit
stop. É assim que fomos instados a desviar a rota e conhecer a pequena
Jesuânia.
Outro fator favoreceu a parada. Um estranho
congestionamento, fichinha para quem vem da Pauliceia Desvairada, mas
inesperado na ligação a Lambari, decorrente de um acidente. O escorregão
inusitado de uma motocicleta fez com que seu infeliz condutor danificasse algum
osso secundário, trazendo a necessidade de uma ambulância, e o estreitamento
somado à excessiva curiosidade deram belo plus
ao tempo necessário à viagem. Sendo assim, há sinais dos céus suficientes para
adentrar a bucólica localidade.
Em uma passagem de fim de tarde, era normal que não desse
tempo de caçar trilhas e cachoeiras, que eu sei existir, e procuramos a igreja
avistável ao longe, para conseguir a caridade sanitária tão almejada naquele
momento inglório, no que fomos atendidos.
É a bela e imensa igreja do Bom Jesus, que é ladeada, em seu
adro, por uma gruta representando a aparição de Nossa Senhora à menina
Bernadette Soubirous, na cidade francesa de Lourdes. Diz-se que a pequenina
recebeu 18 visões da santa na gruta de Massabielle, onde a santa se afirmava
como a Imaculada Conceição. Essa é uma das mais célebres versões de Santa
Maria.
Além dessa presença relativamente comum nessas terras de
muitas águas (a gruta de Massabielle tem uma fonte a quem se atribui dons
milagrosos), outros elementos de cunho religioso se destacam. Eu já tive a
oportunidade de mencionar em outros textos desta sequência a presença
constante de dois beatos nas paróquias da região. Um deles é o Padre Victor, de
Campanha...
... e a outra é a Nhá Chica, da cidade de Baependi. Falarei
melhor sobre ambos posteriormente, mas é interessante a devoção que auferem,
talvez maior até que a dos próprios padroeiros dos municípios. Uma relação de
proximidade? Com certeza. Mas vamos deixar para o momento certo.
Na frente da igreja, a praça íngreme e bonita, com traços
característicos do pequeno agrupamento urbano que lhe deu origem, e que hoje é
sede de um lugarejo eminentemente rural.
Bom Jesus de Lambari, Bias Fortes e Lambarizinho. O marco
abaixo, localizado no sopé da praça central, relembra o momento em que essa sucessão
de nomes deu lugar à sua definição como município, em 1948, já com o nome atual
(uma alusão ao nome de sua paróquia, o que acaba por significar alguma coisa
como “terras de Jesus”).
A praça central da cidade, bastante íngreme, não tem aqueles
bons elementos históricos, do passado mais distante, tempos da taipa de pilão e
do pau-a-pique. Vimos um grande casarão de visual eclético, com telhados
diversos, à moda dos minaretes de mesquita. Ao redor, sobradinhos e casinhas
térreas.
No centro de São Paulo, temos ocasionais visitas de pássaros
que não sejam pardais e pombos. Em Jesuânia, há uma espécie em cada poste, como
esse casal de papagaios que fotografei pelo celular, em uma rua que despinguela
do morro da igreja para a estrada principal.
Estando por aqui, achamos por bem dar uma volta pela cidade,
para conhecê-la um pouco melhor. É um lugar muito, muito, muito pacato, e mesmo
o comércio local é pouco. Encontramos uma padariazinha que emanava um cheiro
muito bom, e resolvemos tentar encontrar lá uma atração turística gastronômica.
Na verdade, acho que nós é que fomos encontrados...
Fomos atendidos por uma mocinha bem jovem, que nos ofereceu
a especialidade da casa: pão de queijo recheado de linguiça. Seu preparo é
semelhante ao que fazem os padeiros do Bixiga, com a diferença que a cobertura
não é feita com pão italiano, mas com o clássico local, um pouco mais denso que
o normal, para sustentar o embutido. Acompanhado de molho, é realmente muito
bom.
Mas a mocinha é a verdadeira atração. Em cinco minutos de papo,
ela se provou um autêntico dicionário de mineirês. Não fosse o convívio com
minha sogra, paranaense de infância nas Alterosas, provavelmente eu ficaria
vendido na imensa maioria dos termos utilizados. Não vou me lembrar com
exatidão, mas ela juntava coisas do seguinte naipe na mesma frase, ao se
referir à guloseima:
- Esse trem é bom prá
mais de metro. Um cadinho e cê vai amarrar no toco e encher a matula até
empanzinar. Uai! Vai comer um só?! Tem base isso?!
Tudo isso naquele cantar típico dessas plagas, com a
supressão abundante de sílabas e a puxada costumeira dos erres. Uma tradução
possível seria:
- É um petisco muito
gostoso. Um pouquinho é suficiente para você ficar aqui e querer levar para
casa, e comer até se sentir cheio. Ora, vai comer só um?! Como é possível?!
