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terça-feira, 28 de novembro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 8º sopro: Jesuânia, sotaques e a fala como originadora da língua

Olá!


Viagens têm percalços, todos sabemos bem. Alguns são bastante comuns no dia-a-dia dos diabéticos. Tomamos litros e mais litros de água, no desespero de nosso organismo em diluir a montanha de glicose que nos tritura por dentro, o que faz com que nossas bexigas estejam frequentemente repletas. Tudo bem, aliviar-se atrás de um matagal não chega a ser exatamente um problema. Mas, naquele momento, havia uma coincidência a dar complexidade à causa. A patroa, tendo em vista a empolgação nas fontes de São Lourenço, encontrava-se aperreada, e, não tendo a facilidade anatômica para aproveitar montículos e muretas, criou a demanda do pit stop. É assim que fomos instados a desviar a rota e conhecer a pequena Jesuânia.


Outro fator favoreceu a parada. Um estranho congestionamento, fichinha para quem vem da Pauliceia Desvairada, mas inesperado na ligação a Lambari, decorrente de um acidente. O escorregão inusitado de uma motocicleta fez com que seu infeliz condutor danificasse algum osso secundário, trazendo a necessidade de uma ambulância, e o estreitamento somado à excessiva curiosidade deram belo plus ao tempo necessário à viagem. Sendo assim, há sinais dos céus suficientes para adentrar a bucólica localidade.


Em uma passagem de fim de tarde, era normal que não desse tempo de caçar trilhas e cachoeiras, que eu sei existir, e procuramos a igreja avistável ao longe, para conseguir a caridade sanitária tão almejada naquele momento inglório, no que fomos atendidos.


É a bela e imensa igreja do Bom Jesus, que é ladeada, em seu adro, por uma gruta representando a aparição de Nossa Senhora à menina Bernadette Soubirous, na cidade francesa de Lourdes. Diz-se que a pequenina recebeu 18 visões da santa na gruta de Massabielle, onde a santa se afirmava como a Imaculada Conceição. Essa é uma das mais célebres versões de Santa Maria.


Além dessa presença relativamente comum nessas terras de muitas águas (a gruta de Massabielle tem uma fonte a quem se atribui dons milagrosos), outros elementos de cunho religioso se destacam. Eu já tive a oportunidade de mencionar em outros textos desta sequência a presença constante de dois beatos nas paróquias da região. Um deles é o Padre Victor, de Campanha...


... e a outra é a Nhá Chica, da cidade de Baependi. Falarei melhor sobre ambos posteriormente, mas é interessante a devoção que auferem, talvez maior até que a dos próprios padroeiros dos municípios. Uma relação de proximidade? Com certeza. Mas vamos deixar para o momento certo.


Na frente da igreja, a praça íngreme e bonita, com traços característicos do pequeno agrupamento urbano que lhe deu origem, e que hoje é sede de um lugarejo eminentemente rural.


Bom Jesus de Lambari, Bias Fortes e Lambarizinho. O marco abaixo, localizado no sopé da praça central, relembra o momento em que essa sucessão de nomes deu lugar à sua definição como município, em 1948, já com o nome atual (uma alusão ao nome de sua paróquia, o que acaba por significar alguma coisa como “terras de Jesus”).


A praça central da cidade, bastante íngreme, não tem aqueles bons elementos históricos, do passado mais distante, tempos da taipa de pilão e do pau-a-pique. Vimos um grande casarão de visual eclético, com telhados diversos, à moda dos minaretes de mesquita. Ao redor, sobradinhos e casinhas térreas.


No centro de São Paulo, temos ocasionais visitas de pássaros que não sejam pardais e pombos. Em Jesuânia, há uma espécie em cada poste, como esse casal de papagaios que fotografei pelo celular, em uma rua que despinguela do morro da igreja para a estrada principal.


Estando por aqui, achamos por bem dar uma volta pela cidade, para conhecê-la um pouco melhor. É um lugar muito, muito, muito pacato, e mesmo o comércio local é pouco. Encontramos uma padariazinha que emanava um cheiro muito bom, e resolvemos tentar encontrar lá uma atração turística gastronômica. Na verdade, acho que nós é que fomos encontrados...


Fomos atendidos por uma mocinha bem jovem, que nos ofereceu a especialidade da casa: pão de queijo recheado de linguiça. Seu preparo é semelhante ao que fazem os padeiros do Bixiga, com a diferença que a cobertura não é feita com pão italiano, mas com o clássico local, um pouco mais denso que o normal, para sustentar o embutido. Acompanhado de molho, é realmente muito bom.

Mas a mocinha é a verdadeira atração. Em cinco minutos de papo, ela se provou um autêntico dicionário de mineirês. Não fosse o convívio com minha sogra, paranaense de infância nas Alterosas, provavelmente eu ficaria vendido na imensa maioria dos termos utilizados. Não vou me lembrar com exatidão, mas ela juntava coisas do seguinte naipe na mesma frase, ao se referir à guloseima:

- Esse trem é bom prá mais de metro. Um cadinho e cê vai amarrar no toco e encher a matula até empanzinar. Uai! Vai comer um só?! Tem base isso?!

Tudo isso naquele cantar típico dessas plagas, com a supressão abundante de sílabas e a puxada costumeira dos erres. Uma tradução possível seria:

- É um petisco muito gostoso. Um pouquinho é suficiente para você ficar aqui e querer levar para casa, e comer até se sentir cheio. Ora, vai comer só um?! Como é possível?!

É, não posso me dar a exageros, isso é fato. E a merenda era tão saborosa quanto calórica, fazer o quê? O negócio é ter um pouco de continência e parcimônia – usar pouco para poder usar sempre, ou até onde der, ou até a porra-louquice mandar tudo para o inferno.

Trezentos quilômetros nem são tanta distância assim, não é mesmo? E quanta diferença linguística me separa daquela menina, que mora comigo no meu país... Mas me dou conta da bobagem ao lembrar que moro em São Paulo, uma cidade que é, ela mesma, dividida por diferentes sotaques. Há um falar nos Jardins, de acento feminino e adição de vogais (“não tô einteindeindo...”), há a pronúncia dura da periferia, tão típica das declamações dos rappers, e há o mooquense, mais cantado e gritado que uma ópera, com tônica italiana, além de outras variantes. O idioma de um país só é algo monolítico no sonho dos gramáticos.

Uma das preocupações contemporâneas da Filosofia diz respeito exatamente à questão da linguagem, matéria-prima da Filosofia Analítica, que tenta compreender o mundo através da análise das proposições. Como eu esmiucei neste texto, os analíticos imaginavam ser a linguagem o mapeamento perfeito de toda a realidade, e, por isso, seria suficiente voltar o foco para ela, algo muito mais simples de se fazer.

Uma das principais teorias linguísticas foi elaborada por Ferdinand de Saussure, que incluía a articulação entre significantes e significados para elaborar signos, as unidades de expressão linguística, devidamente dichavada nesta postagem. No entanto, como sói acontecer, há algumas dificuldades, ainda que reconheçamos sua robustez. A principal delas diz respeito à dicotomia língua-fala (langue-parole, em francês). Saussure reconhecia a língua como um fato eminentemente social, mas entendia que o mais significativo em seus estudos era a estrutura, sua parte formal, e esta residia na língua. A fala era algo excessivamente assistemático, dada às intempéries de quem a profere. E é aí que está o chamado paradoxo de Saussure: a linguagem precisa ser analisada pela sua parte bem estruturada, a langue. No entanto, o uso social dos idiomas se dá pelas pessoas, que usam a parole. Como é possível resolver essa ambivalência?

Uma das opções de resposta se dá pela sociolinguística de William Labov, filósofo norte-americano que estudou a língua como um fato social sujeito a transformações, a chamada variação linguística. Sua escola ficou conhecida como sociolinguística variacionista.

É assim. A língua ganha expressão por meio de falantes, e falantes vivem em sociedade. Como bem sabemos, as comunidades formam peculiaridades, e não há como excluir a fala desse processo. Com essa ideia na cabeça, Labov promoveu uma pesquisa junto a comunidades negras, que eram consideradas grandes desvirtuadoras da linguagem. Houve o cuidado de se colocar um interlocutor comunitário para realizar os levantamentos necessários, para que não se desse o impacto da presença de um pesquisador estranho ao meio, o que certamente poderia refrear o nível de relacionamentos. O resultado final indicou que, apesar de um linguajar endêmico, com elementos léxicos próprios, a estrutura essencial da língua originária era reproduzida. Isso significa que, uma vez detectada a estrutura linguística de uma sociedade específica, ela é passível de análise da mesma forma que se dá com a língua de origem, e o paradoxo de Saussure é resolvido. Ou seja, é nos falantes que repousa a língua, e não o contrário. Suas maneiras de falar não se mudam de forma abrupta; detecte-se o esqueleto de sua fala, e a estrutura da linguagem estará lá, plácido e fagueiro.

Pensemos agora em nosso continental país. Há alguma chance de um país tão vasto, com tantas etnias e com tantas influências externas guardar alguma porção de homogeneidade? É óbvio que, em um país multicultural, a linguagem seja igualmente heterogênea. Mais que isso: é necessário que seja, sob a pena de não cumprir plenamente sua função de comunicar. A variação linguística não existe por desleixo em relação à dita norma culta, mas porque é elemento de identidade de um grupo. Uma comunidade que se expressasse puramente em “cultês” corresponderia a um grupo com a cultura sufocada, ditada por regras escritas e sem nenhum nível de espontaneidade. E sabemos que isso não existe, até mesmo por resistência daqueles que não querem receber intromissão tão pessoal em seu jeito de ser.

Em termos práticos, sabemos que é muito difícil, mas o ideal é que fôssemos “bilíngues”, no sentido de dominar o padrão da língua sem perder a fluidez da fala. Não quero criar uma hierarquização, mas é importante a existência de uma norma padrão e que a dominemos, sem perder nossa fala natural, que nos permita a comunicação comunitária eficiente. E, para isso, é preciso ter em mente duas coisas: a norma padrão é originada do falar (e não o contrário) e a parole é muito mais dinâmica do que a langue. Nesta última, não há o menor sentido em se dizer que há um jeito certo ou errado de se falar.

Vejam a própria formação da língua portuguesa. Ao passear pelo interior, é comum percebermos a troca do L pelo R nos encontros consonantais. Assim, ouvimos Creuza, atreta e bicicreta. Mas essa é uma tendência da última flor do Lácio, facilmente detectável ao compará-la com outros idiomas oriundos do latim. Vejam os quadros abaixo e percebam como o português (assim como o galego, seu aparentado) tende a trocar o L latino pelo R, assim como o italiano e o corso fazem o mesmo com o I, enquanto do francês, o espanhol, o catalão e o romanche tendem a mantê-lo. O romeno, de acento fortemente eslavo, e o maltês, com grandes influências árabes, apesar de serem consideradas línguas latinas, escapam do padrão.

Este é o diagrama referente à palavra “prato”. Notem que eu procurei colocar as palavras em sua raiz latina e algumas variações derivadas:


Procurei agrupar em “parzinhos” de proximidade linguística, o que é completamente arbitrário de minha parte, e que só tem fins didáticos. O português e o galego se tocam no norte de Portugal e no noroeste da Espanha, fazendo uma mescla entre ambos. O espanhol e o catalão, da região nordeste da Espanha e sudoeste da França, é de uma composição mais complexa, mas ainda assim com afinidades. O francês e o romanche, que é falado em parte da Suíça, tem muitos pontos de contato, sendo que, neste último, há ainda bastante influência do alemão e do italiano. E temos o italiano e o corso, da ilha da Córsega, que tem muita proximidade também com o francês. Este é o diagrama da palavra “praça”.


Percebam que o romeno, fortemente influenciado pelas línguas eslavas, como o húngaro, o búlgaro e o russo, e o maltês, carregado de línguas árabes, são as variações mais divergentes, e, além disso, não estão ligadas entre si, como as outras mencionadas retro. Esse agora é o quadro que preparei para a palavra “igreja”.


Isso ajuda a explicar que o eixo das transformações é movido por peculiaridades que se travestem de erro, mas que, na verdade, são forças originadoras da própria língua. Todos esses idiomas hoje consagrados um belo dia foram corruptelas do latim, sua língua originária, e deram princípio a novas normas padrão, que serão transformadas mais uma vez, em um processo infinito de criação e ressignificação. Mais ainda: essas transformações se dão em vários ramos, o que ocasiona um paralelismo em seu desenvolvimento.

E mais uma coisa. A não ser nos casos de preconceito linguístico, quando tentamos imputar a dominância de uma variação em detrimento das outras, é uma delícia comparar sotaques, que no Brasil são inúmeros. Os mineiros engolem letras, os cariocas sibilam os esses, os paulistas carregam nos erres, que os baianos aspiram, os gaúchos mais cantam do que falam, os pernambucanos não palatalizam os tês e dês, os cearenses abrem as vogais, os paraenses guardam proximidade à norma culta, os manezinhos correm tanto na fala que parecem que vão tirar o pai da forca com a boca, os paranaenses repuxam nos enes, e tantos outros; sem contar as palavras próprias de cada região, gerando um monte de confusão nos visitantes. Esses sotaques são candidatos a um dia se tornar dialetos, com variações mais aprofundadas, que extravasam a mera prosódia. Já não serão diversas apenas na melodia e na velocidade da fala, mas também na ortografia e no vocabulário sem sinonímia nos padrões linguísticos, até chegar nas regras gramaticais e virar, por si só, um idioma autônomo. É assim que a coisa funciona.

No fundo, o que importa de verdade é que nós consigamos nos comunicar, e que seja de maneira adequada a cada circunstância. Não é preciso usar “vossas excelências” para pedir um pão de queijo em uma cidadezinha do interior de Minas, e é, na verdade, mais legal “empanzinar o bucho” do que “locupletar o aparelho gástrico”, porque um é dito de forma a criar uma empatia na comunicação, enquanto o outro é mera formalidade, que afasta as pessoas, ainda que signifiquem a mesma coisa.

Recomendação de leitura:

William Labov dá uma das abordagens possíveis à questão da linguagem como elemento social, o variacionismo, que foca a variação, óbvio. Outra abordagem é a interacionista, mas deixemos para outro momento.

LABOV, William. Padrões Sociolinguísticos. São Paulo, Parábola, 2008.

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