É, não posso me dar a exageros, isso é fato. E a merenda era
tão saborosa quanto calórica, fazer o quê? O negócio é ter um pouco de continência
e parcimônia – usar pouco para poder usar sempre, ou até onde der, ou até a
porra-louquice mandar tudo para o inferno.
Trezentos quilômetros nem são tanta distância assim, não é
mesmo? E quanta diferença linguística me separa daquela menina, que mora comigo
no meu país... Mas me dou conta da bobagem ao lembrar que moro em São Paulo,
uma cidade que é, ela mesma, dividida por diferentes sotaques. Há um falar nos
Jardins, de acento feminino e adição de vogais (“não tô einteindeindo...”), há
a pronúncia dura da periferia, tão típica das declamações dos rappers, e há o mooquense, mais cantado
e gritado que uma ópera, com tônica italiana, além de outras variantes. O
idioma de um país só é algo monolítico no sonho dos gramáticos.
Uma das preocupações contemporâneas da Filosofia diz
respeito exatamente à questão da linguagem, matéria-prima da Filosofia
Analítica, que tenta compreender o mundo através da análise das proposições.
Como eu esmiucei neste texto, os analíticos imaginavam ser a linguagem o
mapeamento perfeito de toda a realidade, e, por isso, seria suficiente voltar o
foco para ela, algo muito mais simples de se fazer.
Uma das principais teorias linguísticas foi elaborada por
Ferdinand de Saussure, que incluía a articulação entre significantes e
significados para elaborar signos, as unidades de expressão linguística,
devidamente dichavada nesta postagem. No entanto, como sói acontecer, há
algumas dificuldades, ainda que reconheçamos sua robustez. A principal delas
diz respeito à dicotomia língua-fala (langue-parole,
em francês). Saussure reconhecia a língua como um fato eminentemente social,
mas entendia que o mais significativo em seus estudos era a estrutura, sua
parte formal, e esta residia na língua. A fala era algo excessivamente
assistemático, dada às intempéries de quem a profere. E é aí que está o chamado
paradoxo de Saussure: a linguagem precisa ser analisada pela sua parte bem
estruturada, a langue. No entanto, o
uso social dos idiomas se dá pelas pessoas, que usam a parole. Como é possível resolver essa ambivalência?
Uma das opções de resposta se dá pela sociolinguística de William
Labov, filósofo norte-americano que estudou a língua como um fato social
sujeito a transformações, a chamada variação linguística. Sua escola ficou
conhecida como sociolinguística variacionista.
É assim. A língua ganha expressão por meio de falantes, e
falantes vivem em sociedade. Como bem sabemos, as comunidades formam
peculiaridades, e não há como excluir a fala desse processo. Com essa ideia na
cabeça, Labov promoveu uma pesquisa junto a comunidades negras, que eram
consideradas grandes desvirtuadoras da linguagem. Houve o cuidado de se colocar
um interlocutor comunitário para realizar os levantamentos necessários, para
que não se desse o impacto da presença de um pesquisador estranho ao meio, o
que certamente poderia refrear o nível de relacionamentos. O resultado final
indicou que, apesar de um linguajar endêmico, com elementos léxicos próprios, a
estrutura essencial da língua originária era reproduzida. Isso significa que,
uma vez detectada a estrutura linguística de uma sociedade específica, ela é
passível de análise da mesma forma que se dá com a língua de origem, e o
paradoxo de Saussure é resolvido. Ou seja, é nos falantes que repousa a língua,
e não o contrário. Suas maneiras de falar não se mudam de forma abrupta;
detecte-se o esqueleto de sua fala, e a estrutura da linguagem estará lá,
plácido e fagueiro.
Pensemos agora em nosso continental país. Há alguma chance
de um país tão vasto, com tantas etnias e com tantas influências externas guardar
alguma porção de homogeneidade? É óbvio que, em um país multicultural, a
linguagem seja igualmente heterogênea. Mais que isso: é necessário que seja,
sob a pena de não cumprir plenamente sua função de comunicar. A variação
linguística não existe por desleixo em relação à dita norma culta, mas porque é
elemento de identidade de um grupo. Uma comunidade que se expressasse puramente
em “cultês” corresponderia a um grupo com a cultura sufocada, ditada por regras
escritas e sem nenhum nível de espontaneidade. E sabemos que isso não existe,
até mesmo por resistência daqueles que não querem receber intromissão tão
pessoal em seu jeito de ser.
Em termos práticos, sabemos que é muito difícil, mas o ideal
é que fôssemos “bilíngues”, no sentido de dominar o padrão da língua sem perder
a fluidez da fala. Não quero criar uma hierarquização, mas é importante a
existência de uma norma padrão e que a dominemos, sem perder nossa fala
natural, que nos permita a comunicação comunitária eficiente. E, para isso, é
preciso ter em mente duas coisas: a norma padrão é originada do falar (e não o
contrário) e a parole é muito mais
dinâmica do que a langue. Nesta
última, não há o menor sentido em se dizer que há um jeito certo ou errado de
se falar.
Vejam a própria formação da língua portuguesa. Ao passear
pelo interior, é comum percebermos a troca do L pelo R nos encontros
consonantais. Assim, ouvimos Creuza, atreta e bicicreta. Mas essa é uma tendência da última flor do Lácio,
facilmente detectável ao compará-la com outros idiomas oriundos do latim. Vejam
os quadros abaixo e percebam como o português (assim como o galego, seu aparentado)
tende a trocar o L latino pelo R, assim como o italiano e o corso fazem o mesmo
com o I, enquanto do francês, o espanhol, o catalão e o romanche tendem a mantê-lo.
O romeno, de acento fortemente eslavo, e o maltês, com grandes influências
árabes, apesar de serem consideradas línguas latinas, escapam do padrão.
Este é o diagrama referente à palavra “prato”. Notem que eu
procurei colocar as palavras em sua raiz latina e algumas variações derivadas:
Procurei agrupar em “parzinhos” de proximidade linguística,
o que é completamente arbitrário de minha parte, e que só tem fins didáticos. O
português e o galego se tocam no norte de Portugal e no noroeste da Espanha,
fazendo uma mescla entre ambos. O espanhol e o catalão, da região nordeste da
Espanha e sudoeste da França, é de uma composição mais complexa, mas ainda
assim com afinidades. O francês e o romanche, que é falado em parte da Suíça,
tem muitos pontos de contato, sendo que, neste último, há ainda bastante
influência do alemão e do italiano. E temos o italiano e o corso, da ilha da
Córsega, que tem muita proximidade também com o francês. Este é o diagrama da
palavra “praça”.
Percebam que o romeno, fortemente influenciado pelas línguas
eslavas, como o húngaro, o búlgaro e o russo, e o maltês, carregado de línguas
árabes, são as variações mais divergentes, e, além disso, não estão ligadas
entre si, como as outras mencionadas retro. Esse agora é o quadro que preparei
para a palavra “igreja”.
Isso ajuda a explicar que o eixo das transformações é movido
por peculiaridades que se travestem de erro, mas que, na verdade, são forças
originadoras da própria língua. Todos esses idiomas hoje consagrados um belo
dia foram corruptelas do latim, sua língua originária, e deram princípio a
novas normas padrão, que serão transformadas mais uma vez, em um processo
infinito de criação e ressignificação. Mais ainda: essas transformações se dão
em vários ramos, o que ocasiona um paralelismo em seu desenvolvimento.
E mais uma coisa. A não ser nos casos de preconceito
linguístico, quando tentamos imputar a dominância de uma variação em detrimento
das outras, é uma delícia comparar sotaques, que no Brasil são inúmeros. Os
mineiros engolem letras, os cariocas sibilam os esses, os paulistas carregam
nos erres, que os baianos aspiram, os gaúchos mais cantam do que falam, os
pernambucanos não palatalizam os tês e dês, os cearenses abrem as vogais, os
paraenses guardam proximidade à norma culta, os manezinhos correm tanto na fala
que parecem que vão tirar o pai da forca com a boca, os paranaenses repuxam nos
enes, e tantos outros; sem contar as palavras próprias de cada região, gerando
um monte de confusão nos visitantes. Esses sotaques são candidatos a um dia se
tornar dialetos, com variações mais aprofundadas, que extravasam a mera
prosódia. Já não serão diversas apenas na melodia e na velocidade da fala, mas
também na ortografia e no vocabulário sem sinonímia nos padrões linguísticos,
até chegar nas regras gramaticais e virar, por si só, um idioma autônomo. É
assim que a coisa funciona.
No fundo, o que importa de verdade é que nós consigamos nos
comunicar, e que seja de maneira adequada a cada circunstância. Não é preciso
usar “vossas excelências” para pedir um pão de queijo em uma cidadezinha do
interior de Minas, e é, na verdade, mais legal “empanzinar o bucho” do que “locupletar
o aparelho gástrico”, porque um é dito de forma a criar uma empatia na
comunicação, enquanto o outro é mera formalidade, que afasta as pessoas, ainda
que signifiquem a mesma coisa.
Recomendação de leitura:
William Labov dá uma das abordagens possíveis à questão da
linguagem como elemento social, o variacionismo, que foca a variação, óbvio.
Outra abordagem é a interacionista, mas deixemos para outro momento.
LABOV, William. Padrões
Sociolinguísticos. São Paulo, Parábola, 2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário